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ALFREDO DOS SANTOS OLIVA

O DISCURSO SOBRE O MAL NA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: Uma história cultural do Diabo no Brasil Contemporâneo (1977-2005)

ASSIS 2005

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ALFREDO DOS SANTOS OLIVA

O DISCURSO SOBRE O MAL NA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: Uma história cultural do Diabo no Brasil Contemporâneo (1977-2005)

Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de doutor em História (Área de História e Sociedade). Orientador: Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior

ASSIS 2005

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Oliva, Alfredo dos Santos O discurso sobre o mal na Igreja Universal do Reino de Deus: uma história cultural do Diabo no Brasil Contemporâneo (19772005). Alfredo dos Santos Oliva. Assis, 2005. 276p. Tese – Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Exorcismo – Igreja Universal do Reino de Deus 2. Diabo – Igreja Universal do Reino de Deus 3. Religião – Filosofia – Michel Foucault. CDD 289.94

ALFREDO DOS SANTOS OLIVA

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O DISCURSO SOBRE O MAL NA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: Uma história cultural do Diabo no Brasil Contemporâneo (1977-2005)

Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de doutor em História (Área de História e Sociedade).

Data da aprovação: 25/11/2005 BANCA EXAMINADORA Presidente: DR. HÉLIO REBELLO CARDOSO JÚNIOR – UNESP/ Assis Membros: DR. LEONILDO SILVEIRA CAMPOS – UMESP/ São Bernardo DR. ANDRÉ LUIZ JOANILHO – UEL/ Londrina DRA. TANIA REGINA DE LUCA – UNESP/ Assis DR. MILTON CARLOS COSTA – UNESP/ Assis

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Para minha filha Isabelle de Mello Oliva Minha querida filha que nasceu uma semana antes do início deste curso de doutorado e que cresceu juntamente com esta tese. Para meu filho Filipe de Mello Oliva Que uma vez me perguntou porque eu me interessava por um assunto tão estranho! Ele se referia ao Diabo. Para minha esposa Marcia de Mello Oliva Companhia e apoio em todos os momentos, uma verdadeira fortaleza!

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AGRADECIMENTOS À CAPES pela bolsa de estudos que me foi concedida, disponibilizando para mim recursos e tempo para eu pudesse escrever esta tese. Ao meu estimado orientador Hélio Rebello Cardoso Júnior, com quem construí a presente tese através de diálogos estimulantes e proveitosos. O professor Hélio foi um verdadeiro exemplo de respeito ao pensamento alheio, de disponibilidade e rapidez para oferecer retorno acerca do que havia escrito, além de expressar sempre simpatia e bom humor. Indispensável é afirmar que, se as virtudes deste trabalho se devem a nós dois, as imperfeições são de minha inteira responsabilidade. Ao meu amigo e mestre Júlio Paulo Tavares Zabatiero, de quem recebi e ainda recebo muitas e preciosas orientações na vida acadêmica. Dele captei importantes sugestões para discutir alguns dos temas desenvolvidos nesta tese. Meu débito para com este amigo continua sendo irreparável. Ao Ênio Caldeira Pinto por sua amizade e pela cuidadosa revisão e sugestão de alterações no texto final. Ao amigo Samuel E. Ewell pela tradução do resumo desta tese para o inglês. Aos amigos e amigas da Faculdade Teológica Sul Americana, ambiente de trabalho agradável e local onde tenho encontrado muito estímulo e carinho. Aos amigos e familiares, que, nas minhas ausências, foram solidários e amorosos para comigo.

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SUMÁRIO Resumo ......................................................................................................... 8 Abstract ........................................................................................................ 9 INTRODUÇÃO

..........................................................................................

10 1- POR UMA GENEALOGIA DO DIABO: O DIABO, A IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS E A HISTÓRIA CULTURAL ...... 19 1.1- As práticas discursivas acerca do Diabo como objeto ........................ 19 1.2- As fontes para análise das práticas discursivas acerca do Diabo ........ 28 1.3- Perspectivas teóricas para uma história cultural do Diabo ................. 31 1.3.1- O Diabo como discurso ................................................................... 41 1.3.2- Por uma genealogia do Diabo .......................................................... 55 1.3.3- O Diabo entre a feitiçaria e a possessão ........................................... 62 2- O DIABO ENTRA EM CENA E EXPANDE O SEU REINO: A CONSTRUÇÃO

DO

DIABO

NA

HISTÓRIA

CULTURAL

DO

CRISTIANISMO .........................................................................................77 2.1- O mal na era antiga: O Diabo entre o monismo e o dualismo ............ 79 2.2- O mal na era medieval: O Diabo como a máscara sem rosto .............. 99 2.3- O mal na era moderna: O Diabo entre o pacto e a possessão ........... 112 2.4- O mal na era contemporânea: A proliferação de práticas discursivas sobre o Diabo ............................................................................................124

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3- O DIABO TESTEMUNHA O PENTECOSTES: A CONSTRUÇÃO DO DIABO NA HISTÓRIA CULTURAL DO PENTECOSTALISMO ....... 151 3.1- Por uma análise das práticas acerca do Diabo no pentecostalismo brasileiro ................................................................................................... 151 3.2- Por uma análise das práticas acerca do Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus .......................................................................................... 194 4- O DIABO CHEGA AO REINO DE DEUS NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DO DIABO NA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS .........................................................................................................206 4.1- O campo religioso brasileiro e os embates discursivos da Igreja Universal do Reino de Deus ..................................................................... 206 4.1.1- O discurso sobre o Diabo no protestantismo tradicional .............. 211 4.1.2- O discurso sobre o Diabo no pentecostalismo clássico .................. 223 4.1.3- O Diabo no catolicismo e no protestantismo de Libertação .......... 231 4.1.4- O discurso sobre o Diabo no pentecostalismo contemporâneo ...... 251 4.2- O discurso sobre mal na Igreja Universal do Reino de Deus ............ 257 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 278 APÊNDICE .............................................................................................. 287 REFEÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS

........................................................

297 FONTES PRIMÁRIAS ............................................................................ 305

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OLIVA, A. S. O discurso sobre o mal na Igreja Universal do Reino de Deus: uma história cultural do Diabo no Brasil contemporâneo. Assis, 2005. 307p. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

RESUMO Esta tese, que tem como objeto o discurso sobre o mal na Igreja Universal do Reino de Deus, enquadra-se na tradição francesa de historiografia da cultura, dando especial atenção à influência do filósofo Michel Foucault sobre esta corrente de pensamento. Foca, mais especificamente, o modo como a liderança da igreja constrói discursivamente suas representações acerca do Diabo. Seus limites cronológicos são estabelecidos pela data de fundação da referida instituição religiosa (1977) e pelo ano em que esta pesquisa foi finalizada (2005). As questões que nortearam a execução desta investigação e dos argumentos apresentados são as seguintes: (1) Como o discurso sobre o Diabo na I.U.R.D. se relaciona, seja por continuidade ou descontinuidade, com a história do cristianismo? (2) Como está configurado, internamente, o discurso sobre o Diabo na referida igreja? e (3) Como o discurso sobre o Diabo na igreja do Bispo Macedo se relaciona com outros discursos religiosos no Brasil Contemporâneo?

Palavras-chave: Igreja Universal do Reino de Deus; historiografia da cultura; genealogia do discurso; Diabo; Religião no Brasil contemporâneo.

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OLIVA, A. S. O discurso sobre o mal na Igreja Universal do Reino de Deus: uma história cultural do Diabo no Brasil contemporâneo. Assis, 2005. 267p. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

ABSTRACT This dissertation, which treats the Igreja Universal do Reino de Deus (Church of the Universal Reign of God), fits into the French tradition of historiography of culture, giving special attention to the influence of Michel Foucault on this line of thought. More especially, the work focuses on the way in which the leadership of the I.U.R.D. constructs its discourse about the Devil. Chronologically, the research is limited by the founding of the I.U.R.D. (1977), and by the year in which the research was completed (2005). The questions that direct the execution of this investigation and the arguments of the dissertion are the following: 1) How does the I.U.R.D.´s discourse about the Devil stand in continuity and/or discontinuity with the history of Christianity? 2) How is the I.U.R.D.´s discourse about the Devil configured internally? 3) How does the discourse about the Devil in Bishop Macedo´s church relate to other contemporary, religious discourses in Brazil?

Keywords: Igreja Universal do Reino do Deus (Church of the Universal Reign of God); historiography of culture; genealogy of discourse; the Devil; religion in contemporary Brazil.

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INTRODUÇÃO Entendo que a legitimidade de um trabalho acadêmico está diretamente relacionada à destreza que seu autor ou autora possui de métodos, técnicas e teorias próprias do campo em que realiza suas pesquisas. Este foi um importante aprendizado que incorporei lendo a obra de um experiente historiador francês. Desejo tomar suas reflexões historiográficas como ponto de partida desta introdução. Refiro-me ao brilhante trabalho de Michel de Certeau.1 Trata-se de uma coletânea composta de nove ensaios teóricos do autor. Não vou me deter no livro todo, mas apenas no prefácio, na introdução e nos três primeiros capítulos: 1) Fazer história, problemas de método e problemas de sentido; 2) A operação historiográfica e 3) A inversão do pensável, a história religiosa do século XVII. Os três capítulos são variados do ponto de vista estilístico (o primeiro em linguagem mais cifrada e o segundo mais claro e didático), mas formam um coro em termos de preocupação teórica (todos estão voltados para o debate epistemológico do campo historiográfico). A análise de cada capítulo é seguida por uma exposição acerca das implicações que as afirmações teóricas de Michel de Certeau têm sobre o “objeto” que pesquiso, o discurso sobre o Diabo da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2005). 1

CERTEAU, M. A escrita da história.

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Parece-me que a questão central do primeiro capítulo é o debate sobre como é construído o discurso historiográfico. Este debate tem suscitado duas posições conflitantes: 1) um discurso que afirma que o conhecimento historiográfico se edifica sobre um passado que existe objetivamente, cujo acesso é permitido ao historiador pela mediação do documento e 2) um outro discurso que acentua que o conhecimento histórico se constrói a partir de questões que estão postas no presente vivido pelo historiador. Michel de Certeau não assume nenhum dos dois pontos de vista e, em função disso, procura fundamentar sua posição intermediária, onde procura defender que o “fazer história” se dá exatamente no ponto de tensão entre o passado estudado pela mediação do documento e o presente que dita as preocupações e os direcionamentos que vão mobilizar os interesses do historiador ou historiadora. Por causa desta tensão entre temporalidades, a historiografia é uma forma de conhecimento e escrita que se situa no limiar entre a ficção e a realidade e em algum ponto entre a subjetividade e a objetividade. Entendo que o discurso sobre o Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus é um tema de cunho historiográfico que se encaixa bem na perspectiva proposta por Michel de Certeau. Eu diria que não se trata apenas de um objeto, nem de uma invenção arbitrária da minha subjetividade. Trata-se de um “subjeto”, um tema que está localizado no limite entre uma realidade que pode ser apreendida por uma série de

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documentos (livros, jornais, sermões, textos na Internet, folhetos e cartazes distribuídos pela igreja etc), ao mesmo tempo que aparece como resposta a demandas pessoais e sociais do tempo presente de se ouvir falar sobre o Diabo e a igreja do Bispo Macedo. Este tema se insere em um universo de possibilidades aberto no campo historiográfico no tempo presente que certamente seria impossível de se transformar em “objeto” em tempos passados, quando outros temas teriam prioridade sobre este. Neste sentido, pesquisar discursos sobre o Diabo não é apenas uma questão de afinidade pessoal ao tema. No segundo capítulo, o autor coloca seu foco sobre a operação historiográfica de uma forma mais detalhada e didática. Sua questão fundamental está voltada para a resposta a uma pergunta simples, porém crucial para a historiografia: “O que fabrica o historiador quando faz ‘história’?”2 Concebo esta pergunta fundamental em consonância com as preocupações de Clifford Geertz3 quando diz que não se deve pensar uma área do saber a partir de suas concepções teóricas apenas, mas, sobretudo, a partir daquilo que seus adeptos fazem. O historiador produz historiografia, o que significa dizer estar comprometido em produzir uma forma de conhecimento que está atrelada a uma série de regras típicas deste campo de especialização. 2 3

Ibid., p. 65. GEERTZ, C. A interpretação das culturas.

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A resposta sobre o labor historiográfico vem primeiramente de forma sintética e concentrada para depois se diluir em uma argumentação extensa que toma a forma do seu texto como um todo: Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como uma relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura).4

A argumentação de Michel de Certeau nesse capítulo tem três subdivisões, cada qual correspondendo a uma das três operações presentes no trabalho historiográfico: 1) um lugar social; 2) uma prática e 3) uma escrita. A partir deste critério, o trabalho do historiador ou historiadora pode se diferenciar de outros: “A representação – mise en scène literária – não é ‘histórica’ senão quando articulada com um lugar social da operação científica e quando institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio, com relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâneos”.5 O historiador fala sempre de um dado lugar social, segue critérios técnicos para coletar os dados sobre seu “objeto” e escreve também seguindo parâmetros do campo historiográfico. Este

segundo

capítulo

me

sugere

algumas

idéias

importantes de caráter teórico para pensar o “objeto” discurso sobre o Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus. O texto me permite visualizar

4 5

CERTEAU, M. Op. cit., p. 66. Ibid., p. 93.

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o todo de minha pesquisa. Faz-me pensar no labor historiográfico como uma ação articulada a um lugar social (resposta a uma demanda temática que clama pelo exótico no tempo presente), ao mesmo tempo em que é uma prática disciplinada (deve seguir as regras e as possibilidades teóricometodológicas do campo historiográfico), consumando-se em uma escrita (produção literária que visa a comunicação com meus pares e/ou com o leitor ou leitora em geral). No terceiro capítulo, Michel de Certeau ainda está discutindo o problema cognitivo concernente à historiografia, sendo que desta vez não o faz abstratamente, mas pela mediação de um exemplo: a história religiosa francesa do século XVII. O capítulo está dividido em duas partes, uma que aborda o passado (a religião na França do século XVII) e a outra que aborda o presente (os condicionamentos do tempo presente a que está submetido o historiador ou historiadora da religião). Penso que o autor também está preocupado neste capítulo em construir os fundamentos de uma análise do fenômeno religioso que o considere a partir de sua lógica interna e não a partir de condicionamentos externos. Para isso, usa dois exemplos a serem refutados, a historiografia marxista, que procura explicar o religioso como reflexo de uma infraestrutura econômica, e a historiografia confessional, que produz conhecimento sobre o sagrado com propósitos apologéticos. Michel de Certeau não nega o papel da filosofia da história implícita ou explícita em

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toda operação historiográfica, mas parece estar preocupado com as análises da religião que apenas a vêem como um reflexo de outra coisa diferente de si ou como uma forma de instrumentalizar interesses alheios. Também este capítulo sugere importantes pistas para abordar o “objeto” que pesquiso. O texto chama a atenção para pensar a relação da experiência religiosa com o seu meio social, sem necessariamente cair em uma relação de causalidade ou causação. Ainda me desperta para pensar o meu “objeto” de modo a suspeitar de minha própria confessionalidade religiosa e os riscos de que ela intervenha negativamente nas análises que devo empreender no âmbito da I.U.R.D.6 O historiador da religião deve estar preocupado em produzir conhecimento academicamente rigoroso e não subsídios para uma apologia, seja ela secular ou religiosa. Para finalizar e com base nas considerações anteriores, gostaria de descrever brevemente a forma como esta tese está estruturada. O objeto a ser investigado e analisado aqui é complexo e se constrói pelo entrecruzamento de dois aspectos, um recorte institucional/espacial, a I.U.R.D, e outro de caráter temático/teórico, as práticas discursivas sobre o Diabo. Como se trata de uma pesquisa de cunho historiográfico, ambos os recortes são entrecruzados ainda por uma delimitação cronológica. A temporalidade inicial (1977) é a data de fundação da igreja dirigida pelo Bispo Macedo e a data final (2005) é o presente. 6

Igreja Universal do Reino de Deus.

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Toda investigação acadêmica brota de um querer saber algo sobre um determinado “objeto”. As questões que nortearam a execução da pesquisa e dos argumentos que adiante apresento são as seguintes: (1) Como o discurso sobre o Diabo na I.U.R.D. se relaciona, seja por continuidade ou descontinuidade, com a história do cristianismo? (2) Como está configurado, internamente, o discurso sobre o Diabo na referida igreja? e (3) Como o discurso sobre o Diabo na igreja do Bispo Macedo se relaciona com outros discursos religiosos no Brasil Contemporâneo? Para responder a estes questionamentos gerais, a tese está estruturada em introdução, quatro capítulos, considerações finais e bibliografia, cada qual com objetivos específicos e perguntas que devem nortear sua redação. A seguir descreverei cada item com seus detalhes. Esta introdução teve como objetivo elaborar um esboço do que pretendo tratar em cada um dos capítulos da tese. Não desejo carregar a introdução de delimitações e esboços teóricos, deixando estas reflexões para o primeiro capítulo. A introdução deverá responder à seguinte pergunta: de forma breve e panorâmica, como será realizada a pesquisa? O Primeiro capítulo, que tem como título “Por uma genealogia do Diabo – O Diabo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a história cultural”, tem como objetivo construir a espinha dorsal teórica e metodológica da pesquisa como um todo. Pretendo começar com a delimitação do “objeto” e a exposição da problemática fundamental da

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pesquisa, para depois justificar as opções teóricas e metodológicas e demonstrar quais serão as fontes e como pretendo usá-las. Ao final do capítulo, espero ter respondido às seguintes perguntas: Qual é o “objeto" a ser pesquisado? Qual é o problema da pesquisa? Que teoria dará sustentação à pesquisa? Quais são os conceitos teóricos fundamentais da pesquisa? Como os pensamentos de M. Foucault, de L. Febvre, M. Bloch e F. Braudel se inserem nos debates sobre a história cultural? Como será realizada a pesquisa? Quais são as fontes a serem usadas em cada capítulo? Como as fontes serão utilizadas? O segundo capítulo, “O Diabo entra em cena e expande seu Reino - A construção do Diabo na história cultural do cristianismo”, tem como objetivo fazer uma análise das práticas concernentes ao Diabo na cultura ocidental cristã desde os tempos bíblicos até a atualidade. Pretendo historiar as continuidades e rupturas da concepção do Diabo na cultura ocidental. O capítulo deverá responder à seguinte pergunta: Quais são as faces que o Diabo assumiu ao longo da história do cristianismo? O terceiro capítulo, “O Diabo testemunha o Pentecostes - A construção do Diabo na história cultural do pentecostalismo”, tem como objetivo fazer uma análise das práticas acerca do Diabo no âmbito do pentecostalismo, procurando detalhar as continuidades e as rupturas que existem entre práticas discursivas sobre o Diabo na I.U.R.D. e no pentecostalismo. Tem como questões fundamentais as seguintes: Como

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nasceu o pentecostalismo? Quais são as permanências e as rupturas que a citada igreja mantém com o fenômeno denominado de pentecostalismo? A sua fala sobre o Diabo, de forma particular, diferencia-se da fala do pentecostalismo, de forma geral? O quarto e último capítulo, de título “O Diabo chega ao Reino de Deus no Brasil - A construção do Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil contemporâneo”, tem como objetivos analisar a configuração do campo religioso brasileiro e elaborar o mapeamento deste para localizar o discurso sobre o Diabo da I.U.R.D. neste contexto social e discursivo. As seguintes perguntas devem ser respondidas: Como está configurado o campo religioso brasileiro na atualidade? Quais são os embates que a I.U.R.D. enfrenta no campo religioso brasileiro? Como as práticas discursivas sobre o Diabo instrumentalizam estes embates? Nas considerações finais, procuro fazer uma breve síntese de cada capítulo, para, em seguida avaliar o papel que Igreja Universal tem desempenhado no cenário social brasileiro. As perguntas a serem respondidas são as seguintes: Qual foi o foco de cada capítulo? Qual o papel e a relevância da Igreja do Bispo Macedo no Brasil contemporâneo?

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1- POR UMA GENEALOGIA DO DIABO: O DIABO, A IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS E A HISTÓRIA CULTURAL

Este primeiro capítulo tem como objetivo construir a espinha dorsal teórica e metodológica da pesquisa como um todo. Pretendo começar com a delimitação do “objeto” e a exposição da problemática fundamental da pesquisa, para depois justificar as opções teóricas e metodológicas e demonstrar quais serão as fontes e como pretendo usá-las. Ao final do capítulo, espero ter respondido às seguintes perguntas: Qual é o “objeto” a ser analisado? Qual é o problema da pesquisa? Que teoria dará sustentação? Quais são os conceitos teóricos fundamentais desta tese? Como o pensamento de Foucault e o de historiadores dos Annales, como L. Febvre, M. Bloch e F. Braudel, se inserem nos debates sobre a história cultural? Como será realizada a pesquisa? Quais são as fontes a serem usadas em cada capítulo? Como as fontes serão utilizadas?

1.1- As práticas discursivas acerca do Diabo como objeto

A presente tese tem como objeto as práticas discursivas acerca do Diabo produzidas no âmbito da I.U.R.D, desde a sua fundação como instituição (1977) até o presente (2005). Esta delimitação permite

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contemplar desde as primeiras publicações da denominação sobre o Diabo até as recentes pregações de sua liderança publicadas na rede mundial de computadores e em seus periódicos. Deste modo, procuro analisar as práticas discursivas da igreja liderada pelo Bispo Macedo em uma temporalidade em curso, pesquisando-a na sua totalidade histórica enquanto instituição. De forma mais analítica, poderia dizer que a construção do objeto da pesquisa se dá pelo entrecruzamento de dois aspectos: 1) um recorte institucional/espacial, a I.U.R.D e 2) um recorte temático/teórico, as práticas discursivas sobre o Diabo. Abaixo gostaria de detalhar e justificar estes dois recortes. (1) A I.U.R.D. foi fundada em 1977 e teve, desde os seus primórdios, Edir Macedo como uma das mais expressivas e carismáticas lideranças. Esta dívida de reconhecimento para com seu principal fundador parece suficientemente paga na atualidade pela instituição: Com o objetivo de pregar o evangelho a toda criatura e levar as pessoas a encontrarem o verdadeiro caminho da paz e da felicidade eterna, há cerca de vinte e cinco anos, o jovem pastor, Edir Macedo, usava toda a sua fé e determinação numa praça do Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, para realizar várias pregações. Em julho de 1977, este jovem, auxiliado por outras pessoas, que compartilhavam da mesma fé, fundava a primeira Igreja Universal do Reino de Deus. Não demorou muito para que a IURD mostrasse que tinha surgido pela vontade do Espírito Santo. O poder de Deus se manteve tão forte sobre a Igreja que, logo, outros espaços precisaram ser alugados para dar lugar a mais fiéis. Naquela época, a divulgação dos cultos era feita por dez obreiros, que colavam folhetos

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nos postes e convidavam as pessoas para assistirem às reuniões.7

Como costuma acontecer com freqüência no âmbito do pentecostalismo, a I.U.R.D. nasceu como fruto de um cisma no seio de uma outra estrutura eclesiástica, a Igreja de Nova Vida. Ricardo Mariano afirma que esta igreja, apesar de pequena, desempenhou um papel importante no sentido de fornecer lideranças que iriam formar duas das igrejas pentecostais mais importantes da atualidade, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a I.U.R.D.8 Da Igreja de Nova Vida é que saíram Romildo Ribeiro Soares, Edir Bezerra Macedo e Roberto Augusto Lopes para fundar a I.U.R.D. Roberto A. Lopes enveredou pelo mundo da política, Romildo R. Soares e Edir Macedo se desentenderam até que este último assumiu sozinho a liderança da Igreja Universal. Edir Macedo é de uma família de origem nordestina. Seus pais migraram de Alagoas para o interior do Rio de Janeiro e tiveram 33 filhos, sendo que apenas 7 sobreviveram. Edir Macedo é o quarto entre eles. Aos 17 anos, tornou-se empregado da loteria do estado do Rio de Janeiro. Antes de se filiar à Igreja de Nova Vida, peregrinou pelo catolicismo romano e pela umbanda. Parece ter conseguido relativo sucesso como funcionário do estado do Rio de Janeiro, mas aos 33 anos deixou o trabalho

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www.igrejauniversal.org.br. MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo brasileiro, p. 51.

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“secular” para se dedicar à atividade religiosa.9 Edir Macedo desligou-se da Igreja de Nova Vida para fundar o que viria a ser a I.U.R.D. Inicialmente, a nova igreja, fundada por ele e seus parceiros de empreitada, chamava-se Igreja da Bênção e funcionava em uma ex-funerária na cidade do Rio de Janeiro. No ano de 1977, a igreja foi registrada com o nome que a projetaria no Brasil e em vários países do mundo.10 Em julho de 1980, na comemoração do terceiro ano da igreja, Edir Macedo foi sagrado bispo por Roberto A. Lopes, assumindo a forma de governo episcopal para sua igreja.11 Após 25 anos à frente da igreja que fundou com outros dois colegas, o Bispo Macedo ostenta um currículo bastante extenso, com diversos títulos “acadêmicos”12. Onde houver um computador ligado à rede mundial de computadores, as pessoas podem acessa a galeria de títulos do Bispo: Bacharel em Teologia - Faculdade Evangélica de Teologia, Seminário Unido; Doutor em Teologia - Faculdade de Educação Teológica no Estado de São Paulo (FATEBOM); Doutor em Filosofia Cristã - Faculdade de Educação Teológica no Estado de São Paulo (FATEBOM); Doutor Honoris Causa em Divindade Faculdade de Educação Teológica no Estado de São Paulo (FATEBOM); Mestre em Ciências Teológicas 9

FRESTON, P. “Breve história do pentecostalismo brasileiro”. In: ANTONIAZZI, A. et ali. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo, p. 132. 10 Ibid., p. 133. 11 Cf. MARIANO, R. Op. cit., p. 56. Já FRESTON, P. Op. cit., p. 134 diz que o fato ocorreu em 1981, ocasião em que Edir B. Macedo e Roberto A. Lopes instituíram o episcopado e se sagraram bispos mutuamente. 12 Os títulos “acadêmicos” do Bispo Macedo que serão listados a seguir, como se pode ver, são de uma instituição sem legitimidade no campo intelectual, uma vez que seus cursos são famosos por serem oferecidos por correspondência e altos custos.

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Federación Evangélica Española de Entidades Religiosas F.E.E.D.E.R (MADRID, ESPAÑA).13

A expansão da I.U.R.D. começou pelo território nacional. Tendo nascido no Rio de Janeiro, a igreja começou a se espalhar para os demais estados até atingir a totalidade do país14: Já nas pregações, realizadas desde o coreto do Méier, o pastor Macedo costumava dizer que a Igreja Universal tinha por meta pregar o Evangelho aos quatro cantos do mundo e, para isso, ele tinha que pensar grande e usar a fé. Fruto desta certeza, em um curto espaço de tempo, a IURD foi crescendo e alcançando outros estados brasileiros, levando sempre uma palavra de fé, esperança e amor para todas as pessoas que realmente desejam ver o poder de Deus se manifestando em suas vidas. A expansão ocorreu rapidamente. Depois de estabelecer os templos da IURD nos principais pontos do Rio de Janeiro, o trabalho seguiu para os estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul... Atualmente, a Igreja Universal está presente em todo território nacional, desenvolvendo o evangelismo de forma séria e dedicada, sempre com a visão de que o Espírito Santo é quem dirige esta grande obra.15

A I.U.R.D. foi se consolidando no Brasil ao mesmo tempo que tratou de lançar as suas raízes em outros países. Antes mesmo de se consolidar em território nacional já começava a se fazer presente no exterior. Hoje a igreja

possui extensão em quatro continentes, tendo

chegado a muitos países: A primeira IURD no exterior foi fundada, nos Estados Unidos, em 1980, em Mount Vermont, no estado de Nova 13

www.bispomacedo.com.br As informações a seguir, mesmo que tenham sido fornecidas pela própria I.U.R.D., parecem estar em sintonia com publicações mais recentes que procuram analisar a expansão da igreja no Brasil e no exterior. Ver ORO, A. P. et ali. Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. 15 www.igrejauniversal.org.br. 14

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Iorque. A "Universal Church", como é chamada, foi só o primeiro passo, pouco depois outros bairros novaiorquinos, como Manhattan e Brooklin, viram o poder da Universal, que também conseguiu conquistar outras cidades e estados norte-americanos. Desde a primeira igreja nos EUA, pisar em solo estrangeiro é um compromisso. A partir de então, a IURD vem conquistando outros países da América, da Europa, da Ásia e da África. Alguns políticos e instituições religiosas apresentaram vários obstáculos para a realização desta obra. Todavia, nada fez a IURD esmorecer. Afinal, a batalha é longa e quem é verdadeiramente de Deus não retrocede, ao contrário, se enche de fé e segue em frente. Vinte e cinco anos se passaram e, atualmente, a IURD está presente em mais de 80 países. O trabalho está crescendo, dia após dia, mostrando ao mundo que somente Jesus Cristo é a solução para todos os problemas.16

Esta igreja, fundada no dia 09 de julho de 1977, possuidora de igrejas locais em todos os estados do Brasil e em diversos países, ostentadora de relativa visibilidade na mídia escrita e eletrônica, será o espaço institucional onde as práticas discursivas sobre o Diabo serão investigadas nesta tese. (2) Se a I.U.R.D., enquanto instituição fornece uma primeira delimitação do objeto desta tese, as práticas discursivas acerca do Diabo configuram a sua outra dimensão. Vou explicitar como compreendo este antigo personagem do cristianismo. Entre o fim do Antigo e o início do Novo Testamento, muita literatura foi produzida17, mas não integrada ao cânon bíblico. Isto fez

16

Ibid. Penso em textos deutero-canônicos, como 1 e 2 Macabeus, Tobias, Judite, Eclesiástico, Sabedoria e Baruc, e em apócrifos, como 3 e 4 Macabeus, testamento de Moisés e Testamento dos Doze Patriarcas.

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com que surgisse uma lacuna entre o Antigo e o Novo Testamentos. Fez também com que mudanças em relação à concepção teológica do mal não fossem percebidas de forma gradual. O período sob hegemonia persa e grega18 fez com que o judaísmo e, depois, também, o cristianismo como herdeiro desta tradição, fossem profundamente influenciados pelas concepções dualistas destes povos. Nesse período teria havido um deslocamento, no âmbito da cultura judaica, de uma visão monista (Deus como o autor e mantenedor da ordem cósmica) para uma visão dualista (Deus enfrenta um adversário poderoso para manter a ordem cósmica). O cristianismo antigo, entre os séculos I e IV, optou por uma visão intermediária entre o monismo do Antigo Testamento e o dualismo persa e grego, que pode ser denominada de semi-dualista. Segundo esta visão, Deus é soberano e criador de todas as coisas, como afirma o Antigo Testamento, mas não age de forma maléfica, nem é o responsável pelo que existe de mal no mundo. O mal teria entrado no mundo devido ao livre-arbítrio dado às suas criaturas humanas e angelicais. A partir do pecado (ser humano) e da rebeldia (anjos), o mal entrou no mundo e passou a fazer oposição a Deus. A posição cristã acerca do mal preserva a soberania divina na criação do mundo, como na religião dos antigos israelitas, combinada com a concepção de que há um adversário maligno do Deus bom, como é apresentado na religião persa/iraniana e na 18

A região da Palestina foi dominada pelos persas entre os séculos VI e IV a.C. e pelos gregos entre os séculos IV e I a.C.

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filosofia antiga dos gregos. A igreja medieval iria identificar a face do Diabo com a dos oponentes políticos e doutrinários da religião cristã, que fora um fenômeno plural em seus primórdios, vai se transformando em uma expressão religiosa que passa a excluir as manifestações que venham divergir do que a hierarquia da igreja estabelece como sendo correto dogmaticamente. Ao longo da idade média, uma forte hierarquia se consolidou no seio da igreja, não só com a exclusão de todos que pensam diferente, mas, sobretudo, com a exclusão da mulher. Motivos muito corriqueiros podiam ser transformados em pretexto para levar uma pessoa a um tribunal inquisitorial; bastava a denúncia de uma pessoa qualquer contra quem quer que fosse; se o denunciado negasse as acusações, era submetido a torturas severas, onde a pessoa passava a dizer o que sabia e o que entendia ser o que os seus inquisidores queriam saber, mesmo que não fosse real o seu relato. Sem dúvida, esta foi uma das principais fontes de criação do estereótipo feminino enquanto bruxa que tem poderes sobrenaturais malignos, como se metamorfosear em animais, voar sobre vassouras, elaborar poções mágicas que causem o mal a outras pessoas como a impotência sexual nos homens etc. Na disputa entre a igreja medieval e as divindades do "outro", a primeira saiu vencendo e as demais foram se alojar no inferno, local onde não poderiam concorrer com a teodicéia cristã. Não só não

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estariam à altura da explicação para o mal do cristianismo, pelo menos com o status de religião, como involuntariamente contribuíam para reforçar a sua eficácia como religião capaz de exterminar o mal existente neste mundo. Carlos Roberto F. Nogueira diz que nos tempos modernos o Diabo triunfou na imaginação das pessoas no mundo ocidental, sobretudo, quando a imprensa permite difundir com mais rapidez e detalhes tratados, opiniões, imagens etc.19 Em acordo com esta afirmação está Laura de Mello e Souza, quando afirma que "foi, portanto, no início da Época Moderna, e não na Idade Média, que o inferno e seus habitantes tomaram conta da imaginação dos homens do Ocidente".20 Também a divisão no seio da igreja ocidental no início dos tempos modernos iria reforçar a necessidade e a concretude do Diabo. Tanto a reforma protestante como a reação católica romana àquela iriam precisar do Diabo para justificar o seu esforço de levar salvação aos "gentios".21 O Diabo iria fincar suas raízes na cultura brasileira. Mesmo para além do período colonial, Satã iria marcar sua presença. Este personagem está presente na I.U.R.D. dos dias de hoje com algumas características do passado (semi-dualismo do cristianismo antigo, 19

Ibid., p. 76. SOUZA, L. M. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial, p. 139. 21 Ibid., p. 78. 20

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demonização do outro, como no período medieval, triunfante como tem acontecido desde a modernidade), mas também com seus aspectos peculiares (o Pai da mentira está fundamentalmente identificado com o catolicismo romano e com a umbanda e é o grande causador da miséria humana). Cabe investigar detalhadamente em que medida suas facetas na I.U.R.D. apresentam continuidades com esta história de mais de dois milênios. Sobretudo, interessa-me investigar as descontinuidades que o Diabo da I.U.R.D. demonstra em relação a estes milênios de história do cristianismo. Em que esta figura personificadora do mal no âmbito I.U.R.D. se diferencia de seus sucessores ou antecessores na história do cristianismo? Que elementos da cultura brasileira estão presentes nesta configuração contemporânea do Mal?

1.2- As fontes para análise das práticas discursivas acerca do Diabo O pesquisador ou pesquisadora da I.U.R.D. tem à sua disposição uma grande quantidade de fontes. Como não é possível analisálas na sua totalidade, estabelecerei alguns limites. Estas fontes serão utilizadas, sobretudo, no quarto capítulo (“O Diabo chega ao Reino de Deus no Brasil - A construção do Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil contemporâneo”), onde analisarei as fronteiras do discurso sobre o Diabo na I.U.R.D., bem como a forma como este legitima práticas de poder

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sobre os corpos de seus fiéis. Este será o capítulo no qual pretendo que seja o mais original de toda a tese, uma vez que depende sobremaneira de fontes primárias sobre o assunto. Trabalho com dois tipos de fontes primárias, conforme descrição abaixo. (1) Livros de líderes da I.U.R.D. publicados pela editora da instituição. Como possui parque gráfico e editora próprios, há uma infinidade de livros de seus líderes à venda nas livrarias localizadas em suas igrejas locais. A I.U.R.D. não possui seminários/escolas para formação de seus líderes, mas consegue, através de suas publicações escritas, estabelecer uma teologia oficial com o intuito de padronizar seus conceitos e práticas. Selecionei livros de líderes de expressão nacional que analisam questões concernentes ao Diabo. Algumas obras se dedicam exclusivamente à demonologia,22 como é o caso de “Orixás, caboclos e guias” do Bispo Macedo, outras tratam de assuntos diferentes, mas fazem alguma referência ao tema. Penso que desta forma é possível estabelecer um corpus da demonologia oficial da igreja. A vantagem deste tipo de fonte é a de

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Cf. SOUZA, L. M. Inferno Atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI – XVIII, p. 2326. A autora diz que “desde o século XIV o pensamento erudito europeu via-se às voltas com a ameaça de coortes demoníacas, formulando seus temores num corpo doutrinário que ficou conhecido como demonologia.” Para a historiadora brasileira as “origens” da demonologia apontam para o pensamento de Santo Agostinho, mas esta ciência teológica viria a atingir toda a sua riqueza na era medieval, tendo como exemplar, dentre vários outros, o tratado conhecido como “Martelo das feiticeiras”. Com o advento da conquista das Américas, a demonologia passaria ser uma estratégia bastante comum entre os europeus: “A demonologia surge, assim, como muito mais que um conjunto de tratados referentes à perseguição de bruxa, e se espraia por outras obras além dos manuais de feitiçaria, sendo possível detectar uma demonologia em sermões católicos, nos textos de pregação protestante, enfim em toda a produção epistolar e tratadística voltada para a descrição da natureza do continente americano e dos hábitos e costumes de seus habitantes.”

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permitir analisar a relação da demonologia com outros temas teológicos da igreja.23 (2) Regimento interno da I.U.R.D. também publicado por sua editora. Este documento enfoca importantes aspectos da vida burocrática da igreja. Há um capítulo sobre o “Ministério de libertação”, a prática institucional de exorcismo, com suas respectivas qualificações e fundamentações. A importância desta fonte está no fato de trazer dados sobre a demonologia em um contexto mais amplo da vida institucional da igreja.24 Esta tese depende de fontes secundárias para os demais capítulos. O primeiro capítulo (“Por uma genealogia do Diabo – O Diabo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a história cultural”) faz um delineamento teórico e metodológico do trabalho, interagindo portanto com a literatura produzida pelos historiadores e historiadoras da cultura. O segundo (“O Diabo entra em cena e expande seu Reino - A construção do Diabo na história cultural do cristianismo”) e o terceiro (“O Diabo testemunha o Pentecostes - A construção do Diabo na história cultural do pentecostalismo”) capítulos levantam dados que servirão, respectivamente, para a construção de uma genealogia do Diabo e do pentecostalismo no quarto e último capítulo. Os capítulos dois e três irão depender de trabalhos 23

CABRAL, J. Entre o vale e o monte; HELDE, B. Um chute na idolatria; MACEDO, E. O diabo e seus anjos; Mensagens; O perfeito sacrifício; Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? O despertar da fé; O poder sobrenatural da fé e MADURO, R. Nossa batalha. 24 ESTATUTO E REGIMENTO INTERNO.

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de outros pesquisadores e pesquisadoras. Se fosse trabalhar com fontes primárias também na redação destes capítulos, certamente a tarefa seria por demais extensa, além do que há material bibliográfico em quantidade e qualidade suficientes para levar a cabo os objetivos que tenho. Procurei selecionar textos e obras de estudiosos e estudiosas das mais variadas áreas, mas que representassem pesquisas acadêmicas de qualidade reconhecida em seus respectivos campos.

1.3- Perspectivas teóricas para uma história cultural do Diabo

O “objeto” empírico desta tese será analisado a partir de uma compreensão teórica regida pela historiografia francesa. Colocarei o foco em alguns textos do filósofo Michel Foucault para, a partir deste autor, estabelecer um diálogo com historiadores com quem sua obra manteve uma relação interdiscursiva e/ou intertextual. Na introdução de uma de suas obras teóricas mais importantes25, o referido pensador faz severas críticas ao trabalho dos historiadores positivistas ao mesmo tempo que propõe um modo de fazer historiografia que pode facilmente ser identificado com o da Escola dos Annales. Ao cotejar as reflexões teóricas de Foucault com textos de 25

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber, p. 3-20.

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autores da primeira e segunda gerações da citada escola historiográfica, pareceu-me muito evidente as similaridades entre ambas as formas de pensar. Espero deixar evidente estas semelhanças entre o modo de filosofar de Foucault com uma série de análises teóricas de autores como M. Bloch, L. Febvre e F. Braudel ao longo deste sub-item. Algo parecido acontece entre Foucault e M. de Certeau, historiador da terceira geração da Escola dos Annales. Neste caso a relação não é apenas interdiscursiva, mas há uma evidente intertextualidade. Em um dos cursos que ministrou no Collège de France, Foucault utiliza abundantemente o livro de M. de Certeau “La possession de Loudun”.26 Por sua vez, M. de Certeau cita em algumas ocasiões o seu compatriota em uma coletânea de ensaios sobre teoria da história.27 Foucault foi um dos intelectuais que mais exerceu influência sobre o mundo acadêmico contemporâneo. Seu ambiente histórico de atuação intelectual foi, principalmente os anos 60, 70 e início dos 80 do século XX, uma vez que nasceu em outubro de 1926 e faleceu em junho de 1984. Embora sua obra possa ser definida como tendo um caráter eminentemente filosófico, suas idéias tiveram forte repercussão sobre as ciências sociais e humanas de uma forma geral. A historiografia viria a ser a área pela qual Michel Foucault mais transitaria em suas

26

Id. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Ver, por exemplo, a p. 264. CERTEAU, M. A escrita da história. Ver a título de ilustração as notas 9 (p. 26), 20 (p. 61), 36, 48, 50 e 51 (p. 63), 10 (p. 110), 24 (p. 111), 78 e 81(p. 116).

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reflexões filosóficas, fato que pode ser verificado no próprio título de seus principais trabalhos: “Doença mental e psicologia” (1954), “História da loucura na idade clássica” (1961), “O nascimento da clínica” (1963), “As palavras e as coisas” (1966), “Arqueologia do saber” (1969), “Vigiar e punir” (1975) e “História da sexualidade”, em três volumes, “A vontade de saber” (1976), “O uso dos prazeres” (1984) e “O cuidado de si” (1984). Hoje parece haver um certo consenso entre os estudiosos e estudiosas do pensamento de Foucault em considerar que a sua obra se concentra na análise das práticas. Embora a análise das práticas seja uma continuidade nas reflexões do autor, sua obra seria composta de três fases: 1) arqueologia do saber, voltada para a análise das práticas discursivas, buscando compreender como se relacionam verdade e saber; 2) genealogia do poder, fase em que o autor procura observar como se constroem as práticas do poder a partir das suas relações com o saber e o corpo; 3) práticas de subjetivação, momento final de sua obra em que procura analisar o que as pessoas fazem de si mesmas. Gilles Deleuze dizia que o cerne das reflexões de seu compatriota era a epistemologia. Toda a sua obra esteve voltada para a investigação da seguinte questão: “Que significa pensar?” O foco das suas reflexões estava colocado sobre a história, mas não para fazê-la de modo convencional, como sendo um fim em si mesmo, e sim do pensamento: “Uma história, mas do pensamento enquanto tal. Pensar é experimentar, é

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problematizar. O saber, o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do pensamento.” Por isso, Foucault faz pesquisa histórica e não trabalho de historiador.28 O fato de ser um filósofo, que transitou pelo campo da historiografia e refletiu sobre como se dava a construção de “objetos” da psicologia e da medicina, fez com que fosse muitas vezes mal compreendido. Produzir reflexões que estão no limiar de diversos campos (psicologia, medicina, historiografia), mesmo tendo como questão central o pensamento (objeto da Filosofia), é algo para pessoas ousadas e que acumularam uma vasta erudição, qualidades que Foucault certamente reunia, mas também teve o demérito de criar dificuldades de identificação por seus pares. Afinal, quem seriam os seus pares? Não tenho condições de responder por todos os campos acima citados, nem por outros que ainda poderiam ser mencionados, mas somente pela minha área de conhecimento. Por isso, antes de tecer considerações sobre a repercussão do pensamento de Foucault sobre a historiografia, gostaria de discutir algumas dificuldades de aceitação deste pensador pelos historiadores e historiadoras, bem como analisar sua relação com a historiografia da cultura. Segundo Ronaldo Vainfas, o livro “A nova história cultural”, hoje considerado um clássico em termos de teoria da 28

DELEUZE, G. Foucault, p. 124.

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historiografia da cultura, apresenta quatro modelos de história cultural: 1. a história da cultura à moda de Foucault; 2. a história da cultura dos “historiadores”, reduzida a uma comparação entre as idéias de E. P. Thompson e de Natalie Davis; 3. a história da cultura de inspiração nitidamente antropológica, limitada, no caso, a uma comparação entre Geertz e Sahlins; 4. a história cultural relacionada à crítica literária e à discussão das relações entre história e literatura, limitando-se o artigo a comparar Hayden White 29 e Dominick Lacapra.

O historiador brasileiro apresenta algumas restrições a estas supostas maneiras de se fazer história cultural. Não pretendo analisar todas as restrições, apenas chamo atenção para a observação que faz em relação à obra de Foucault: “No mais, o livro [“A nova história cultural”] apresenta incongruências notáveis, ao incluir entre os tais 'novos' modelos a obra de Foucault, que além de não ser nova contém um franco questionamento da história como forma de conhecimento do real.”30 É fácil concordar com a primeira afirmação de Vainfas. Posso citar como exemplo as primeiras páginas da “Arqueologia do saber”, onde Foucault faz uma série de críticas à historiografia que ainda estão longe de fazer eco entre a maioria dos historiadores e historiadoras mesmo dos dias de hoje. Mas, se as críticas à historiografia e as propostas para se fazer história problematizando conceitos e métodos tradicionais são antigos, a assimilação destas críticas e propostas é bastante nova neste campo. Se desde o fim dos anos 1960, Foucault começou a elaborar suas críticas e 29 30

VAINFAS, R. Os protagonistas anônimos da história: micro-história, p. 57-58. Ibid., p. 59.

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propostas, somente nos anos 1980 e 1990 alguns historiadores e historiadoras começaram a produzir pesquisas que incorporaram suas idéias. Penso que a crítica de Vainfas, para ser mais adequada, deveria se dirigir à inércia, lentidão ou incapacidade dos historiadores em assimilar proposições teóricas. A segunda crítica de Vainfas, a de que Foucault não merece ser apreciado como modelo teórico de historiografia da cultura porque questiona a história como forma de conhecimento do real, pode provocar um debate bastante interessante. Talvez a “antiga” explicação de Patricia O'Brien31 sobre a resistência de historiadores da Europa e dos Estados Unidos ao pensamento foucaultiano também se aplique aos pesquisadores brasileiros: “A reação dos historiadores a Michel Foucault tem sido conflitante e problemática. Na França e nos Estados Unidos, a profissão tem demorado a reconhecer como um de seus membros alguém que não teve formação na disciplina histórica.” Não pode ser historiador alguém que não se graduou ou não se pós-graduou em história em uma universidade? Não pode ser considerada historiadora uma pessoa que questiona a pretensão de seus pares de serem os únicos a poderem dizer a “verdade” sobre o passado? Só pode ser historiador digno deste nome se pretender que sua fala sobre o passado corresponda sempre à realidade? A historiadora brasileira Maragareth Rago parece fornecer 31

“A história da cultura de Michel Foucault”, In: HUNT, L. A nova história cultural, p. 36. O livro é o mesmo supra citado e que serve de base às críticas de Vainfas.

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um diagnóstico do problema da assimilação do pensamento de Foucault pelos historiadores e historiadoras de forma mais razoável. A resistência em relação ao filósofo francês estaria nas suas críticas à pretensão destes de serem os únicos a poderem dizer a verdade sobre o que aconteceu no passado, bem como na superficialidade das interpretações de sua obra. Afinal, Foucault nunca foi óbvio e transparente, apesar de atentar para as superfícies e para o imediato que escapa ao olhar. Mal lido, mal escutado, mal compreendido, o filósofo foi soterrado por interpretações e críticas que invalidam seu aporte. Mais ainda, vários de seus conceitos e problematizações são incorporados à sua revelia nos estudos históricos, sem que lhe reconheçam os créditos.32

Na forma como Rago compreende o pensamento foucaultiano, o filósofo não seria um assassino da história, mas seu “defensor”. Claro que Foucault tece críticas a determinadas maneiras de se pensar e produzir história, mas sua obra sempre dependeu da dimensão temporal, elemento fundamental à historiografia. Algumas décadas atrás, exatamente quando a História Social, de inspiração marxista, ganhava espaço na academia, questionando o establishment ao posicionar-se contra certo positivismo na produção do conhecimento histórico, Foucault, na contramão, publicava A Arqueologia do Saber, seu livro de 1969, partindo em defesa da História. Denunciava os atentados aos seus direitos, quando se ignoram os acidentes, os acasos, os desníveis, em nome de uma hom*ogeneização totalizadora 33 quando se é incapaz de pensar as descontinuidades .

Dois anos depois de publicar “A arqueologia do saber”, o 32

“Libertar a história”, In: RAGO, M. et ali, Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas, p. 255. 33 Ibid., p. 257.

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filósofo francês voltaria a tecer críticas severas ao trabalho dos historiadores e historiadoras. Em 1971, no

seu texto “Nietzsche, a

genealogia e a história”, Foucault se basearia no filósofo alemão do século XIX para mostrar os problemas decorrentes de um modo de fazer historiografia que qualificava como teleológico ou racionalista.34 Algumas das dificuldades que Foucault encontrava na historiografia teleológica eram: 1) tendência a dissolver o acontecimento singular em uma continuidade ideal, um movimento teleológico ou encadeamento natural; 2) procura lançar um olhar para o distante, como as épocas mais distantes, as formas mais elevadas, as idéias mais abstratas ou as individualidade mais puras e 3) nega ser um conhecimento perspectivo. Especialmente este último aspecto destacado pelo filósofo francês, o de que a historiografia não pode negar ser um saber perspectivo, parece-me em plena sintonia com as observações de seu compatriota historiador: O mesmo se passa com o historiador. Com o historiador a quem nenhuma Providência fornece fatos brutos. Fatos dotados excepcionalmente de uma existência de fato perfeitamente definida, simples, irredutível. Os fatos históricos, mesmo os mais humildes, é o historiador que os chama à vida.35

Outra passagem do francês annalista36 parece-me ainda

34

FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder, p. 28. 35 FEBVRE, L. Combates pela história, p. 32. 36 Referente à Escola dos Annales.

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mais elucidativa da proximidade entre ambos os pensadores sobre como deve laborar o historiador. O tom de Lucien Febvre, ao criticar o cientificismo que assolava o campo historiográfico, é o mesmo utilizado por Foucault nas suas ácidas análises do positivismo que ainda invadia o campo filosófico: “Ora, o que nos ensinam essas ciências solidárias, cujo exemplo deve pesar sobre a história? Muitas coisas, mas especialmente isto: que qualquer fato científico é 'inventado' – e não um dado bruto que se apresenta ao sábio”. 37 Em oposição à visão teleológica da história, em voga em seu tempo, Foucault propõe um trabalho historiográfico que se aproxime da genealogia nietzschiana, o que iria chamar de história “efetiva”. Esta maneira de fazer historiografia seria caracterizada da seguinte maneira: 1) considera que a história é marcada por um jogo de forças que não obedecem a uma destinação, mas somente seguem o acaso da luta; 2) lança seus olhares sobre o que está próximo, como o corpo, o sistema nervoso, os alimentos, a digestão e as energias e 3) não teme ser um saber perspectivo.38 Esta proposta de uma historiografia que coloca seu foco sobre formas de pensamento tanto quanto sobre práticas, além de se debruçar sobre a vida humana e seus conflitos, era também a plataforma de Lucien Febvre. Vejamos as palavras combativas e apaixonadas do mestre e

37

Ibid., p. 63. FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder, p. 28-30.

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um dos fundadores da Escola dos Annales: É tudo? Não. Não é mesmo nada, se vocês continuarem a separar a ação do pensamento, a vida do historiador da vida do homem. Entre a ação e o pensamento, não há separação. Não há barreira. É preciso que a história deixe de vos aparecer como uma necrópole adormecida, onde só passam sombras despojadas de substância. É preciso que, no velho palácio silencioso onde ela dorme, vocês penetrem, animados da luta, todos cobertos da poeira do combate, do sangue coagulado do monstro vencido – e que, abrindo as janelas de par em par, avivando as luzes e restabelecendo o barulho, despertem com a vossa própria vida, com a vossa vida quente e jovem, a vida gelada da princesa adormecida.39

Pelo que se pode ver pelos argumentos acima expostos, Foucault não se coloca como um inimigo ou assassino da historiografia de uma forma geral, mas como crítico de um determinado modo de produzir conhecimento sobre a história. O filósofo francês não apenas critica o modo tradicional de se escrever história, mas demonstra o que compreende ser a tarefa da historiografia desde a sua perspectiva. Penso que, para não ficar apenas no ato de refutar críticas ao pensamento de Foucault, caberia agora demonstrar em que consistiria produzir uma pesquisa histórica sob influência de suas idéias. Em um estudo de caráter historiográfico sobre o discurso acerca do mal na I.U.R.D., a produção escrita de Foucault pode contribuir em pelo menos três aspectos: 1) na construção do próprio “objeto” de pesquisa através do conceito de prática discursiva; 2) no estabelecimento de parâmetros

39

Ibid, p. 40.

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metodológicos de investigação do “objeto” a partir do conceito de genealogia e 3) na análise do “objeto” de forma propriamente dita através da distinção que o autor faz entre feitiçaria e possessão. A seguir, empenho-me em explicitar o estudo do referido objeto empírico a ser pesquisado a partir de um detalhamento destes três grupos de conceitos.

1.3.1- O Diabo como discurso Se o historiador se ocupa não do que fazem as pessoas, mas do que dizem, o método a ser seguido será o mesmo; a palavra discurso ocorre tão naturalmente para designar o que é dito quanto o termo prática para designar o que é praticado. Foucault não revela um discurso misterioso, diferente daquele que todos nós temos ouvido: unicamente, ele nos convida a observar, com exatidão, o que é assim dito.40

Vou tomar como ponto de partida as considerações de Foucault sobre a historiografia no primeiro capítulo de “A arqueologia do saber”.41 No início do capítulo, o filósofo francês diz qual será o seu objeto de análise, os problemas teóricos, e qual será o universo empírico a partir do qual tecerá suas considerações: a história das idéias, do pensamento, das ciências, do conhecimento. O texto acima citado começa com proposições negativas, 40 41

VEYNE, P. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história, p. 252. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber, p. 23-34.

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procedimentos que devem ser descartados pelo historiador ou historiadora: 1) libertar-se de um jogo de noções que servem de variações ao tema da continuidade: tradição, influência, desenvolvimento, evolução, mentalidade e espírito; 2) inquietar-se diante de certos recortes/agrupamentos que se tornaram familiares: política, literatura, livro e obra; 3) renunciar a dois temas ligados entre si e que se opõem: um que nega ser possível assinalar a irrupção de um acontecimento verdadeiro no âmbito do discurso e outro que afirma que todo discurso manifesto repousa sobre um já dito. Tendo analisado o que vai ser descartado, Foucault afirma que o historiador deve se ocupar com a análise do campo discursivo. Para tal análise, o autor deixa três recomendações importantes: 1) suprimir as unidades inteiramente aceitas para dar lugar ao enunciado e sua singularidade como acontecimento; 2) tornar-se livre para descrever jogos de relações entre enunciados diferentes e entre estes e suas práticas; 3) descrever unidades a partir de um conjunto de decisões controladas. Em outro importante trabalho42, uma conferência, Michel Foucault também fornece alguns dados fundamentais para a análise do campo discursivo. O texto possui quatro subdivisões. Na primeira faz uma apresentação do problema que pretende tratar: a importância da autoria de uma determinada fala/obra. De acordo com o filósofo francês, a crítica literária tentou decretar a morte da autoria, mas as noções que deveriam 42

Id. O que é um autor? In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault: estética: literatura e pintura, música e cinema.

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substituí-la são demasiadamente problemáticas. Então, os literatos procuraram se ocupar de uma obra sem precisar fazer referência ao seu autor empírico externo, todavia, esta alternativa esbarra nas dificuldades de se estabelecer critérios para delinear os seus limites. Outra noção que deveria dispensar a referência ao autor é a de escrita, mas ela acaba por se transformar no registro de uma ausência, trazendo no seu seio evidências de uma transcendentalidade. No segundo item analisa os problemas suscitados pela autoria. O nome do autor não é simplesmente um nome próprio como os demais, pois possui três características importantes e distintivas: 1) assegura uma função classificatória (agrupar, delimitar, excluir textos); 2) permite caracterizar o modo de ser de um determinado discurso; 3) estabelece o status de um dado discurso. Na terceira parte o texto atinge o seu auge e Michel Foucault passa a fazer uma análise da função do “autor”, que possui quatro características: 1) exerce função de apropriação; 2) não é exercida de maneira universal e constante em todos os discursos; 3) resulta de uma operação complexa que constrói um certo ser de razão que se chama autor; 4) comporta simultaneamente vários egos e várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos possam vir a ocupar.43 No quarto item o filósofo francês faz uma análise do que 43

Ibid., p. 279.

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denomina de posição de transdiscursividade. A idéia é a de que é possível ser autor de algo mais amplo que um texto ou um livro. Há autores e autoras que são verdadeiros fundadores de discursividade, pois estabelecem possibilidades infinitas de discursos, ao construírem teorias, tradições de pensamento ou disciplinas. A parte mais importante, do ponto de vista prático, para a análise do “objeto” que pesquiso é a conclusão de sua conferência, onde Foucault lamenta ter concentrado suas análises em proposições negativas e passa a conjeturar em que consistiria um trabalho mais construtivo/positivo. Uma análise construtiva procuraria responder a algumas perguntas: 1) em que condições um sujeito aparece em um determinado discurso? 2) que lugar um sujeito ocupa em um tipo de discurso? 3) que funções o discurso exerce? 4) que regras regem o discurso? Os dois textos acima referidos, “A arqueologia do saber” e “O que é um autor?”, têm em comum o fato de estabelecerem parâmetros teóricos para se pensar como determinados objetos são constituídos discursivamente. A perspectiva foucaultiana, em sintonia com a historiografia dos Annales, permite fazer um contraponto à perspectiva cristã do Diabo que o concebe como uma realidade objetiva personificada. As ciências sociais têm procurado estudar o Diabo e seus demônios a partir de uma perspectiva que se coloca para além de sua realidade objetiva. Isto porque tais ciências não estão preocupadas com a

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existência objetiva do Diabo e seus demônios, mas em compreender como e por que as pessoas acreditam nestes seres e de que forma esta crença altera suas vidas. Como alternativa à concepção teológica, que é objetivante, as ciências sociais têm procurado trabalhar com os conceitos de representação e imaginário, que permitiriam acesso ao valor que as pessoas atribuem ao objeto Diabo sem ter que entrar no mérito de sua existência ou não. Mas estes conceitos resolvem o problema de colocar o estudioso para além da veracidade objetiva do Diabo e seus demônios, mas são problemáticos porque criam um outro dilema. A idéia de representação ou imaginário pode induzir à concepção de que deve haver uma realidade, criada socialmente, que é representada, estética ou imaginativamente, por algum sujeito. A solução de se colocar para além da discussão sobre a realidade objetiva do Diabo e seus demônios pode vir a desembocar no pólo de fundamentar a existência dos seres infernais na mente de sujeitos historicamente existentes. Penso que neste ponto seria interessante dar um tratamento a parte para o pensamento de Roger Chartier. Embora utilize o conceito de representação, sua compreensão se distingue das críticas que elaborei imediatamente acima. O referido autor, diretor de investigações na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, é o mais importante expoente da história cultural francesa da atualidade. Uma de suas mais importantes

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obras teóricas44 é composta de oito ensaios publicados entre 1982 e 1986, tendo se transformado em referência fundamental para a construção e consolidação do campo denominado na atualidade de história cultural. Para uma compreensão mais aprofundada do conceito de representação por Chartier, seria interessante analisar três itens: 1) introdução: por uma sociologia histórica das práticas sociais45; 2) primeiro capítulo: história intelectual e história das mentalidades, uma dupla reavaliação46 e 3) segundo capítulo: o passado recomposto, relações entre filosofia e história.47 Abaixo vou fazer uma apresentação/análise de cada um dos três itens para, no fim de cada um, estabelecer aproximações para com o objeto empírico que pesquiso. Vejo a Introdução como tendo um duplo objetivo: primeiro, o de fazer uma conexão entre os diferentes ensaios que provêm de datas e circunstâncias diferentes e, um segundo, o de situar historicamente a constituição do campo da história cultural nas suas continuidades e descontinuidades com a historiografia francesa de uma forma geral. Ao ser confrontada pelas ciências exatas e sociais, a historiografia

precisou

responder

por

sua

cientificidade

e

interdisciplinaridade, passando a incorporar novos procedimentos e novos objetos, fato que levaria a uma verdadeira revolução no campo das 44

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Ibid., p. 13-28. 46 Ibid., p. 29-67. 47 Ibid., p. 69-89. 45

47

pesquisas históricas na França. Estava preparado o espaço para a emergência de uma história cultural, restando estabelecer com mais precisão os seus parâmetros. Para Roger Chartier, a história cultural deve realizar suas análises a partir do entrelaçamento de três categorias fundamentais: representação, apropriação e prática.48 Abaixo procuro localizar trechos do texto em que o autor desenvolve cada um destes três conceitos importantes. Começando pelo termo representação: Desta forma, pode pensar-se uma história cultural do social que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.49

Outra expressão importante para o historiador francês é apropriação: A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições e aos processos que, muito concretamente, determinam as operações de construção de sentido (na relação de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas, e, contra as correntes de pensamento que postulam o universal, que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser construídas na 50 descontinuidade das trajetórias históricas. 48

Ibid., p. 27. Ibid., p. 19. 50 Ibid., p. 26-27. 49

48

Finalmente, podemos colocar o foco sobre o que compreende por práticas: Por outro lado, esta história deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação de identificar –, dirige-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação.51

Penso que o significado da palavra representação em Roger Chartier circula dentro do horizonte da filosofia foucaultiana. O historiador francês parece não pensar esta expressão no âmbito da filosofia do sujeito, nem a partir de uma concepção de referencialidade, mas como constituidora da realidade, como o é o discurso para Michel Foucault. Deste modo, possibilita-me falar em representações do Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus e me faz investigar de que modo aquelas são construídas a partir de apropriações dos textos bíblicos por parte da liderança e dos fiéis da referida igreja. Também me faz voltar o olhar para o modo como a compreensão do que seja o Diabo constitui sentido para a vida das pessoas a partir das práticas de apropriação e também como funciona para ordenar o mundo das pessoas a partir de práticas discursivas. O primeiro capítulo da obra citada faz uma avaliação dos 51

Ibid., p. 27.

49

procedimentos da história intelectual e da história das mentalidades para apontar as suas lacunas e propor pistas de como a história cultural deve proceder com vistas a superar estas limitações. O recurso utilizado por Roger Chartier para fazer esta avaliação é o de historiar o campo intelectual francês para demonstrar os dilemas enfrentados pelos que se ocuparam em analisar a articulação das idéias com o social. Depois de sua longa digressão histórica, o autor passa a propor três procedimentos que devem contribuir para a superação dos limites encontrados até então no campo historiográfico quando se ocupava da relação entre as idéias e o social. Estes procedimentos são: 1) superar a divisão entre cultura letrada/elitizada e cultura iletrada/popular: “saber se pode chamar-se popular o que é criado pelo povo ou àquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se imbricam diferentes formas culturais.”52; 2) superar a oposição entre criação/produção cultural e consumo/recepção cultural: “restituir essa historicidade exige em primeiro lugar que o consumo cultural ou intelectual seja ele próprio tomado como uma produção, que evidentemente não fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou o artista, investiram na sua obra.” Para o historiador francês, “anular o corte entre produzir e consumir é antes de mais afirmar que a obra só adquire 52

Ibid., p. 56.

50

sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas significações”53;

3)

Problematizar

a

oposição

entre

realidade

e

representação: “O real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é (ou não é apenas) a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade da sua produção e na intencionalidade da sua escrita”.54 O estudo das representações sobre o Diabo na I.U.R.D. me leva a investigar como os produtos culturais circulam entre as diferentes categorias sociais (letradas e populares, no caso específico, liderança e fiéis da igreja) e como o ato de leitura bíblica, antes de ser apenas um consumo de informações sobre o Diabo, é um ponto a partir do qual as pessoas criam suas representações sobre o ser entrevado e, a partir disto, ordenam e dão sentido às suas vidas. Já o segundo capítulo do referido livro, aborda um velho e espinhoso problema, o da relação entre os campos da história e da filosofia. Embora o texto tenha sete subdivisões, penso que a sua redução àquilo que lhe é essencial colocaria três questões fundamentais: 1) a resistência dos filósofos à historicização de seu objeto: “Para Febvre e para os historiadores dos primeiros Annales, a história da filosofia tal como a escreveram os filósofos ilustrou o pior de uma história intelectual desencarnada, fechada sobre si mesma, dedicada em vão ao jogo de idéias 53 54

Ibid., p. 59. Ibid., p. 63.

51

puras”.55 Para a superação deste dilema, Roger Chartier propõe re-inserção da história da filosofia na história da produção intelectual. Proceder desta forma implicaria em compreender a racionalidade de um discurso filosófico na historicidade de sua produção e nas relações que mantém com outros discursos. 2) a resistência dos historiadores à incorporação dos resultados das reflexões filosóficas no seu campo de estudo: “É na verdade a Hegel, que é preciso recorrer se se quiser compreender de modo correto a distância acentuada entre práticas dos historiadores e a representação filosófica da história”.56 A aversão à repercussão da filosofia hegeliana sobre o campo da história, teria produzido uma rejeição do discurso filosófico no seu todo. O filósofo Michel Foucault teria sido o grande responsável pela crítica da influência das categorias hegelianas sobre a historiografia, abrindo um novo espaço de diálogo entre os dois campos. 3) A discussão sobre a narratividade da história como um exemplo de um dilema filosófico no interior do campo historiográfico: A questão com que se defronta a história nos dias de hoje é da passagem de uma validação do discurso histórico, fundado no controle das operações que estão na sua base – nada menos do que arbitrárias –, a um outro tipo de validação, permitindo encarar como possíveis, prováveis, verossímeis, as relações postuladas pelo historiador entre os vestígios documentais e os fenômenos indiciados por eles ou, noutros termos, as representações manipuláveis hoje em dia e as práticas passada que elas designam.57

O relato sobre as representações do Diabo na Igreja 55

Ibid., p. 70. Ibid., p. 73. 57 Ibid., p. 86. 56

52

Universal do Reino de Deus que construirei abaixo não pode ser encarado como um desvelamento de uma realidade pela mediação do documento, mas como uma produção cultural/discursiva, cuja validação deve estar condicionada à sua probabilidade e não veracidade. A concepção de discurso de Foucault, no meu modo de ver em harmonia com noção de representação em Chartier – como tentei demonstrar acima, pode oferecer uma saída satisfatória para os limites apresentados pelas ciências sociais. O Diabo e seus demônios não existem como realidade objetiva nem subjetiva, mas são construídos historicamente a partir de discursos e práticas. Os discursos pronunciados pelo cristianismo ao longo dos séculos e pela I.U.R.D. na atualidade constituem o Diabo e seus demônios como realidade objetivada. Mais que isso, o saber demonológico dos livros e dos líderes da I.U.R.D. não só constroem o Diabo e seus demônios, como também constroem a identidade e a história de vida de sujeitos endemoninhados e desdemoninhados. As pessoas que freqüentam a I.U.R.D. são constituídas como sujeitos endemoninhados e desdemoninhados a partir dos discursos diabólicos da liderança desta igreja. Toda a história de vida das pessoas é narrada novamente a partir da experiência de estar possuída e despossuída pelo Diabo e sua corja. As vidas das pessoas passam a ter um antes de encontrar-se com Jesus na I.U.R.D., a vida cheia de agruras e demônios, e um depois, a vida abundante e desdemonizada.

53

Antes de passar à discussão do conceito de genealogia, seria interessante analisar “A ordem do discurso”, a aula inaugural proferida por Foucault no Collège de France em 1970. A importância deste texto se deve ao fato de apresentar uma conexão entre os dois conceitos, o de discurso, acima apresentado e debatido, e o de genealogia, que será objeto de reflexão logo abaixo. Na forma como compreendo, “A ordem do discurso” pode ser dividida em duas grandes partes. Na primeira parte da aula, Foucault faz um trabalho mais crítico ao analisar os mecanismos de controle dos discursos. Estes mecanismos de controle estão divididos entre os que são externos

ao

próprio

discurso

(interdição,

rejeição

e

oposição

verdadeiro/falso), os que são internos ao próprio discurso (atribuição de um caráter especial a alguns discursos, reconhecimento de uma autoridade especial no “autor” de um determinado discurso, “disciplinarização” dos discursos) e os de estabelecimento de regras de funcionamento dos discursos (rarefação, criação de sociedades de circulação restrita de discursos, difusão de doutrinas e educação). Esta primeira parte da aula termina com um questionamento acerca do papel da filosofia: Não estaria também ela funcionando como um mecanismo de controle dos discursos? Na segunda parte da aula, o autor é mais propositivo e acaba por se deter nos mecanismos de análise dos discursos. O trabalho anterior de desconstrução agora dá lugar para a construção de estratégias

54

de análise do discurso, tarefa que será desenvolvida por Foucault nos cursos que ministrará no Collège de France nos anos seguintes. Estes mecanismos de

análise

envolvem

certas

exigências

de

método

(inversão,

descontinuidade, especificidade e exterioridade) e a aplicação deste método segundo a disposição de dois conjuntos (conjunto crítico e conjunto genealógico). De uma parte, o conjunto “crítico”, que põe em prática o princípio da inversão: procurar cercar as formas da exclusão, da limitação, da apropriação de que falava há pouco; mostrar como se formaram, para responder a que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que força exerceram efetivamente, em que medida foram contornadas. De uma outra parte, o conjunto “genealógico” que põe em prática os três outros princípios: como se formaram, através, apesar, ou com o apoio desses sistemas de coerção, séries de discursos; qual foi a norma específica de cada uma e quais foram suas condições de aparição, de crescimento, de variação.58

Como se pode notar pela citação acima, Foucault reconhecia no procedimento genealógico uma estratégia metodológica, sempre associada ao trabalho crítico, para a análise de discursos. Mais detalhes sobre este procedimento metodológico serão explorados a seguir.

1.3.2- Por uma genealogia do Diabo

O historiador francês Paul Veyne parece ter compreendido e assimilado com muita precisão a proposta e a prática historiográficas de 58

Id., A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, p. 60-61.

55

Michel Foucault. A interação com a obra do filósofo-historiador compatriota o teria levado a reavaliar sua própria produção historiográfica. A reavaliação de sua obra aparece acompanhada de uma detalhada exposição teórica do que seria fazer historiografia em uma perspectiva foucaultiana: A história-genealogia à Foucault preenche, pois, completamente o programa da história tradicional; não deixa de lado a sociedade, a economia, etc., mas estrutura esta matéria de outra maneira: não os séculos, os povos nem as civilizações, mas as práticas; as tramas que ele narra são a história das práticas em que os homens enxergam verdades e das suas lutas em torno das suas verdades. Esse modelo de história, essa “arqueologia”, como a chama seu inventor, “desdobra-se na dimensão de uma história geral”.59

Além da ênfase na descrição e análise das práticas, a historiografia foucaultiana implica em um processo de desnaturalização de objetos consagrados, bem como na necessidade de se pensá-los sempre relacionalmente, através do procedimento genealógico/arqueológico: Toda história é arqueológica por natureza e não por escolha: explicar e explicar a história consiste, primeiramente, em vê-la em seu conjunto, em correlacionar os pretensos objetos naturais às práticas datadas e raras que os objetivizam, e em explicar essas práticas não a partir de uma causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram. Esse quadro pictórico produz quadros estranhos, onde as relações substituem os objetos.60

O procedimento genealógico não pode ser confundido com uma procura pela origem histórica de um determinado fenômeno/objeto. O 59 60

VEYNE, P. Op. cit., p. 280. Ibid., p. 280.

56

genealogista dimensiona historicamente os “objetos”, não para explicar as suas origens e sim para demonstrar como são constituídos como tais: De acordo com Foucault, a tarefa do genealogista é destruir a primazia das origens, das verdades imutáveis. Ele tenta derrubar as doutrinas do desenvolvimento e do progresso. Uma vez destruídas as significações ideais e as verdades originais, ele se volta para o jogo das vontades. Sujeição, dominação e luta são encontradas em toda parte. (...) Em vez de origens, significados escondidos ou intencionalidade explícita, Foucault, o genealogista, vê relações de força funcionando em acontecimentos particulares, movimentos históricos e história.61

Seria interessante, neste ponto, observar mais uma vez a sintonia de Foucault com a historiografia annalista. Desta vez o filósofo francês parece estar aplicando ao procedimento genealógico as orientações do livro inacabado de teoria da história de Marc Bloch: Nunca é mau começar por um mea culpa. Naturalmente cara aos homens que fazem do passado seu principal tema de estudos de pesquisa, a explicação do mais próximo pelo mais distante dominou nossos estudos às vezes até a hipnose. Sob sua forma mais característica, esse ídolo da tribo dos historiadores tem um nome: é a obsessão das origens.62

O próprio Michel Foucault, ao fazer um balanço de suas aulas ministradas em anos precedentes no Collège de France, define o procedimento genealógico da seguinte forma: Chamemos, se quiserem, de “genealogia” o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais. (...) Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham 61

RABINOW, P. & DREYFUS, D. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica, p. 121. 62 BLOCH, M. Apologia da história: ou o ofício do historiador, p. 56.

57

saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns.63

Mantendo o tom coloquial do discurso verbal, adiante, Michel Foucault acrescenta mais alguns detalhes importantes para a elucidação do procedimento genealógico: A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. A reativação dos saberes locais (...) contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos, esse é o projeto dessas genealogias em desordem e picadinhas. Eu diria em duas palavras o seguinte: a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir destas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem. Isso para reconstituir o projeto de conjunto.64

Um exemplo tirado da obra de Michel Foucault certamente poderia ilustrar seu procedimento genealógico. Novamente o contexto é o de uma aula no Collège de France onde está fazendo uma introdução ao seu estudo, que desta vez versa sobre a anomalia: Eu gostaria de começar hoje a análise desse domínio da anomalia tal como funciona no século XIX. Eu queria tentar lhes mostrar que esse domínio se constitui a partir de três elementos. Esses três elementos começam a se isolar, a se definir a partir do século XVIII e eles fazem a articulação com o século XIX, introduzindo esse domínio da anomalia que, pouco a pouco vai recobri-los, confiscá63 64

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976), p. 13. Ibid., p. 14-15.

58

los, de certo modo colonizá-los, a ponto de absorvê-los. Esses três elementos são, no fundo, três figuras ou, se vocês quiserem, três círculos, dentro dos quais, pouco a pouco, o problema da anomalia vai se colocar.65

Após sua introdução, passa a fazer uma breve descrição de cada uma das três figuras que vão preceder o anormal, a começar pelo monstro humano: A primeira dessas figuras é a que chamarei de ‘monstro humano’. O contexto de referência do monstro humano é a lei, é claro. A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica – jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele se constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza.66

A segunda figura “ancestral” do ser humano anormal é o indivíduo a ser corrigido: A segunda, sobre a qual retornarei mais tarde e que também faz parte da genealogia da anomalia e do indivíduo anormal, é a que poderíamos chamar de figura do ‘indivíduo a ser corrigido’. Ele também é um personagem que aparece nitidamente no século XVIII, até mais recentemente, o monstro, como vocês verão tem uma longuíssima ascendência às suas costas. O indivíduo a ser corrigido é, no fundo, um indivíduo bem específico dos séculos XVII e XVIII – digamos da Idade Clássica. (...) O indivíduo a ser corrigido vai nesse jogo, nesse conflito, nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois, a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a polícia, etc.67

A terceira e última figura antecessora do ser humano anormal é o masturbador: 65

Id., Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975), p. 69. Ibid., p. 69. 67 Ibid., p. 71-72. 66

59

Quanto ao terceiro, é o ‘masturbador’. O masturbador, a criança masturbadora, é uma figura totalmente nova no século XIX (é na verdade própria do fim do século XVIII), e cujo campo de aparecimento é a família. É inclusive, podemos dizer, algo mais estreito que a família: seu contexto de referência não é mais a natureza e a sociedade como no caso do monstro, não é mais a família e seu entorno como no caso do indivíduo a ser corrigido. É um espaço muito mais estrito. É o quarto, a cama, o corpo; são os pais, os tomadores de conta imediatos, os irmãos e irmãs; é o médico – toda uma espécie de microcélula em torno do indivíduo e do seu corpo.68

Através deste exemplo, é possível perceber como o pensador francês, pelo procedimento genealógico, vai desnaturalizando o “objeto” anormalidade tal como havia se constituído no século XIX. Partindo do momento em que a categoria anormalidade está constituída, o século XIX, começa a fazer uma digressão histórica para encontrar o que existia, enquanto discurso e prática, antes da anomalia. Michel Foucault faz uma história ao contrário. Ao invés de buscar uma explicação teleológica do presente pelo passado, desnaturaliza os objetos tal como estão constituídos no presente, mostrando que no passado havia algo (discursos e práticas) diferente no seu lugar. Na

minha

opinião,

nenhum

outro

procedimento

metodológico aproxima tanto Foucault da historiografia de uma forma em geral, bem como da historiografia francesa dos Annales como este. A genealogia foucaultiana, ao permitir dimensionar temporalmente um dado objeto histórico, aproxima o filósofo francês do que caracteriza de forma 68

Ibid., p. 73-74.

60

específica o campo historiográfico. Mais uma vez, as palavras de Lucien Febvre atestam o que estou afirmando: Eis-nos sobre um terreno sólido; falta apenas acrescentar um ponto mais essencial. A história não pensa apenas em termos de “humano”. O seu clima natural é o da duração. Ciências dos homens, sim – mas dos homens no tempo. O tempo, essa contínua – mas também perpétua transformação. “Da antítese destes dois atributos provêm os grandes problemas da investigação histórica”.69

Ainda sobre a importância da temporalidade para a historiografia, bem como sobre os problemas decorrentes do modo como essa é utilizada por diferentes escolas, preciosas são as palavras de outro mestre da escola dos Annales: Todo trabalho histórico decompõe o tempo decorrido, escolhe entre suas realidades cronológicas, segundo preferências e opções exclusivas mais ou menos conscientes. A história tradicional, atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa precipitada, dramática, de fôlego curto. [...] Hoje, há assim, ao lado do relato (ou do “recitativo” tradicional), um recitativo da conjuntura que põe em questão o passado por largas fatias: dez, vinte ou cinqüenta anos. Bem além desse segundo recitativo, situase uma história de respiração mais contida ainda, e , desta vez, de amplitude secular: a história de longa, e mesmo, de longuíssima duração.70

A temporalidade está para a historiografia de forma geral como a multiplicidade de temporalidades está para a historiografia da cultura francesa. Na minha forma de compreender, é possível fazer um entrecruzamento do procedimento genealógico foucaultiano com a pluri-

69 70

Ibid., p. 247. BRAUDEL, F. Escritos sobre a história, p. 44.

61

dimensionalização temporal de um objeto historiográfico. É o que procuro fazer nesta tese: primeiro dimensiono cronologicamente os elementos que compõem o “objeto” de estudo através da compreensão de que a historiografia trabalha com temporalidades distintas, como estratégia que prepara o terreno para que eu possa elaborar de forma propriamente dita uma genealogia no quarto e último capítulo. Penso que esta perspectiva delineada pela historiografia francesa é bastante útil para analisar a construção do “objeto” Diabo na I.U.R.D. O genealogista do Diabo deve procurar os contornos deste personagem, tal como se apresenta na referida igreja, e desnaturalizá-lo ao lhe dar uma dimensão histórica. A pergunta “o que havia no lugar deste Diabo que hoje existe na I.U.R.D.?” seria um ponto de partida interessante para a investigação genealógica. Penso que as pesquisas acima mostram algo de suma importância a ser investigado desde uma perspectiva foucaultiana. A concepção de genealogia no pensamento de Foucault não revela uma busca pela mais remota e verdadeira origem de um fenômeno, mas procura colocar o pesquisador ou pesquisadora em contato com as descontinuidades históricas e as mutações de práticas correlacionadas a um dado fenômeno. Este seria o caminho para se conhecer as práticas em voga no presente e as perspectivas de transformação destas. O Diabo na idade média era um construtor de pactos com o

62

ser humano. Ao longo da idade moderna transformou-se em um senhor do ser humano. De provocante e instigador, transformou-se em soberano e possuidor. Aqui se abre um campo vasto a ser explorado. Que práticas estavam associadas ao Diabo servo e que práticas estão associadas ao Diabo senhor? Por que a I.U.R.D. opera com um discurso que faz do Diabo um senhor e não um servo? Somente a Igreja Universal está atrelada ao Diabo senhor ou as religiões afro-brasileiras e o catolicismo, seus rivais demonizados, também operam com tal prática?

1.3.3- O Diabo entre a feitiçaria e a possessão

Quando comecei a estudar a obra de Michel Foucault, logo percebi que se tratava de um referencial teórico bastante fértil para a análise do “objeto” que pesquiso, o Diabo no âmbito da I.U.R.D. Não esperava encontrar uma análise de questões tão próximas das que venho me ocupando ultimamente. Em um curso ministrado no Collège de France, o filósofo francês fez uma genealogia da anormalidade, passando pelo discurso religioso sobre o Diabo e pela psiquiatrização da possessão. Abaixo, vou explorar ao máximo possível as suas considerações sobre o assunto, visando cruzar seu debate com o “objeto” Diabo na I.U.R.D., tendo em vista que este envolve práticas de exorcismo que lidam com a

63

possessão. No referido curso, Michel Foucault analisa a forma como o indivíduo possesso é um antecessor religioso do anormal, que tem seus contornos claramente delineados somente no século XIX. Na construção da genealogia da anormalidade, seu primeiro passo é distinguir possessão de feitiçaria. A feitiçaria seria caracterizada por ser uma estratégia de expansão de poder do catolicismo romano para além de suas fronteiras internas: A feitiçaria (...) traduziria a luta que a nova vaga de cristianização, inaugurada em fins do século XV – início do século XVI, organizou em torno de e contra certo número de formas cultuais que as primeiras e lentíssimas vagas de cristianização da Idade Média haviam deixado, se não totalmente intactas, pelo menos ainda vivazes, e isso desde a Antiguidade. (...) A feitiçaria, portanto, está presa no interior desse processo de cristianização, mas é um fenômeno que se situa nas fronteiras externas da cristianização. Fenômeno periférico, por conseguinte mais rural que urbano; fenômeno que também encontramos nas regiões montanhesas, precisamente onde os grandes focos tradicionais da cristianização – ou seja, desde a Idade Média, as cidades – não haviam penetrado.71

Na seqüência Michel Foucault contrapõe a possessão à feitiçaria. Enquanto a feitiçaria é colocada como um problema de fronteira externa para o Catolicismo Romano, a possessão é eminentemente um problema que se instala no seu interior. A pessoa possessa é a católica que aceita a autoridade de sua igreja, esforça-se por viver em conformidade com seus valores, mas muitas vezes falha nesta tarefa: Quanto à possessão, se ela também se inscreve nessa 71

FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975), p. 259.

64

cristianização que volta a se ativar a partir do fim do século XVI, seria muito mais efeito interior do que exterior. Seria muito mais o contragolpe de um investimento, não de novas regiões, de novos domínios geográficos ou sociais, mas de um investimento religioso e detalhado do corpo e, pelo duplo mecanismo de que eu lhes falava faz pouco, de um discurso exaustivo e de uma autoridade exclusiva ...72

Para delinear com mais clareza os dois fenômenos, Michel Foucault compara a pessoa da feiticeira com a da possuída. A feiticeira é a má cristã ou a mulher que renega o cristianismo, enquanto a possuída é a mulher que se esforça por se conformar aos valores anunciados por Jesus sem, contudo, conseguir. A possessão aparece onde a igreja procura inscrever nos corpos o seu discurso controlador: A feiticeira é a mulher da periferia da aldeia ou do limite da floresta. A feiticeira é a má cristã. E o que é a possuída (a do século XVI e, sobretudo, do século XVII e início do século XVIII)? Não é, em absoluto, a que é denunciada por alguém, é a que se confessa, que se confessa espontaneamente. Aliás, não é a mulher do campo, é a mulher da cidade. (...) A feitiçaria aparece nos limites exteriores do catolicismo. A possessão aparece no foco interno, onde o catolicismo tenta introduzir seus mecanismos de poder e de controle, onde ele tenta introduzir suas obrigações discursivas: no próprio corpo dos indivíduos. É aí, no momento em que ele tenta fazer funcionar mecanismos de controle e de discursos individualizantes e obrigatórios, que aparece a possessão.73

Michel Foucault é minucioso em suas análises e sua comparação ainda não está completa. A distinção entre as duas figuras apenas se efetiva quando suas relações com o maligno estiverem 72 73

Ibid., p. 259-260. Ibid., p. 260.

65

delineadas. Ele aponta para a diferença entre pacto (ação concretizada entre o Diabo e a feiticeira) e invasão (ação realizada pelo Diabo sobre a vida da mulher cristã), bem como para a forma como estas ações repercutem sobre os corpos das pessoas. Poderíamos ainda dizer o seguinte. O corpo da feiticeira, nos grandes processos de feitiçaria que a Inquisição instaurou, é um corpo único que está simplesmente a serviço ou, se for o caso, penetrado pelos inúmeros exércitos de Satã, Asmodeu, Belzebu, Mefistófeles, etc. (...) Agora teremos, com o corpo da possuída, outra coisa: o corpo da possuída mesma é que é a sede de uma multiplicidade de movimentos, de abalos, de sensações, de temores, de dores e de prazeres. A partir daí, vocês podem compreender como e por que desaparece, com a possessão, um dos elementos que haviam sido fundamentais na feitiçaria: o pacto. (...) Na possessão, ao contrário, não há pacto selado num ato, mas uma invasão, uma insidiosa e irresistível penetração do diabo no corpo. O vínculo da possuída com o diabo não é da ordem do contrato; esse vínculo é da ordem do habitat, da resistência, da impregnação.74

Como se pode perceber, a análise de Michel Foucault está voltada não apenas para a distinção entre a ação levada a cabo entre o Diabo e a feiticeira (pacto) ou a ação sem consentimento exercida pelo Diabo sobre a possuída (invasão), mas também para a distinção entre os corpos de uma e de outra. O corpo da feiticeira é marcado pelos benefícios de seu pacto com o Diabo, é o corpo que se transforma e carrega em si uma série de marcas: Dois tipos de consentimento, mas também dois tipos de corpo. O enfeitiçado, como vocês sabem, se caracterizava essencialmente por duas características. Por um lado, o 74

Ibid., p. 262-263.

66

corpo das feiticeiras era um corpo todo rodeado ou, de certo modo, beneficiário de todo uma série de prestígios, que uns consideravam reais e outros, ilusórios, mas pouco importa. O corpo da feiticeira é capaz de se transportar ou de ser transportado; é capaz de aparecer e desaparecer; fica invisível também, em certos casos. Em suma, é afetado por uma espécie de transmaterialidade. Também é caracterizado pelo fato de que é sempre portador de marcas, que são manchas, zonas de insensibilidade, e que constituem, todas elas, como assinaturas do demônio...75

Já o corpo da possuída caracteriza-se pela batalha travada entre o seu “eu” (auto domínio) e um “outro” (Diabo). É um corpo disputado por dois poderes, duas forças distintas, uma que impulsiona em direção à vontade de Deus e outra que obstrui a realização desta vontade, afinal de contas o verbo hebraico “Satã” significa, literalmente, fazer oposição. É esta tensão que o corpo da possessa dramatiza: O corpo da possuída é bem diferente. Não está envolto em prestígios; é o lugar de um teatro. É nele, nesse corpo, no interior desse corpo, que se manifestam os diferentes poderes, seus ensinamentos. Não é um corpo transportado: é um corpo atravessado em sua espessura. É um corpo dos investimentos e contra-investimentos. No fundo é um corpo fortaleza: fortaleza investida e sitiada. Corpocidadela, corpo-batalha: batalha entre o demônio e a possuída que resiste; batalha entre o que, na possuída, resiste e essa parte dela mesma, ao contrário, que consente e se trai; batalha entre os demônios, os exorcistas, os diretores e a possuída, que ora os ajuda, ora os trai, ficando ora do lado do demônio pelo jogo dos prazeres, ora do lado dos diretores e dos exorcistas por meio de suas resistências. É tudo isso que constitui o teatro somático da possessão.76

Os corpos envolvidos na disputa entre Deus e o Diabo

75 76

Ibid., p. 267. Ibid., p. 268.

67

trazem em si as marcas desta batalha. O corpo atravessado pelo poder do Pai da mentira e sua corja convulsiona, tornando o seu comando espiritual invisível em visibilidade. A convulsão não apenas denuncia que um corpo está sendo comandando por um outro “eu” que invade a possuída, mas também denuncia que há um embate entre os discursos religioso e médico. Ela é evidência de que a pessoa é invadida por um alter, Satã, na explicação religiosa, enquanto para a medicina esta invasão é indício de uma patologia: O que é a convulsão? A convulsão é a forma plástica e visível do combate no corpo da possuída. A onipotência do demônio, sua performance física, pode ser encontrada em aspectos dos fenômenos de convulsão como a rigidez, o arco de círculo, a insensibilidade às pancadas. (...) Também encontramos toda a série dos gestos involuntários, mas significantes: debater-se, cuspir, tomar atitudes de denegação, dizer palavras obscenas, irreligiosas, blasfematórias, mas sempre somáticas. (...) A convulsão é essa imensa noção-aranha que estende seus fios tanto do lado da religião e do misticismo, como do lado da medicina e da psiquiatria. É essa convulsão que, durante dois séculos e meio, vai ser o móbil de uma batalha entre a medicina e o catolicismo.77

A contribuição mais importante de Michel Foucault para a análise da possessão no âmbito da I.U.R.D., certamente, é sua perspectiva de compreendê-la como expressão da história política do corpo. O historiador que analisa a possessão não se detém sobre superstições ou análises de patologias, mas investiga a forma como os corpos são atravessados por poderes. A análise da feitiçaria pertence à história da expansão do catolicismo para além de suas fronteiras. A feiticeira é a má 77

Ibid., p. 269.

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cristã, a pessoa que resiste ao poder da igreja sobre si. A possuída é a boa cristã que deseja obedecer ao comando da igreja, mas não consegue porque é invadida por um outro poder, dispersivo para o cristianismo. O que a feitiçaria foi no tribunal da Inquisição, a possessão foi no confessionário. Assim, na minha opinião, não é na história das doenças que devemos inscrever o problema do(a)s possuído(a)s e de suas convulsões. Não é fazendo uma história das doenças psíquicas ou mentais do Ocidente que se poderá entender por que o(a)s possuído(a)s, por que o(a)s convulsionário(a)s apareceram. Não creio que seja tampouco fazendo a história das superstições ou das mentalidades: não foi porque se acreditava no diabo que os convulsionários ou os possuídos apareceram. Creio que é fazendo a história das relações entre o corpo e os mecanismos de poder que o investem que podemos chegar a compreender como e por que, nessa época, esses novos fenômenos apareceram, tomando o lugar dos fenômenos um pouco anteriores da feitiçaria. A possessão faz parte, em seu aparecimento, em seu desenvolvimento e nos mecanismos que a suportam, da história política do corpo.78

A igreja católica ao procurar expandir seu poder externamente se confrontou com a feitiçaria, enquanto que em suas fronteiras internas tinha que lidar com a possessão. Diante da impossibilidade de viver completamente ajustada ao estilo de vida proposto pela igreja, a/o fiel sincera/o acabava por ceder à invasão diabólica. A igreja, para manter seu poder sobre os corpos de suas/seus fiéis, respondia com o exorcismo e mostrava sua capacidade de se impor sobre os poderes das trevas. Enquanto o exorcismo correspondia com eficácia à sua estratégia de domínio sobre os corpos convulsionados, sua prática foi 78

Ibid., p. 270-271.

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estimulada pela igreja. Quando o combate à convulsão passou a criar mais problemas do que contribuir para a extensão do poder da igreja sobre seus/suas fiéis, passou a controlá-lo: Mas creio que o que aconteceu foi que a igreja – quando se confrontou, nesse caso (...), com todos esses fenômenos que estavam tão em linha com a sua nova técnica de poder e que eram ao mesmo tempo o momento, o ponto, em que essas técnicas de poder encontravam seus limites e seu ponto de inversão – tratou de controlá-los. Ela tratou de liquidar estes conflitos, que haviam nascido da própria técnica que ela empregava para exercer o poder.79

A igreja criou “anti-convulsivos” como estratégia de manutenção de seu poder sobre os corpos de seus/suas fiéis. A criação de “anti-convulsivos” consistia no (1) silenciamento sobre a possessão, considerando suas ocorrências como extremamente raras, na (2) medicalização/psiquiatrização da possessão, transferindo a responsabilidade de administrar o “problema” para a medicina e na (3) criação de novas estratégias de extensão de seu poder através da disciplina e da educação. O primeiro era a passagem da regra do discurso exaustivo a uma estilística do discurso reservado; o segundo era a transmissão da convulsão mesma ao poder médico. O terceiro anticonvulsivo, de que lhes falarei da próxima vez, é o seguinte: o apoio que o poder eclesiástico procurou nos 80 sistemas disciplinares e educacionais.

Penso ser interessante ilustrar estas questões teóricas abordadas por Michel Foucault a partir do filme “O exorcista”. O que o filósofo coloca na forma de um discurso teórico, portanto crítico, analítico e 79 80

Ibid., p. 272-273. Ibid., p. 286.

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abstrato, pode se tornar mais digerível e agradável mediante um discurso de conteúdo semelhante, mas com um modo de expressão mais concreto e acessível, como é o caso do cinema. Tenho consciência de que um trabalho cinematográfico não pode ter o mesmo status epistemológico que a complexa, lapidar e extensa obra de um filósofo como Foucault. Um filme é uma narrativa que possui algumas peculiaridades que podem transformá-la em uma obra que deva ser severamente relativizada, como as de estar comprometida comercialmente e não deixar claro os limites entre a “realidade” e a “ficção”. Por outro lado, pode ter a vantagem de nos auxiliar na visualização didática de uma realidade de difícil compreensão quando expressa em forma de um discurso filosófico. Além do mais, penso que nas artes, como é o caso do cinema, pode haver a colocação de problemas que acabam por ter ressonância no meio filosófico e vice-versa, embora as soluções que os atores de cada campo venham a apresentar sejam bastante diferentes. É com consciência de todas as limitações e os perigos que esta fonte possa vir a apresentar que ouso ilustrar algumas das questões teóricas apresentadas por Foucault a partir do filme “O exorcista”. Sei que se trata de fonte de valor que merece ser relativizado. O filme em sua primeira versão foi trazido a público no ano de 1973 e seus principais protagonistas são: 1) Chris, uma jovem senhora, divorciada, atriz profissional, aparentemente rica e mãe de Regan; 2)

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Regan, a filha de Chris, que será a vítima de possessão; 3) Damien, padre, psiquiatra, jovem e um exorcista pouco experiente e 4) Merrin, padre, arqueólogo, idoso e um exorcista bastante experiente. A própria apresentação dos personagens já sugere um entrecruzamento de dois discursos sobre a possessão, o discurso científico (psiquiatria e arqueologia) e o discurso religioso católico romano (os dois exorcistas são padres). O padre mais jovem (Damien) incorpora, inicialmente, um personagem bastante marcado pela ambigüidade causada pelos discursos científico e religioso. Sua dupla formação, sacerdócio e psiquiatria, coloca-o sob a pressão de duas formas distintas de explicar o mesmo fenômeno. Sua ambigüidade será superada no decorrer do filme, à medida que o discurso científico não se sustenta como forma de explicar o estado em que a possessa se encontra. Parece-me que este padre jovem, que chega a professar sua incredulidade, acaba tendo sua fé restaurada ao ter convicção de que estava lidando com algo sobrenatural de fato e não com uma patologia psiquiátrica. O padre mais idoso (Merrin) não demonstra, desde o princípio, a mesma ambigüidade de seu parceiro de exorcismo. Parece lidar bem com as suas duas atividades, colocando as suas pesquisas arqueológicas a serviço de sua fé. Nas suas escavações se defronta com inscrições e estatuetas que reforçam a sua crença na existência do mal na forma personificada e possuidora do Diabo. O enredo do filme também exemplifica este choque entre

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os discursos científico e religioso. Uma menina (Regan) bonita, saudável, carinhosa, feliz e rica começa a manifestar sintomas de possessão. O processo é gradativo. Começa com a escuta de vozes e leves temores. A situação vai aos poucos se agravando até culminar em uma possessão inquestionável e estremecedora. Neste percurso vivido pela jovem, a sua mãe (Chris) vai sendo cercada por explicações. Primeiro a ciência (psiquiatria) procura diagnosticar a “doença” da menina, em seguida, a religião (catolicismo romano) entra em cena para resolver a questão. A religião só pode entrar em cena depois que a ciência assume a sua impossibilidade de explicar e tratar do “problema”. A cena, cheia de ironia, que marca a transição do tratamento científico para o religioso é muito interessante. Uma equipe de 88 médicos está reunida para diagnosticar o distúrbio da menina. Eles não conseguem entrar em um consenso sobre o diagnóstico da “doença”, mas concordam quanto ao tratamento. Os próprios médicos recomendam o exorcismo, segundo um dos personagens cientistas “uma prática em desuso, mas que dá resultado”, mesmo que não seja “pelos motivos alegados pelos religiosos”. É preciso chegar a quase metade do filme até que a ciência decrete sua incapacidade em tratar da questão. A ação religiosa começa a ganhar terreno como tratamento por sugestão e incapacidade da ciência! A mãe da menina começa sua busca por um padre que possa fazer o exorcismo, uma outra longa jornada, uma vez que se trata de uma “prática

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em desuso”. Mesmo para o catolicismo romano, explicar e tratar do “problema” é um longo processo, pois não se trata de uma religião simplesmente, mas de uma religião invadida pela lógica científica. O exorcismo só poderá ser realizado quando houver uma série de evidências que demonstrem que se trata de uma questão espiritual e não psiquiátrica. O padre e psiquiatra Damien reluta bastante até aceitar visitar a menina para averiguar que se trata mesmo de uma possessão. Em princípio o padre diz para a mãe da menina “doente” que a possessão não existe mais. Acrescenta que a psiquiatria criou uma nomenclatura para explicar a “doença”. Sua concepção somente mudará depois que fizer algumas visitas a Regan. Em sua primeira visita a possessa lhe diz que é o demônio e vomita na sua cara. O padre diz que não pode fazer o exorcismo, pois a igreja exigiria “provas irrefutáveis” como falar um idioma que a menina jamais aprendera em sua vida. Damien fala em Latin com Regan e o demônio responde. O padre joga água benta sobre a menina e o demônio grita. Finalmente, a possessa fala uma língua em princípio desconhecida. Depois de averiguar o padre constata que se tratava de Inglês falado de trás para frente. Em uma outra ocasião, a criada da casa manda chamar o padre para que ele observe uma inscrição no abdômen da possessa, “Help me”. Parece ser este o momento em que o clérigo se convence de que se trata de uma possessão de fato, mas o exorcismo não pode ainda ser

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realizado. O padre tem que pedir autorização para seus superiores. Damien recebe autorização para fazer o exorcismo, mas é advertido a contar com a ajuda de uma pessoa mais experiente no assunto, o padre Merrin. Ambos os padres vão à casa da menina possessa e começam os preparativos espirituais para o exorcismo. Merrin orienta Damien sobre as ciladas do demônio: chantagem emocional, exploração das fraquezas pessoais e constante tentativa de convencer as pessoas por argumentos falsos, motivo pelo qual não se deve falar com o Demônio. Começa a primeira sessão de exorcismo. Os padres fazem a leitura do livro de exorcismo da Igreja Católica Apostólica Romana. A cama em que está a menina flutua e o demônio verte um vômito verde. O padre Merrin faz o sinal da cruz na testa da possessa e ela flutua no ar. O tempo todo os exorcistas exclamam com autoridade espiritual “o poder de Deus te obriga” como estratégia para fazer o demônio parar de flutuar, fato que aos poucos vai se concretizando. Quando o corpo da possessa está quase chegando de volta à cama, aparece uma imagem do Diabo, a encontrada no início do filme pelo padre arqueólogo, sobreposta à da menina. Há uma pausa para os padres descansarem. Começa a segunda sessão de exorcismo. O demônio apela para a chantagem emocional com o padre Damien ao falar imitando a voz de sua falecida mãe. Quando percebe a vulnerabilidade de seu colega clérigo, Merrin pede a Damien que saia do quarto. Sozinho o padre

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arqueólogo retoma a leitura do livro de exorcismo da igreja católica, joga água benta sobre o corpo da possessa. Como tinha a saúde frágil, o padre mais velho morre durante suas tentativas de expulsar o Demônio. O padre mais jovem assume a condução do exorcismo de forma irada e ordena que o demônio entre em seu corpo, fato que se concretiza. O Demônio sai do corpo da menina e entra no corpo do padre e o atira pela janela matando-o. Antes de entrar no corpo do padre o demônio arranca uma medalha que estava no pescoço do padre e aparentemente lhe conferia proteção. O filme termina com a morte dos dois padres e a menina aparentemente saudável e bela. A família deixa a casa e se muda para uma outra cidade. A criada da casa acha a medalha que estava no pescoço do padre Damien no quarto da menina e dá para Chris, que por sua vez tenta entregar para um outro padre amigo da família, mas este não aceita. Desta forma misteriosa o filme termina. A medalha que esteve no pescoço do padre Damien e que fica com a mãe da possessa tem uma imagem semelhante à que foi encontrada no início pelo padre Merrin junto com a estatueta do Diabo. Parece-me que a medalha era uma espécie de contrapeso benigno controlador do poder maligno. Quem tem a medalha, estaria protegido do poder das trevas. O filme ilustra muito bem a burocratização e a rarificação da possessão para o catolicismo romano. “O exorcista” mostra a psiquiatrização que invadiu a igreja de Roma construindo um silêncio sobre

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um assunto de grande importância para muitas pessoas ainda nos dias de hoje. Penso que é este vácuo/silêncio da Igreja Católica sobre a possessão que vai ser ocupado pela I.U.R.D. nos dias de hoje. Se o catolicismo romano silenciou ou psiquiatrizou a possessão, a I.U.R.D. despsiquiatrizou a ação demoníaca e passou a anunciá-la com alto-falantes. Não apenas recolheu de volta o discurso sobre o Diabo, mas passou a construí-lo como estratégia de combate à própria igreja católica (e à umbanda também!) ao demonizá-la e responsabilizá-la pela demonização das pessoas. Enquanto a igreja católica procura silenciar ou rarificar o assunto, a I.U.R.D. o transforma em explicação e conseqüência de todos os males que afetam a vida das pessoas. O Diabo está de volta! Agora ele tem uma nova cara e constrói novos sentidos. Estes novos significados assumidos em um novo contexto (Brasil contemporâneo) serão tomados como objeto de análise nos próximos capítulos de forma detalhada. 2- O DIABO ENTRA EM CENA E EXPANDE O SEU REINO: A CONSTRUÇÃO DO DIABO NA HISTÓRIA CULTURAL DO CRISTIANISMO

Este segundo capítulo tem como objetivo fazer uma análise das práticas acerca do Diabo na cultura ocidental cristã desde os tempos bíblicos até a atualidade. Pretendo historiar as continuidades e rupturas que

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a concepção do Diabo da I.U.R.D. possui em relação à história do cristianismo ocidental. O capítulo deverá responder às seguintes perguntas: Quais são as faces que o Diabo assume ao longo da história do cristianismo? Que práticas estão atreladas a estas faces historicamente construídas? Gostaria, ainda, de fazer uma observação preliminar sobre como pretendo recortar e narrar a presente análise acerca das práticas concernentes ao Diabo. Todo pesquisador ou pesquisadora sabe que não se pode lidar com universos, mas tem que realizar recortes para que o “objeto” a ser analisado seja pesquisável em espaço e tempo razoáveis. Vou privilegiar a investigação sobre o Diabo que se ocupe de suas mutações ao longo de um período histórico (antiguidade até o presente), restringindo-me à tradição judaico-cristã e procurando perceber como diferentes concepções a seu respeito instituem diversos modos de exercício de poder sobre a vida de pessoas.81 Penso que também seria importante dizer algumas palavras sobre o lugar e a importância deste capítulo no corpo desta tese. Esta narrativa sobre a construção do Diabo na história cultural do cristianismo é fundamental para a compreensão das práticas discursivas nos dias de hoje na I.U.R.D. Esta igreja, certamente, construiu seu conjunto de conceitos e

81

Deste ponto em Diante retomo alguns dados de minha pesquisa de mestrado para aprofundá-la e ampliá-la. Ver OLIVA, A. S. O Diabo e seus demônios na Igreja Universal do Reino de Deus: teologia e rito de exorcismo na Catedral da Fé na cidade de Fortaleza.

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ações acerca do Diabo sobre os escombros de expressões religiosas antecedentes. Não quero com isso negar a especificidade histórica dos conceitos e práticas da referida igreja, tampouco a criatividade de seus fiéis, todavia, estes não criaram algo novo a partir do nada. A criatividade dos adeptos da I.U.R.D. consiste exatamente na capacidade de reformular e atribuir novos significados representações previamente existentes. Ao historiar práticas e conceitos acerca do Diabo na história do cristianismo, tendo como ponto de partida a antiguidade, pretendo preparar o leitor e a leitora para o final do capítulo, quando começo a analisar a concepção do Pai da mentira da I.U.R.D. Procedendo assim, também espero acumular alguns dados que serão fundamentais para a exposição do quarto capítulo, quando realizarei uma análise genealógica do Diabo no âmbito da I.U.R.D. Uma última observação no que diz respeito às fontes que utilizo neste capítulo. Para chegar ao meu “objeto” de estudo, o Diabo na I.U.R.D. no Brasil contemporâneo, preciso antes apresentar o estado da arte. Para isso vou me valer de ampla bibliografia de caráter sociológico, filosófico, teológico e historiográfico. O critério que utilizei para selecionar estas fontes secundárias sobre o Diabo foi de caráter acadêmico: procurei textos/obras de autores e autoras densos teoricamente, reconhecidos por seus pares em seus respectivos campos de estudo e que eram os mais citados em trabalhos sobre o tema abordado.

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2.1- O mal na era antiga: O Diabo entre o monismo e o dualismo Qualquer pessoa que fizer uma visita a uma I.U.R.D. na atualidade poderá perceber como o Diabo, este personagem já bastante idoso, encontra neste meio uma vivacidade exuberante. Embora seja claro que a igreja do Bispo Macedo tem formas e modos próprios de crer e agir em relação ao Diabo e seus demônios, há também conceitos e práticas que fincam raízes em outros tempos e espaços. Gostaria, mais uma vez, de frisar que crentes da I.U.R.D. não são meros reprodutores de conceitos e práticas herdadas do passado, mas também não recriam seus conceitos sobre este personagem a partir de um vácuo. A crença em seres personificados que se instalam e perturbam a vida das pessoas existe, alterando seus modos de vida, por meios e motivos diferenciados, desde os tempos bíblicos. A importância de se revisitar os textos sagrados se justifica pelo fato de que novas práticas são sempre criadas a partir de fragmentos de práticas antigas. Mais uma vez, gostaria de chamar a atenção do leitor ou leitora para as marcantes diferenças entre a concepção do mal do Antigo e a do Novo Testamentos. No Antigo Testamento não existe uma concepção do mal de forma personificada e autônoma, como há no Novo Testamento. Ao folhear o Primeiro Testamento quase não se pode encontrar citações que falem de um ser personificado e autônomo em relação a Deus atuando

80

destrutivamente. Mas ao folhear o Novo Testamento, especialmente os Evangelhos, é surpreendente como passam a ser abundantes as referências ao mal de forma personificada, autônoma e antagônica a Deus. Por que existem diferenças tão marcantes em relação aos dois Testamentos? Sigo a hipótese defendida pelo historiador especialista no assunto, Jeffrey B. Russel,82 ao longo de seu livro, segundo a qual o Antigo Testamento é marcado por uma visão monista. Este monismo não dá espaço a nada que ofusque a soberania absoluta de Deus. Deus é o autor de todas as coisas, sejam elas compreendidas como boas ou más pelo ser humano. Em acordo com essa tese parece estar John A. Sanford ao assinalar que "existem, no Antigo Testamento, apenas quatro referências a Satanás como sendo um ser sobrenatural."83 A razão de tão poucas referências a Satã é explicada pelo autor pelo fato de que "o próprio Iahweh é o responsável pelo mal, de modo que a figura de um demônio não é necessária."84 As análises do biblista, especialista em Antigo Testamento, Nelson Kilpp parecem também corroborar com as afirmações dos autores acima citados: No Antigo testamento, o Deus de Israel exige ser adorado como Deus único. Esta exclusividade do Deus bíblico é responsável pela falta de um dualismo radical entre o bem e o mal e também pela inexistência de uma demonologia no Antigo Testamento. Sendo Javé único, ele se apresenta 82

RUSSELL, J. B. O diabo: as percepções do Mal da Antigüidade ao Cristianismo Primitivo. SANFORD, J. A. Mal: o lado sombrio da realidade, p. 37. 84 Ibid., p. 39. 83

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como um Deus ambivalente: ele causa o bem, mas também está na origem do mal.85

Outro estudioso da Bíblia a concordar com esta concepção é Uwe Wegner, especialista em Novo Testamento. Para o autor “essa tendência de considerar demônios como entidades exclusivamente prejudiciais torna-se predominante nos três séculos anteriores à era cristã e vai determinar decisivamente o entendimento vigente da época de Jesus”.86 Alguns textos bíblicos87 serviriam de base para evidenciar esta perspectiva que venho descrevendo acima: Se uma trombeta soa na cidade, não ficará a população apavorada? Se acontece uma desgraça na cidade não foi o Senhor quem agiu? (Am 3: 6). Eu sou o Senhor e não há outro, fora de mim não existe Deus; eu te meti o cinturão, embora não me conhecesses, para que fosse sabido do oriente até o ocidente que fora de mim não há outro. Eu sou o Senhor e não há outro! Eu formo a luz e crio as trevas, eu faço a ventura e crio a desgraça, eu, o Senhor, faço todas estas coisas. (Is 45: 57). Olha, fui eu que criei o ferreiro que assopra as brasas, e produz armas de acordo com sua profissão; mas fui também eu que criei o destruidor para destruir. (Is 54: 16). Quando afiar o gume da espada e tomar em mãos o juízo, tirarei vingança de meus inimigos e darei o merecido castigo aos que me odeiam. Embeberei de sangue minhas flechas e minha espada se fartará de carne, do sangue dos mortos e dos cativos, das cabeças dos chefes inimigos’. (Dt 32: 41,42).

85

KILPP, N. Os poderes demoníacos no Antigo Testamento. In: BRASSIANI, I. Diabo, demônio e poderes satânicos, p. 25. 86 WEGNER, U. “Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os Evangelhos”. In: ESTUDOS TEOLÓGICOS, p. 88. 87 Todas as citações que faço da Bíblia são tiradas da edição eletrônica da BIBLIA SAGRADA, publicada pela Editora Vozes.

82

Concordo com a visão dos autores supra citados, pelo menos em sua essência, mas gostaria de problematizar algumas de suas considerações, pois acho que assim poderia apresentar uma explicação mais adequada para a questão. Não há necessidade do Diabo no Antigo Testamento porque o mal é fruto da desobediência humana. O relato teológico sobre a queda do gênero humano, na forma como é narrado nos capítulos 2 e 3 do livro de Gênesis, ilustra bem o que estou afirmando. No texto sagrado, Deus aparece como o criador de todas as coisas, inclusive do gênero humano, de forma boa e perfeita. O ser humano recebe orientações de seu criador para viver e se perpetuar no estado de bondade e perfeição. O ser humano, todavia, desobedece às orientações de Deus e a conseqüência de sua ação é a dor, a vergonha, o trabalho árduo da terra, a dominação da mulher pelo homem. A desobediência humana, fator desencadeador destes males, é instigada por um animal, a serpente, e não por um ser sobrenatural (anjo caído, demônio ou Diabo). Isto acontece porque o Antigo Testamento é permeado por uma visão monista, onde Deus é quem garante a ordem cósmica e qualquer ser/pessoa que pretenda atrapalhar esta ordem, recebe a devida retribuição por sua desobediência. Neste sentido, pode-se dizer que no Antigo Testamento o mal praticado pelo ser humano traz embutido em si o castigo. Assim sendo, seria correto afirmar que o Deus Javé88 é o originador de uma série de males em retribuição ao mal praticado pelo ser 88

Javé é o nome próprio do Deus do Antigo Testamento, a primeira parte do cânon cristão.

83

humano, todavia ele não é o causador do mal em um sentido moral. Neste momento, desejo chamar a atenção, mais uma vez, para o fato de que entre o fim do Antigo Testamento e o início do Novo Testamento, houve uma produção literária abundante, mas, infelizmente, não foi integrada ao cânon cristão. Este fato criou a falsa impressão de ter havido uma lacuna entre os dois Testamentos e, em conseqüência disto, fez com que as mudanças em relação ao mal não fossem percebidas de forma gradual. Embora exista um enorme oceano entre o Velho e o Novo Testamentos, no que diz respeito às suas respectivas atitudes em relação à personificação do mal, não resta dúvida que os Apócrifos [textos não incorporados ao cânon cristão] são a ponte que pode fazer a ligação entre ambos. Porque na época de Cristo eles foram muito lidos e influenciaram seus discípulos, além de terem feito o mesmo com os pensadores que, mais tarde, elaboraram o Diabo como adulto aterrador.89

Em apoio a esta afirmação parece estar o que diz Uwe Wegner, embora este autor atribua uma influência também do Antigo Testamento na construção de uma visão neotestamentária do mal: “A compreensão dos demônios como espíritos exclusivamente rebeldes e contrários a Deus é fruto de um gradativo, mas demorado processo, em que o cristianismo assimilou idéias do AT, dos gregos e do Antigo Oriente”.90 Os períodos sob hegemonia persa (entre os séculos VI e IV a.C.) e depois grega (entre os séculos IV e I a.C.) fizeram com que o 89 90

STANFORD, P. O Diabo: uma biografia, p. 52. Op. cit, p. 87.

84

judaísmo, e também o cristianismo como herdeiro desta tradição, fossem profundamente influenciados pelas concepções dualistas destes povos. Nesse período teria havido uma ruptura na personalidade de Deus. O Deus único e autor de todas as coisas teria deixado de ser um agente por meios maléficos para se tornar exclusivamente um autor benigno. Este processo é assim descrito pelo historiador Jeffrey B. Russell: O Deus único dividiu-se em duas partes. Uma, o aspecto bom do Deus, tornou-se "o Senhor". A outra, o aspecto mau, tornou-se "o Diabo". Ao mesmo tempo em que os hebreus continuaram a insistir no monoteísmo como o elemento essencial de sua religião, inclinaram-se inconscientemente para o dualismo. Explicitamente, eram monoteístas: havia apenas um Deus, e seu nome era Iavé. O Deus era onipotente. Mas agora o Deus era totalmente bom; o mal era alheio à sua natureza. Não obstante, o mal ainda existia. Para explicar sua existência, os hebreus voltaram para o dualismo.91

Seria conveniente, porém, retomar esta explicação sob um prisma diferente. Penso que seria melhor não afirmar ter havido uma duplicação na personalidade de Deus. Mais adequado seria dizer que há um rompimento ou um deslocamento, no âmbito da cultura judaica, de uma visão monista (Deus como o autor e mantenedor da ordem cósmica) para uma visão dualista (Deus enfrenta um adversário poderoso para manter a ordem cósmica). Os persas/iranianos possuíam uma concepção dualista. O bem e o mal eram realidades distintas e causadas por princípios distintos. Havia um Deus bom que era o responsável por tudo que havia de bom. 91

RUSSELL, J. B. Op. cit. , p. 180-181.

85

Havia também o seu oponente que criava e mantinha o mal. Uma revolução na história dos conceitos ocorreu no Irã pouco antes de 600 a.C. com os ensinamentos do profeta Zaratustra, que lançou as bases da primeira religião totalmente dualista. A revelação de Zaratustra era que o mal não é uma manifestação do divino, vindo de um princípio totalmente à parte. Ao passar assim do monismo para o dualismo, Zaratustra também afastava-se do politeísmo em direção ao monoteísmo.92

O mesmo autor pensa que o dualismo persa logo passou a exercer influência sobre os gregos.93 Estes, através de seus sistemas filosóficos, difundiram também uma concepção dualista que exerceu forte influência sobretudo sobre os judeus helenizados. Nelson Kilpp demonstra como o dualismo de origem persa foi acolhido pelo judaísmo tardio: Mas quando, em épocas mais recentes do Antigo Testamento, a mentalidade dualista tornou-se mais presente na fé de Israel e, por motivos óbvios, havia escrúpulos em simplesmente atribuir a Javé a origem do mal, já que Deus não quer nem visa o mal, buscou-se um personagem que pudesse cumprir uma dupla função: a de evitar atribuir o mal a Javé e, ao mesmo tempo, de confirmar que Deus continua no controle de toda a história.94

Da tradição filosófica grega clássica, Platão é o pensador que maior influência teria deixado sobre o cristianismo. Num mundo assim, quais as fontes do mal? Platão dá várias respostas. Uma delas é que o mal não tem existência própria. Ele consiste da falta de perfeição, ou privação. O mundo das idéias é perfeito, totalmente real, e bom. O mundo fenomenal, porém, não pode refletir adequadamente o mundo das idéias, e na medida em que isso acontece, torna-se menos real, menos bom e, em 92

Ibid., p. 85. Ibid., p. 118. 94 KILPP, N. Op. cit., p. 35. 93

86

conseqüência, mais mau.95

O cristianismo optou por uma visão intermediária entre o monismo do Antigo Testamento e o dualismo persa e grego. O referido autor classifica esta visão como sendo semi-dualista.

Segundo esta

perspectiva, Deus é soberano e criador de todas as coisas, como afirma o Antigo Testamento, mas não age de forma maléfica, nem é o responsável pelo que existe de mal no mundo. O mal teria entrado no mundo devido ao livre-arbítrio dado às suas criaturas humanas e angelicais. A partir do pecado (ser humano) e da rebeldia (anjos) o mal entrou no mundo e passou a fazer oposição a Deus. A posição cristã acerca do mal preservaria a soberania divina na criação do mundo, como na religião dos antigos israelitas, combinada com a concepção de que há um adversário maligno do Deus bom, como é apresentado na religião persa/iraniana e na filosofia antiga dos gregos. Esta explicação corresponde melhor ao processo histórico do encontro de culturas com uma cosmovisão dualista e a cultura judaica de cosmovisão monista. O quadro dominante de Jeová no Velho Testamento, ou seja, o de um Deus onipotente como fonte de tudo que há de bom ou mal, também foi mantido no Novo Testamento. Porém, com as atenções já voltadas para a figura do Diabo, ele assumiu a posição de princípio oposto ao de Cristo na abordagem nova que surgiu para esta eterna questão; somou-se a isto algumas noções advindas da literatura apócrifa, especialmente a dos anjos rebeldes. Mas o cristianismo fez bem mais do que simplesmente adaptar o melhor do pensamento judaico, de forma que este pudesse amparar seus argumentos sobre o salvador, 95

RUSSELL, J. B. Op. cit., p. 141

87

pois sua doutrina também acolheu diversas idéias gregas ao introduzir a ruptura entre o corpo (destinado ao pecado) e o espírito (a pura morada de Deus). E o resultado foi um cânone estritamente monista em teoria, mas que permitia pinceladas ocasionais de dualismo.96

Jeffrey B. Russel diz que a "função do Diabo no Novo Testamento é ser um princípio contrário ao Cristo. A mensagem central do Novo Testamento é a salvação: Cristo nos salva. E nos salva do poder do Diabo. Se o poder do Diabo é rejeitado, a missão salvadora do Cristo perde o sentido."97 O relato acerca da tentação de Jesus é um exemplo bastante claro do papel do Diabo no Segundo Testamento: Em seguida, Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo. Jejuou quarenta dias e quarenta noites, e depois teve fome. Aproximou-se, então, o tentador e lhe disse: “Se és filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pão”. Mas Jesus respondeu: “Está escrito: Não é só de pão que vive o ser humano, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. O diabo o levou, então, para a Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do Templo e lhe falou: “Se és filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Porque está escrito: A teu respeito ordenou a seus anjos e eles te carregarão nas mãos, para não tropeçares em alguma pedra”. Jesus lhe disse: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus”. O diabo o levou ainda a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo com sua glória e lhe disse: “Tudo isso te darei se, caindo por terra, me adorares”. Jesus, então, lhe falou: “Afasta-te, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás”. Então o diabo o deixou e anjos se aproximaram para servi-lo (Mt 4: 1-11).

A idéia de que o Diabo é um ser personificado em constante guerra contra o bom Deus é atestado por outros textos do Novo

96 97

STANFORD, P. Op. cit., p. 56. Ibid., p. 233.

88

Testamento:98 No mais, confortai-vos no Senhor e na força de seu poder. Revesti-vos da armadura de Deus para poderdes resistir às insídias do diabo. A nossa luta não é contra forças humanas mas contra os principados, contra as potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos maus dos ares. Tomai, pois, a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, vitoriosos em tudo, vos mantenhais inabaláveis. (Ef 6: 10-13). Estai alerta e vigiai, pois o adversário, o diabo, como um leão que ruge, anda rondando à procura de quem devorar. (1Pe 5: 8). Houve uma batalha no céu: Miguel e seus anjos tiveram de combater o dragão. O dragão e seus anjos combateram mas não puderam vencer e não houve mais um lugar para eles no céu. O grande dragão, a antiga serpente, chamada diabo e Satanás, que seduz o mundo todo, foi então precipitado para a terra e com ele os seus anjos. Ouvi uma voz forte do céu que dizia: “Chega agora a salvação e o poder e o reino de nosso Deus e a autoridade de seu Cristo, porque foi precipitado o acusador de nossos irmãos, aquele que os acusava diante do trono de nosso Deus dia e noite”. (Ap 12: 7-10).

O termo que o Antigo Testamento utiliza para se referir a um ser sobrenatural que vive sob a soberania divina é Satã. "A palavra hebraica satã vem de uma raiz que significa 'opor', 'obstruir' ou 'acusar'".99 O termo hebraico não precisa designar, necessariamente, um ser sobrenatural, mas é uma palavra também de uso corriqueiro para designar algo que esteja obstruindo o caminho ou a vida de alguém. O termo hebraico Satã (satan) ou Satanás, que a Septuaginta (versão grega da Bíblia Hebraica) traduz por diábolos, provém de uma raiz semita de significado bem profano. Usa-se o verbo correspondente para descrever a 98 99

O'GRADY, J. Satã: o príncipe das trevas, p. 24. RUSSELL, J. B. Op. cit., p. 185.

89

inimizade, o ódio ou o rancor entre irmãos (Gn 27, 41; 50,15) ou entre pastores de ovelhas (Gn 26,20s) e, além disso, para designar o inimigo ou adversário no campo político ou militar, geralmente pertencente a um outro povo (1Sm 29,4; 1Rs 11,14.23.25). Num contexto judicial, o “inimigo” é o que inicia um processo contra alguém, tornando-se, portanto, o “acusador” ...100

Há somente quatro referências no Antigo Testamento em que a palavra Satã é a designação de um ser sobrenatural, mas, mesmo nestas passagens, Satã está longe de ser um princípio do mal que age de forma autônoma e se opõe a Deus. É importante notar que todos os textos foram escritos durante o período sob domínio persa, o mais tardar no período sob domínio grego. Não é difícil fazer um inventário completo destes textos:101 Ele me fez ver o Sumo Sacerdote Josué, que estava de pé diante do anjo do Senhor, e Satã, que estava de pé à sua direita para acusá-lo. O anjo do Senhor disse a Satã: “Que o Senhor te reprima, Satã, reprima-te o Senhor que elegeu Jerusalém. Este não é, por acaso, um tição tirado do fogo?” (Zc 3: 1,2). Suscita contra ele um ímpio, um delator (Satã) que se ponha à sua direita! (Sl 109: 6). Satã quis prejudicar Israel e para tal induziu Davi a recensear Israel. (1Cr 21: 1). Certa vez, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor; entre eles veio também Satanás. O Senhor , então, disse a Satanás: “Donde vens?” – “Dei umas voltas pela terra, andando a esmo”, respondeu ele. O Senhor lhe disse: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e se afasta do mal”. Satanás respondeu ao Senhor: “Mas será por nada que Jó teme a Deus? Porventura 100 101

KILPP, N. Op. cit., p. 33. SANFORD, J. A. Op. cit. p. 37-38.

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não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abençoaste seus empreendimentos e seus rebanhos cobrem toda a região. Mas estende a mão e toca em todos os seus bens; eu te garanto que te lançará maldições em rosto!” Então o Senhor disse a Satanás: “Pois bem, tudo o que ele possui, eu o deixo em teu poder, mas não estendas a mão contra ele!” E Satanás saiu da presença do Senhor (Jó 1: 6-12).

O texto de Jó mostra Satã entre os filhos de Deus. Este texto exemplifica a noção de uma corte divina presente no Antigo Oriente, da qual o Antigo Testamento partilhava de forma peculiar em função de seu conceito da soberania de Deus. Os filhos de Deus seriam divindades menores submissas a uma divindade maior e criadora de todas as coisas, o Deus Javé. A cena mostra o Deus Javé presidindo a corte celestial e, entre os seus subalternos, está Satã. É importante observar que Satã, mesmo aqui aparecendo de forma personificada, nada pode fazer contra Jó sem que Deus o permita. A palavra e a personagem Satã, no Antigo Testamento, devem ser entendidas dentro de uma visão monista. O Deus criador e soberano é o agente de todas as coisas. Tudo que acontece está sob o seu domínio. Já a palavra Diabo, na forma como aparece no Segundo Testamento, designa uma personagem que tem autonomia em relação a Deus e usa desta autonomia para lhe fazer uma persistente oposição. O Diabo do Novo Testamento expressa uma visão dualista. Como ocorreu esta transformação de Satã (monismo) em Diabo (dualismo)? Como o

91

cristianismo harmonizou estas duas concepções, criando o seu semidualismo? O cristianismo harmonizou as duas visões atribuindo a Deus soberania na criação de todas as coisas e responsabilizando o ser humano e as criaturas angelicais pelo mal na criação. Foi preciso, então, construir a legitimidade desta visão de decadência da criação. Lúcifer é o nome que designa esta síntese entre uma visão monista e outra dualista. Luther Link diz que a palavra Lúcifer não é originalmente um nome próprio, mas apenas uma palavra que significava "o que leva a luz".102 Entendo que a explicação dada por Renatus Porath para origem de Lúcifer pode esclarecer a questão colocada de forma superficial pelo autor acima citado. Nesta longa história de fé, em seus estágios mais tardios da comunidade judaica de fala grega e da comunidade cristã, insere-se o desenvolvimento de um simbolismo do mal caracterizado, a partir dos pais da igreja, por Lúcifer. Este verbete foi introduzido pela Vulgata, versão latina da Bíblia providenciada por Jerônimo no século IV, para traduzir a expressão hebraica que no português corresponde à “estrela da manhã” (Almeida), “astro brilhante” (Bíblia de Jerusalém) em Is 14,12 ou “aurora” no Sl 110,3 e “manhã” em Jó 11,17.103

Lúcifer é um anjo e, enquanto tal, foi criado por Deus. Um anjo bom criado pelo bom Deus. A ambição de Lúcifer o levou à rebeldia para com Deus e à sua conseqüente queda. Lúcifer não traiu a Deus sozinho, mas em sua ambição e queda, atraiu muitos outros anjos consigo.

102

LINK, L. O. Diabo: a máscara sem rosto, p. 28. PORTAH, R. Lúcifer – a evolução de um simbolismo do mal. In: BRASSIANI, I. Diabo, demônio e poderes satânicos, p. 42.

103

92

Estes anjos subalternos do ambicioso Lúcifer foram reconhecidos como demônios. Segundo John A. Sanford104, os pais da igreja foram os responsáveis por construir uma interpretação do Antigo e Novo Testamentos que pudesse sustentar esta concepção de queda de Lúcifer e seus subalternos.105 Um texto do Antigo e outro do Novo Testamento podem ter servido como sustento da tese dos pais da igreja: Como caiste do céu astro brilhante, filho da aurora? Como foste arrojado por terra, tu que vencias as nações? E tu dizias em teu coração: “Subirei até o céu, acima das estrelas de Deus estabelecerei o meu trono. Assentar-me-ei no monte da Assembléia, nos confins do norte. Subirei no cume das nuvens, serei semelhante ao Altíssimo”. Mas serás lançado no Xeol, nas profundezas do abismo (Is 14: 12-15). Voltaram os setenta e dois cheios de alegria, dizendo: “Senhor, até os demônios se submetem a nós em teu nome”. E Jesus lhes disse: “Vi Satanás cair do céu como um raio. Dei-vos poder para pisar em serpentes e escorpiões e em toda a força do inimigo, e nada vos fará mal. Mas não vos alegreis que os espíritos se vos submetem. Alegrai-vos, antes, porque vossos nomes estão escritos nos céus” (Lc 10: 17-20).

É possível perceber que o texto supra do profeta Isaías se refere a uma personagem histórica concreta, provavelmente o rei de Babilônia, mas a hermenêutica do cristianismo dos pais da igreja tinha como uma de suas regras interpretar o Antigo Testamento em função do Novo Testamento e isto fazia com que muitos textos tivessem a sua leitura espiritualizada. Este recurso da leitura tipológica encontrou apoio em concepções já em andamento na época do Novo Testamento que concebiam 104 105

SANFORD, J. A. Op. cit., p. 143. LINK, L. Op. cit., p. 29, pensa que esta interpretação estaria madura somente na Idade média.

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o Diabo como tendo sua origem em um anjo de luz que se transformou em anjo entrevado devido à sua prepotência e insubmissão. Luther Link explica da seguinte forma a necessidade de uma narrativa como a da queda de Lúcifer: Se Deus criou o Diabo e este é em si mau, então Deus criou o mal. As implicações poderiam ser perturbadoras (...). Se o Diabo houvesse nascido mau, poderíamos dizer que ele pecou? Ele não teria opção, a não ser fazer o mal. Mas se Deus não criou o Diabo, Deus não é onipotente, e assim mergulhamos em um mundo maniqueísta, marcado pelo conflito entre o bem e mal cujo resultado é inerentemente inconclusivo. (...) Sim Deus criou o Diabo, mas o Diabo não inerentemente mau quando foi criado; ele escolheu tornar-se mau. Portanto, Deus permanece onipotente, mas não é o responsável pelo mal. Essa solução exigiu fundamento nas Escrituras, e o modo como esse fundamento foi providenciado explicará por que Lúcifer tornou-se um nome para o Diabo.106

Satã transformou-se no Diabo pela mediação de Lúcifer. Monismo e dualismo estavam harmonizados através de uma narrativa que tanto isentava a Deus pela criação do mal como reafirmava sua onipotência. A história de Lúcifer, na forma como é narrada e vivida no cristianismo antigo, livra Deus de toda e qualquer mácula! Neste ponto ainda nos resta analisar o modo como o cristianismo dos primeiros séculos reconstruiu o material bíblico em função de suas novas necessidades contextuais. Para a especialista em história dos tempos bíblicos, Elaine Pagels, cumpriu ao cristianismo do fim do primeiro século e início do segundo o papel de redefinir os agentes sociais que

106

Ibid., p. 29.

94

viriam a ser demonizados. Embora o caráter demonizador do outro triunfe na era medieval, este finca algumas raízes ainda no período antigo. Para a historiadora da religião acima citada, já está presente no Evangelho canônico de Mateus uma estratégia de demonização dos seus adversários por parte do cristianismo “primitivo”: “Mateus, propagando a mensagem de Jesus, o Messias, em c. 80 d.C., rivalizava sobretudo com esses mestres e rabinos fariseus, que estavam conseguindo se firmar em todo o mundo judaico como intérpretes autorizados da Torá”.107 Esta situação social conflituosa entre o cristianismo do fim do primeiro século e o judaísmo rabínico é dimensionado como uma luta cósmica entre o Bem e o Mal pelo primeiro. O especialista bíblico Luke Johnson mostra que, na antiguidade, grupos filosóficos atacavam muitas vezes nos termos os mais virulentos seus rivais. Mas, filósofos não se empenhavam, como faz Mateus, em difamar como demônios os adversários. No mundo antigo, tanto quanto sei, só os essênios e os cristãos é que realmente transportaram o conflito com seus adversários para a guerra cósmica.108

Esta prática de demonização dos adversários políticos do cristianismo por parte dos evangelistas, que escrevem seus textos na segunda metade do primeiro século, foi sendo adaptada pelos cristãos das décadas seguintes, de acordo com as mudanças de agentes sociais no mundo antigo. 107

PAGELS, E. As origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna, p. 108. 108 Ibid., p. 117.

95

Na medida que o cristianismo vai adentrando ao segundo século, o judaísmo vai deixando de ser um inimigo social e político ameaçador, enquanto os romanos passam a ser identificados como tais em função das perseguições empreendidas por estes últimos. Cem anos após terem sido escritos os evangelhos, portanto, cristãos adaptaram às circunstâncias da perseguição pagã o modelo político e religioso que encontravam nos mesmos evangelhos – o povo de Deus contra o povo de Satanás –, e identificaram-se como aliados de Deus, agindo contra os magistrados e as turbas pagãs romanas, que consideravam como agentes de Satanás.109

Esta visão de Elaine Pagels é atestada também por Peter Stanford, quando este afirma que o cristianismo do terceiro século incorporou definitivamente a prática do Novo Testamento de demonizar os adversários políticos. Para os cristãos primevos era comum a prática de associar adversidade social, política e doutrinária com adesão ao Diabo. A relação entre heresia e o nome de Satã foi rapidamente estabelecida na época primeva do cristianismo e mantevese como uma das suas características distintivas, a ponto de fazer com que a figura diabólica povoasse para sempre a mente dos fiéis. Contudo, no contexto do cristianismo, a associação entre o Diabo e a heresia estreitou-se mais ainda no terceiro século, com o crescimento do Gnosticismo, que deu a esse personagem um papel igual ao de Deus.110

Seja pela demonização de adversários políticos (universo extra-psíquico) ou pela demonização das próprias lutas pessoais (universo intra-psíquico) a luta contra o Diabo viria a se tornar uma prática bastante 109 110

Ibid., p. 192. STANFORD, P. Op. cit., p. 84.

96

presente no cristianismo. Um exemplo interessante deste tipo de prática no cristianismo monástico é a “biografia” de Santo Antão escrita por Santo Atanásio111, um dos pais do cristianismo que nasceu no fim do terceiro século e viveu até quase o fim do quarto século. Para Anselm Grün os fatos narrados por Santo Atanásio poderiam caracterizar muito bem o monaquismo antigo, do terceiro ao sexto século da era cristã: A experiência de Antão é considerada como característica do monaquismo antigo (mais ou menos do 3º ao 6º século). Os monges fizeram a experiência de que caminhar para Deus levava-os primeiramente a lutar contra poderes sombrios. Eles sentem-se levados para lá e para cá, entre Deus e outras forças que pretendem afastá-los de Deus. A estas forças que eles vêem presentes nos seus desejos, instintos, motivações e emoções, eles chamam de demônios.112

Seria interessante explorar com um pouco mais de atenção este belo exemplo de luta contra o mal no âmbito do cristianismo monástico antigo, uma vez que temos à disposição o livro escrito por Santo Atanásio sobre a “Vida e a conduta de Santo Antão”. Quando Santo Antão toma a decisão de se tornar monge há uma conspiração no inferno para tentar fazê-lo desistir da idéia: Mas o diabo, inimigo do bem e invejoso, não suporta ver semelhante propósito num jovem. O que maquinara contra 111

Ver ATANÁSIO, S. Vida e conduta de Santo Antão. Na introdução da obra deste Pai da Igreja, o editor contemporâneo traz os seguintes dados biográficos: “Este homem contundente, apologista e polemista, lutador incansável, nasceu em Alexandria em 295 de nossa era e morreu depois de uma longa e conturbada existência, nesta mesma Alexandria aos 2 de maio de 373.” (p. 9). “Atanásio converteu-se ainda na juventude, pois, aos dezessete anos foi escolhido pelo bispo Alexandre para ocupar o cargo de leitor. Ainda por Gregório de Nazianzo sabemos que ele se aplicou desde de sua conversão, às sérias e profundas meditações sobre as Escrituras que se tornaram, a partir de então, sua principal fonte de inspiração e saber.” (p. 10). 112 GRÜN, A. Convivendo com o mal: a luta contra os demônios no monaquismo antigo, p. 13.

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ele começou a executar. Primeiramente, tentou fazê-lo abandonar a ascese, sugerindo-lhe a recordação dos bens, a responsabilidade pela irmã, suas relações familiares, o amor ao dinheiro, o desejo de glória, o prazer variado da comida, as outras satisfações da vida ...113

Claro que o Diabo saiu como perdedor na sua tentativa de desviar Santo Antão de sua vocação ascética, mas sua derrota não o afastaria em definitivo daquele santo homem. Ao longo de sua vida monástica muitas foram as batalhas travadas. Certa vez um demônio muito alto me apareceu e ousou dizer-me: “Sou o poder de Deus, sou a providência. Que queres que eu te conceda?” Então soprei com mais força contra ele; tendo invocado o nome de Cristo, pus-me a bater nele, e parece-me que, de fato, bati. Ao ouvir o nome de Cristo, logo esse grande (demônio) desapareceu com todos os seus demônios.114

A prática do exorcismo, muito comum nos relatos do Novo Testamento, está também presente na ação de Santo Antão. Em uma ocasião foi procurado por um oficial com o intuito de libertar sua filha das garras do Diabo. Assim retirado, tendo-se fixado algum tempo a passar sem sair nem receber ninguém, Antão foi importunado por certo Martiniano, oficial, cuja filha era atormentada pelo demônio. Esse homem permaneceu longo tempo batendo à sua porta e suplicando-lhe que viesse e orasse a Deus pela menina. Antão não quis abrir-lhe, mas inclinando-se de alto, disse-lhe: “Homem, por que gritas por mim? Sou homem como tu. Mas se crês em Cristo, que eu adoro, vai, ora a Deus com fé, e tua súplica será ouvida.” Logo o homem acreditou, invocou a Cristo e partiu: sua filha estava purificada do demônio.115

113 114 115

ATANÁSIO, S. Vida e conduta de Santo Antão, p. 298. Ibid., p. 326. Ibid., p. 333.

98

Em uma outra oportunidade, Santo Antão exorcizou mais uma menina possessa, desta vez levada a ele por sua mãe: Quando partiu, nós o acompanhamos em sinal de consideração. Ao chegarmos à porta da cidade, uma mulher gritou atrás de nós: “Espera, homem de Deus, minha filha está cruelmente atormentada por um demônio. Espera, eu te peço, para que eu não me ponha em perigo correndo atrás de ti”. Ouvindo isso e a pedidos nossos, deteve-se de boa vontade. Quando a mulher já estava bem perto, a menina foi atirada por terra. Antão orou e invocou o nome de Cristo. A menina se levantou curada, o espírito impuro havia partido.116

Na minha forma de ver, o cristianismo antigo vai seguir pelas trilhas dos tempos neotestamentários quanto às suas práticas acerca do Diabo. Nesse primeiro momento em que estou preparando o terreno para a análise genealógica do quarto capítulo, o Diabo aparece como adversário de Deus no âmbito do cristianismo. Esta oposição que Satanás faz a Deus pode assumir a forma de um embate social de proporções cósmicas, a luta do Bem (cristianismo) contra o Mal (judaísmo, império romano). Neste caso o Diabo deve ser resistido de forma doutrinária e/ou bélica. Pode também assumir o caráter de uma luta do bem contra o mal que atravessa os corpos das pessoas. Nesta situação o Diabo deve ser resistido através de um longo processo de mortificação dos desejos da carne através da ascese. Outra saída, para os que não puderam resistir às ciladas do Diabo, é encontrar um homem santo de Deus que possa, através da autoridade do nome de Jesus, expelir o demônio do corpo da pessoa. Estas 116

Ibid., p. 350.

99

práticas não devem ser consideradas menos políticas que as anteriores, pois, mesmo neste caso há uma batalha política que não tem apenas o mundo social como arena, mas passa a ser travada no interior dos corpos.

2.2- O mal na era medieval: O Diabo como a máscara sem rosto Quando

uma

pessoa

pronuncia

a

palavra

Diabo,

certamente, uma imagem mental acompanha o som de sua pronúncia. Que imagem acompanha a palavra? A mais tradicional é a de um ser de cor escura, com chifres, rabo, portando um tridente em uma das mãos, com aparência assustadora e bestial. De onde vem esta imagem se os textos canônicos do cristianismo apenas falam da atuação do Pai da Mentira mas não o descrevem?117 Como se constituiu a imagem física do Diabo? Que elementos iconográficos e culturais contribuíram para a construção desta imagem? O texto escrito por Luther Link chama a atenção por sua especificidade. Trata das representações físicas do Adversário na literatura e nas obras de arte, especialmente nas pinturas e esculturas. O título é sugestivo: "O Diabo: a máscara sem rosto". O autor se lamenta ao longo do livro pela dificuldade de apreender o aspecto físico do Pai da mentira. Na arte cristã há uma tradição iconográfica acerca da pessoa de Jesus Cristo, da 117

O'GRADY, J. Op. cit., p. 55.

100

Virgem Maria, dos Santos, mas não do Diabo, a máscara sem rosto. Os artistas cristãos tiveram que buscar no mundo clássico antigo os elementos que iriam compor o aspecto físico predominante do Chefe dos Demônios. Na hora de pintar o Diabo, os artistas tinham enorme dificuldade. Não existia tradição literária digna do nome e, o mais exasperante, não havia tradição pictórica alguma. Nas catacumbas e nos sarcófa*gos não há Diabo. Essa inexistência de tradição pictórica, combinada a fontes literárias que confundiram o Diabo, Satã, Lúcifer e demônios, são razões importantes para a ausência de uma imagem unificada do Diabo e da iconografia irregular. Mas alguma coisa sempre é melhor do que nada. E havia algo que o artista cristão podia tirar das fontes clássicas que os comentários teológicos corroboravam - Pã.118

Esse vácuo de representações visuais acerca do Diabo começaria a ser superado exatamente no período medieval, em conformidade com Jérôme Baschet: Note-se que o Diabo está quase totalmente ausente das imagens cristãs até o século IX. É somente por volta do ano 1000 que encontra uma posição digna dele, quando se desenvolve uma representação específica enfatizando sua monstruosidade e animalidade, e manifestando seu poder hostil de modo cada vez mais insistente.119

O antigo Deus grego iria fornecer os elementos iconográficos

fundamentais

e

predominantes

do

Diabo.

"Cinco

características comuns do Diabo derivam do clássico Pã: chifres, cascos, orelhas, rabo e parte inferior do coro peluda."120 Por sua vez, Joan O'Grady descreve o Deus grego Pã com 118

LINK, L. Op. cit., p. 53. BASCHET, J. “Diabo”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C. Dicionário temático do Ocidente Medieval, p. 319. 120 Ibid., p. 54. 119

101

as seguintes características: Na mitologia grega, Pã era filho de Hermes, e tinha nascido com chifres e rabo, uma barbicha e cascos de bode, e todo o seu corpo era coberto de pêlos. Era um deus rústico dos bosques e dos campos sagrados, e com ele viviam, nas florestas, os paniscos, diabinhos do mato, seus filhos e filhas que aterrorizavam os seres humanos proporcionando-lhes pesadelos e aparições más. (...) Mas, antes de mais nada, ele representava o desejo sexual, a força da destruição e da criação. Aos olhos dos cristãos, acabou sendo vinculado a tudo que existia de mau. Para aumentar ainda mais a sua reputação de maligno, ele era considerado, na mitologia grega, como um dos muitos companheiros de Dionísio, o deus da fertilidade, simbolizado pela vinha.121

Para Jérôme Baschet a imagem física do Diabo iria se caracterizar da seguinte forma: A partir do século XI, desenvolve-se uma iconografia específica do Diabo: seu corpo conserva uma silhueta antropomórfica, mas essa forma, feita por Deus “à sua imagem” é pervertida, tornada monstruosa pela deformidade e pelo acréscimo de características animais (goela, presas, chifres, orelhas pontudas, asas de morcego, e a partir do século XIII, cauda, corpo peludo, garras de ave...).122

São variadas as explicações para esta construção da imagem do Diabo a partir da mitologia grega: A psicologia apresenta achados semelhantes, o que não é de se admirar, pois a mitologia é uma espécie de mapa da psique humana, uma personificação das forças psíquicas arquetípicas e eternas que compõem o universo interior dos seres humanos.123 Essa apropriação por parte do cristianismo de idéias e cerimônias emprestadas às religiões politeístas tem a sua 121 122 123

O'GRADY, J. Op. cit., pp. 59-60. Op. cit, p. 322. STANFORD, J. A. Op. cit., p. 35.

102

contrapartida no delineamento mais límpido de sua teoria demonológica. Tudo o que ele repeliu energicamente como demasiadamente pagão, como contrário a seus dogmas, como impuro e ímpio, refugiou-se no reino do Mal.124 O fato de os cristãos terem de andar por um mundo pagão, de terem sido perseguidos sem trégua por uma Roma pagã e de ser através da mudança das crenças dos pagãos que a religião cristã conseguiria manter-se viva, tornou uma coisa natural para os primeiros cristãos a associação das 125 divindades pagãs com o Maligno. A identificação de deuses pagãos com diabos e o uso de Pã na forma de alguns demônios não são acidentais. Refletem o modo como a Igreja deturpou a ciência e a filosofia clássicas, tornando-as estéreis ao longo dos séculos.126

Fazendo exceção à primeira explicação que está embasada na psicologia analítica jungiana, as três seguintes possuem a tendência comum de perceber no cristianismo a construção do reino das trevas com tudo que deve ser negado no seu universo de valores. A afirmação de valores do cristianismo, como a obediência e a abstinência sexual, passam pela demonização de religiões que não dão importância a tais valores. O reino da luz é a obediência e a abstinência sexual, enquanto o reino das trevas é a rebeldia e a luxúria. É claro que o processo de demonização do "outro" foi agravado pelo fato de o cristianismo ter sido profunda e terrivelmente perseguido pelos romanos no seu período de formação. Quando uma religião concorre com o cristianismo, ela tende a ser encarada

124 125 126

NOGUEIRA, C. R. F. O Diabo no imaginário cristão, p. 29. O'GRADY, J. Op. cit., p. 59. LINK, L. Op. cit., p. 68.

103

como um fenômeno que trava uma batalha contra aquele. Muitos são os casos em que o cristianismo acaba por demonizar seus concorrentes no campo religioso. A construção iconográfica do Diabo é um exemplo da forma demonizante como o cristianismo tem lidado com as religiões que com ele concorrem. A imagem do Diabo foi construída sobre os escombros das antigas religiões que precederam ao cristianismo na história. Depois que a imagem e o papel do Adversário de Deus já estavam delineados, o cristianismo continuou a identificá-lo com as expressões religiosas do "outro". O mesmo processo que levou à demonização das religiões gregas através da sua representação visual com caracteres visuais do Deus Pã, levou a poderosa igreja medieval a demonizar e a caçar os seus inimigos dissidentes e também levou o cristianismo a demonizar as religiões das populações autóctones das Américas, bem como as religiões dos negros africanos para cá trazidos como escravos. Quando os decretos do governo e da Igreja referem-se ao Diabo, em geral estão se referindo a seus próprios oponentes. É por isso, por exemplo, que quando o reverendo Ian Paisley pregou um sermão em Ulster em novembro de 1985, descreveu Margaret Thatcher como "agente" do Diabo. A velha ausência de iconografia é útil, pois seja Thatcher, sejam os cátaros, o Diabo tem o "rosto" do oponente. O Diabo sem rosto é um modo eficaz de evitar levar em consideração a oposição e automaticamente colocar Deus do próprio lado. O Diabo com freqüência é meramente "o Outro".127

Uma análise mais aprofundada da concepção do Diabo no 127

Ibid., p. 193.

104

período medieval pode servir para reforçar a tese de que a sua representação visual tem sido construída a partir da demonização do "outro". A seguir, procuro demonstrar como a concepção do Inimigo, como a “máscara sem rosto”, instrumentaliza um universo de práticas de exclusão de todos que divergem da versão oficial/ortodoxa do cristianismo medieval. Jean Delumeau diz que “a emergência da modernidade em nossa Europa ocidental foi acompanhada de um inacreditável medo do Diabo”. Embora a modernidade deva ser considerada a época em que o Inimigo e, em conseqüência, a inquisição, tenha atingido o seu auge, o referido autor nos informa que entre os séculos XI e XII teria havido uma primeira grande “explosão diabólica”. O historiador francês afirma que Satã vai ser “assimilado pelo código feudal a um vassalo desleal”. A faceta do Adversário revelada neste primeiro grande momento de fama é a de um sedutor e perseguidor.128 Somente a partir do século XIV é que o Advogado da mentira começaria a atingir o cume de sua fama na Europa. Para Jean Delumeau a “Divina comédia”, escrita no início do referido século, seria um marco para a época triunfante do Inimigo de Deus. O Diabo viria a conhecer o declínio desta fama somente no final da modernidade, no século

128

DELUMEAU, J. A história do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, p. 239-240. Ver também a p. 247, onde o autor diz que “contrariamente ao que acreditavam Stendhal e muitos outros depois dele, foi no começo da Idade Moderna e não na Idade Média que o inferno, seus habitantes e seus sequazes mais monopolizam a imaginação dos homens do ocidente.”

105

XVII.129 Na Idade Média o Diabo não assume ainda o papel de um invasor que se assenhora das pessoas, mas sua função é muito mais a de um servo familiar das pessoas. Especialmente para as camadas populares, o Diabo medieval nem sempre é uma figura assustadora, como viria a ser para os eruditos modernos. A face de Satã predominante nos últimos séculos da era medieval poderia ser a de um personagem “familiar, humano, muito menos temível do que assegura a Igreja e isso é tão verdade que se chega bem facilmente a enganá-lo”.130 Para Iza Chain o período final da idade média seria marcado pela existência de duas concepções distintas do Diabo: “Poderia-se dizer que, naquela Europa, coexistiam duas representações diferentes do 'Príncipe deste Mundo': uma popular, imediata e anedótica, sendo a outra aterrorizante e trágica.”131 Exemplo de uma visão menos monstruosa e mais familiar do Diabo pode ser encontrada nas encenações teatrais da era medieval: O Diabo do teatro é ridículo quando ignora sua fraqueza, é cômico quando se vê enredado por causa de sua tolice, ou quando os diabos se atormentam mutuamente, em particular quando Lúcifer pune os fracassos de Satã. Mas constata-se uma tensão entre os diferentes aspectos da figura diabólica, ao mesmo tempo vítima e carrasco, temível e lastimável, aterrorizante e grotesca. Conhecendo as afinidades entre o medo e o riso, é fácil afirmar que os 129

Ibid., p. 240. Ibid., p. 249. 131 CHAIN, I. O Diabo nos porões das caravelas: mentalidades, colonialismo e reflexos na constituição religiosa brasileira nos séculos XVI e XVII, p. 49. 130

106

traços cômicos atribuídos ao Diabo são um modo de exorcizar o temor que ele inspira.132

Esta visão, tipicamente medieval do Adversário, como um personagem familiar, que dialoga com as pessoas, podendo ser, inclusive, enganado, está bem estampada na assimilação que a cultura católica brasileira fez dele. O filme brasileiro “O auto da compadecida”, originalmente uma peça teatral de Ariano Suassuna, nos traz um retrato do Diabo como um juiz muito próximo dos personagens humanos. Quando o personagem João Grilo morre, o Diabo quer levá-lo depressa para o inferno, mas não consegue. O matuto apela para o julgamento divino, onde Jesus e sua mãe, a Compadecida, aparecem lado a lado. Depois de muita conversa, João Grilo, que estava acostumado a resolver seus problemas na Terra através de muita conversa, consegue também enrolar o Diabo ao ganhar uma segunda chance e retornar para o mundo dos vivos. Além de sua faceta familiar/servil, há outro aspecto sobre o Diabo medieval que merece destaque. Trata-se da forma como este personagem está sempre associado à dissidência religiosa. Toda a religiosidade européia anterior ao cristianismo é rejeitada por este como heresia e, portanto, como algo de origem diabólica: Essas vozes no seio da cristandade – altamente insistentes e sempre ressoando com muita força no período medieval – procuram associar com o Diabo tudo aquilo que era 132

BASCHET, J., Op. cit., p. 326.

107

sagrado na celebração das divindades pagãs, na tentativa de destruir as crenças primitivas. Monges e padres ensinavam aos cristãos que o Diabo habitava nos templos pagãos e que tais lugares deviam ser aspergidos com água benta, para depois serem despidos de suas decorações e reconstruídos com novos altares.133

Para Jérôme Baschet seria ainda no período medieval que começaria a triunfar esta perspectiva que associava os dissidentes religiosos como hereges ou bruxos e, portanto, servos do Diabo: A esse respeito, é significativa a história do cânone Episcopi (século IX), que define o ponto de vista que a Igreja conservou por longo tempo em questão de feitiçaria. Longe de propor a perseguição das feiticeiras, afirma que a crença no vôo noturno não tem fundamento e que deve ser denunciada como ilusão: os que crêem nisso desviamse da verdadeira fé, pois, “pensam que existe uma potência divina além do Deus único”. Ora, no século XV, os clérigos reincidirão nessas concepções e admitirão a realidade do vôo noturno.134

Em sintonia com esta concepção está Jean-Claude Schmitt, quando afirma que a idade média é um período de gestação de um universo de conceitos e práticas que triunfariam apenas na era moderna: De um lado a instituição (Igreja, Estado), de outro as figuras do Diabo e da feiticeira: este cumpriu papel considerável na gênese da “caça às feiticeiras” que se desencadeou na Europa entre o século XV e a primeira metade do século XVIII. A Idade Média stricto sensu, aparece, com efeito, nessa evolução apenas como período de gênese.135

Um importante instrumento para a caça aos dissidentes, originário do fim do período medieval cujo uso se difundiria ao longo da 133

STANFORD, P. Op. cit., p. 114. BASCHET, J., Op. cit., p. 320. 135 SCHMITT, J. C. “Feitiçaria”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C. Dicionário temático do Ocidente Medieval, p. 425.

134

108

idade moderna é o “Manual dos inquisidores”, escrito por Nicolau Eymerich em 1376. Este importante documento serviu de base para a atuação da inquisição que atingiria seu ponto mais alto na modernidade. Jean-Claude Schmitt contextualiza da seguinte forma o aparecimento do documento inquisitorial: Face aos perigos que aparecem cada vez mais ameaçar a Cristandade e a Igreja, apura-se a arma de Inquisição: cerca de 1324, Bernardo de Gui apresenta sua Practica officii inquisitionis, aumentada e aperfeiçoada 50 anos mais tarde pelo Directorium Inquisitionis do inquisidor catalão Nicolau Eimerico (Avignon, cerca de 1376). O procedimento, a maneira de conduzir os interrogatórios e, em particular, a “questão” – a tortura – foram objeto de uma crescente riqueza de detalhes. Dedica-se aos hereges especial atenção, mas a desconfiança estende-se, e de forma cada vez mais insistente, sobre os “videntes e adivinhos” e outros “demonólatras e invocadores do Diabo”.136

É importante notar como as minorias e os dissidentes eram tratados. Em conformidade com o citado livro, não era muito difícil ser considerado um herege: Aplicar-se-á, do ponto de vista jurídico, o adjetivo herético em oito situações bem definidas. São heréticos: a) Os excomungados; b) Os simoníacos; c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus; d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras; e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente; f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos; g) Quem tiver opinião diferente da Igreja de Roma sobre um ou vários artigos de fé; h) Quem duvidar da fé cristã.137

Isto era posto em prática no tratamento que se dava aos 136 137

Ibid, p. 430. EYMERICH, N. Manual dos inquisidores, p. 36.

109

suspeitos de heresia: Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma coisa, ora outra, sempre negando os argumentos mais fortes da acusação. Nestes casos, presume-se que esconde a verdade e que, pressionado pelo interrogatório, entre em contradição. Se negar uma vez, depois confessar e se arrepender, não será visto como ‘vacilante’ e sim como herege penitente, sendo condenado.138

Outro documento importante acerca do cristianismo medieval é “O martelo das feiticeiras”, escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger em 1486. O aparecimento deste importante documento é narrado da seguinte forma por Jean-Claude Schmitt: Em 1486, os dois dominicanos publicam seu volumoso Malleus maleficarum (O martelo das feiticeiras), que compila todo o saber demonológico acumulado ao longo dos séculos, descreve as práticas e os malefícios das feiticeiras contemporâneas, e dedica-se a enumerar as medidas radicais para suprimir o mal. A novidade do tratado reside de início em seu caráter de massificação e sistematização, que faz dele a verdadeira suma escolástica sobre a feitiçaria.139

O livro de caráter inquisitorial e que serviu de orientação teológica para a perseguição às “bruxas” narra a seguinte estratégia de atuação do inimigo de Deus no seio da igreja: O diabo dispõe de mil maneiras e de mil recursos para infligir males ao homem e, desde a época de sua primeira Queda, vem tentando destruir a unidade da Igreja e subverter, de todos os meios, a raça humana. Embora não haja uma regra infalível para esclarecermos esse assunto, cumpre fazermos uma distinção provável: ou a bruxa é velha e estéril, ou não o é. Sendo estéril, o demônio com ela copula sem injetar-lhe o sêmen, pois que não teria qualquer utilidade e o diabo evita, ao extremo, a 138

139

Ibid., p. 208. SCHMITT, J. C., Op. cit., p. 433-434.

110

superficialidade de suas operações. Não sendo estéril, o demônio dela se aproxima para dar-lhe o prazer carnal que é conseguido pela bruxa. E caso ela esteja em momento propício para engravidar, o demônio, convenientemente, é capaz de possuir o sêmen extraído de algum homem e, sem demora, o há de injetar para contaminar-lhe a progênie.140

O texto acima mostra o Inimigo de forma bastante concreta. Ele planeja as coisas e as executa com muita astúcia. Ele é capaz até de fazer algo aparentemente impossível, extrair o sêmen de um homem e usá-lo somente quando sabe que uma mulher está propícia a engravidar. Esta concretude do Diabo, sem dúvida, contribuiu para a perseguição ativa dos dissidentes da igreja. Jeffrey Richards, escrevendo sobre as minorias na idade média, aborda as dificuldade enfrentadas por alguns grupos sociais do período. Em sua obra expõe o papel do Diabo no processo de perseguição aos dissidentes: Os seis grupos que são tema deste estudo se encaixam grosso modo nas categorias religiosa (judeus, bruxos, hereges) e sexual (hom*ossexuais, prostitutas e leprosos). Mas um fator comum os une a todos – o sexo. O estereótipo do desviante estreitamente ligado ao Diabo pela luxúria era utilizado para demonizá-lo. O Demônio é o "Outro" absoluto, o inspirador do mal, a antítese do Deus cristão, e foi ele que, pela exploração da suscetibilidade dos escravizados do sexo e pelo envenenamento de suas mentes, foi retratado como o que 141 buscava usá-los para subverter a ordem natural de Deus.

Carlos Roberto F. Nogueira parece estar de acordo com

140 141

KRAMER, H. & SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras, p. 238. RICHARDS, J. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média, p. 32.

111

esta concepção de que também o cristianismo medieval construía a imagem do Diabo a partir da demonização do outro: Desse modo, a Idade Média encarregou-se de promover a redução completa das divindades pagãs à condição demoníaca, preenchendo o Inferno cristão com as divindades do Além-Túmulo greco-romano, único posto que logicamente poderia competir-lhe e do qual, na verdade, não havia razão para expulsá-las.142

Neste segundo momento de nossa análise das práticas acerca do Diabo podemos perceber grandes transformações no nosso personagem. O Inimigo de Deus que na antiguidade, ao longo dos séculos, constitui-se em um invasor de corpos que deveria ser expelido por pessoas especiais/santas, vai sendo amansado na Idade Média, até se transformar em uma figura familiar com quem se pode negociar. Na era medieval o Adversário não perdeu seu aspecto sombrio, mas chegou muito mais perto da realidade humana. Nessa época ele vai sendo associado a uma pessoa servil, astuta, mas passiva de ser ludibriada. Embora tenha sido mais humanizado, o Tentador medieval não deixou de ser uma figura importante da história política do cristianismo. Não é à toa que o Diabo vai ser associado a toda forma de religiosidade não-cristã, instrumentalizando o embate do cristianismo contra seus adversários através da (antiga) estratégia de demonização do outro.

142

NOGUEIRA, C. R. F. Op. cit., p. 33.

112

2.3- O mal na era moderna: O Diabo entre o pacto e a possessão Acima vimos que a concepção medieval do Inimigo poderia ser caracterizada, substancialmente, como um servo dos seres humanos. Também observamos, já no tópico anterior que o nosso personagem sofreu transformações significativas na modernidade. Na idade moderna ele iria assumir um papel muito mais ativo, oscilando entre aquele que tomava a iniciativa de procurar os seres humanos para pactuar e o que passa a invadir seus corpos. Gostaria de, a seguir, analisar com mais detalhes como o Adversário foi se transformando de um tentador servil em um invasor de corpos ao longo da modernidade. A crise política, religiosa e social dos séculos XV e XVI, deu novo ímpeto à velha intolerância cristã frente a qualquer coisa que lhe fosse “diferente”. Mas a ironia dessa última cruzada da Igreja contra a heresia se encontra no fato de que, dando uma atenção redobrada à relação entre Diabo e bruxas, os clérigos correram o risco de difundir as crenças e práticas que eles tentavam reprimir.143

Como fizemos observar acima, Carlos Roberto F. Nogueira afirmou ter sido somente nos tempos modernos que o Inimigo de Deus pôde triunfar na imaginação das pessoas no mundo ocidental, sobretudo quando a imprensa permite difundir, com mais rapidez e detalhes tratados, opiniões, imagens etc.144 Também já disse que em acordo com esta afirmação está Laura de Mello e Souza quando diz que "foi, portanto, no 143 144

STANFORD, P. Op. cit., p. 204. Ibid., p. 76.

113

início da Época Moderna, e não na Idade Média, que o inferno e seus habitantes tomaram conta da imaginação dos homens do Ocidente."145 A divisão no seio da igreja ocidental no início dos tempos modernos iria reforçar a necessidade e a concretude do Diabo. Tanto a reforma protestante como a reação católica romana a esta iriam precisar do Adversário para justificar o seu esforço de levar salvação aos "gentios".146 É justamente, portanto, no início dos tempos modernos que o Diabo vai passar por profundas e interessantes modificações: Até o século XV, o demônio servia ao ser humano, podendo variar o seu grau de sujeição. Neste sentido, a prepotência de Lázaro Aranha, que trata os diabos de cães, é ainda medieval. A partir do século XV, a situação muda radicalmente: "o Demônio passa de servidor a amo". Assim sendo, e apesar de, numa primeira leitura, poder parecer o contrário, as atitudes de sujeição ao Diabo são modernas.147

No livro escrito pelo historiador da cultura Robert Muchembled também encontro apoio para esta visão de que o Diabo passaria por transformações na idade moderna: “Até a Reforma, o demônio que se dirigia aos seres humanos era, na maior parte das vezes, enganado por eles”.148 Este quadro começaria a mudar a partir da idade moderna: “Ora as coisas tomaram um rumo muito diferente no decorrer do século XVI. Por um lado, tanto luteranos quanto católicos afirmavam que o

145

SOUZA, L. M. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial, p. 139. 146 Ibid., p. 78. 147 Ibid., p. 143. 148 MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo: séculos XII-XX, p. 151.

114

demônio não tinha necessidade de pacto para tomar posse de uma alma”.149 Em outro trecho o mesmo autor deixa ainda mais evidente o contraste entre as concepções e as práticas acerca do Diabo na idade média e a idade moderna: Pode-se observar, como Keith L. Roos, que o período que vai da Reforma ao Século das Luzes foi o único período da história do Ocidente a apresentar um pacto com o Diabo do qual este saía vencedor. A Idade Média preferia os demônios ludibriados, e a idéia do fracasso final de Satã retomou todos os seus direitos no folclore do século XVIII...150

As transformações no modo como se compreende a ação diabólica, não mais como o servo humano que pode ser passado para trás, mas como um invasor de corpos, seriam acompanhadas de uma onda de difusão do exorcismo. Embora não se trate de uma nova técnica de poder sobre os corpos das pessoas, o exorcismo vai assumir contornos específicos na modernidade: Em suas análises sobre a possessão na França e na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, Daniel Pickering Walker notou que os exorcismos assumiram funções diferentes ao longo de toda a história do cristianismo. No primeiro século de existência, a Igreja usou os exorcismos como arma contra o paganismo... Na Idade Média, além de seu papel mais trivial eles tinham como principal finalidade a demonstração da santidade do exorcista ... A Reforma aprofundou ainda mais o papel dos exorcismos. Com ela, abriu-se a possibilidade de se utilizá-los como propaganda de um grupo cristão contra outro, ou seja, foram usados para converter os protestantes e para 151 confirmar a fé e a prática devocional da Igreja católica. 149

Ibid., p. 152. Ibid., p. 153. 151 RIBEIRO, M. M. Exorcistas e demônios: demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro, p. 67. 150

115

Gostaria de analisar com um pouco mais de detalhes o rito de exorcismo de forma propriamente dita. O belo trabalho historiográfico de Márcia Moisés Ribeiro nos fornece dados preciosos sobre o modo como este era ritualizado no mundo luso-brasileiro na idade moderna. Desejo chamar a atenção para a similaridade do rito moderno no mundo português para com algumas práticas vigentes na I.U.R.D. no Brasil Contemporâneo. Algumas das características do “teatro do exorcismo” europeu eram: 1) os endemoninhados ficavam de joelhos em atitude de submissão aos seus exorcistas; 2) os exorcistas faziam perguntas aos endemoninhados, como “quantos demônios estavam ali, de que tipo eram e por que entraram”;152 3) os possuídos eram alvo de açoites, bofetadas e cuspidelas;153 4) a igreja era o lugar mais apropriado para a prática do rito, onde eram realizados diante da platéia154 e, finalmente 5) os exorcismos assumiam um teor pedagógico: “Ao conseguir expulsar o demônio dos corpos, ou seja, ao obter sucesso com o ritual, a Igreja católica mostrava aos olhos do público o quanto os protestantes estavam errados ao duvidar da eficácia dos seus ritos.”155 Para os europeus modernos de uma forma quase geral, a existência do Diabo não podia ser colocada em questão. Para a cientista da

152 153 154 155

Ibid., p. 89. Ibid., p. 90. Ibid., p. 91. Ibid., p. 95.

116

religião Iza Chaim a vitalidade do Diabo era um lugar-comum da mentalidade moderna: De um modo geral, a cultura dirigente entre os séculos XVI e XVII, na medida em que insistiu de forma mórbida e contundente nos sabás, na caça às bruxas, na “demonomania” e na danação das almas que perambulavam sem rumo, incrementou o lado assustador, inquietante, maléfico e aterrorizante da noite bem como de sua personagem principal e grande aliada: a lua. Lugarcomum da mentalidade da época, a certeza de que o grande inimigo – Satã – dominava mundos sombrios e trevosos, não era colocada em cheque por nenhum escalão da sociedade.156

A mesma autora chama a atenção para a especificidade da cosmovisão ibérica no período moderno. Os portugueses e espanhóis teriam entrado na modernidade de forma bastante distinta do modo como o fizeram os demais países do velho continente: Como indicam pesquisas recentes na área de História Cultural e História da Ciência, os ibéricos do século XVI e XVII fizeram sua entrada na Modernidade de uma forma um tanto diferente daquela que se deu para o restante da Europa, optando, assim, pela manutenção de padrões culturais e políticos essencialmente medievais bem como por uma retomada, por revival aristotélico-tomista.157

Esta afirmação de Iza Chaim me parece em plena harmonia com análise de Francisco Bethencourt, quando fala a respeito da invocação de demônios por parte das feiticeiras. A leitura do historiador português do fenômeno se dá a partir de um contexto mais amplo, o de uma multiplicidade de conceitos e práticas mágicas. As feiticeiras portuguesas

156 157

Op. cit., p. 20. Ibid., p. 69.

117

não seriam adoradoras ou veneradoras do Diabo, mas pessoas que ostentatavam o poder de manipular as suas ações: A invocação dos demônios e dos santos, na maior parte dos casos, não se faz no sentido de adoração e veneração, mas no sentido de coação e do controle de sua vontade. Daí a feiticeira gabar-se, como forma ostentatória de poder, que os demônios “vinham muitos temerosos quando lhe vinham falar.158

Francisco Bethencourt, cuja obra coloca foco sobre o imaginário da magia em Portugal do século XVI, mostra como as expressões religiosas heterodoxas podiam receber uma interpretação demonizante por parte da elite religiosa: O conhecimento do oculto, na perspectiva da elite religiosa, só pode provir de três fontes: do estudo e do saber humano (limitado à cultura escrita); da revelação divina (reservada aos santos, beatos, homens piedosos tocados pela Graça); da intervenção diabólica (à exceção da profecia e da visão de origem divina, toda a adivinhação é uma arte demoníaca).159

Outro aspecto bastante interessante na obra do autor supra citado e que confere à sua análise algo de original é o modo como encara suas fontes sobre as artes mágicas. Conforme o autor, há alguns historiadores e historiadoras que tendem a interpretar os ritos relacionados ao sabá como sendo mera criação dos inquisidores. As experiências atuais com ungüentos preparados com solanaceae, datura, mandrágora, hyoscyamus e belladona (plantas que existem na Europa e contêm quantidades variáveis de atropina absorvíveis através do contato com a 158

BETHENCOURT, F. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, p. 216. 159 Ibid., p. 173.

118

pele) provocam alucinações semelhantes às descritas pelas bruxas (viagens pelo ar, assembléias eróticas, metamorfoses animais)... Essas experiências, se permitem ultrapassar definitivamente as concepções ingênuas de certos historiadores, segundo as quais os relatos fantásticos das bruxas resultariam de uma ficção criada pela Igreja e imposta pela tortura, não resolvem o problema fundamental dos mitos e dos complexos culturais que moldam esses mesmos relatos, problema que tem norteado nossa exposição.160

Tendo a ter uma grande simpatia pela tese acima exposta. Concordo que, conceber o rito satânico denominado de sabá como uma simples criação dos inquisidores, construída via tortura, pode se tornar um ponto final para uma questão que tem se mostrado muito mais complexa. O maior risco da visão combatida pelo autor de “O imaginário da magia” é o de deixarmos de lado um rico universo cultural, composto de mitos, ritos e adaptações atuais de expressões religiosas mais antigas. Na América Portuguesa o Diabo, que antes se aproximava das pessoas para estabelecer um pacto com elas e sujeitava-se aos seus pedidos, passou a ser aquele que se tornava senhor das pessoas assumindo o controle das suas ações. Um caso relatado por Laura de Mello e Souza pode ilustrar a forma como as pessoas se sujeitavam ao Diabo: Cinco anos antes da Primeira Visitação, o homem do mar Manuel Faleiro desesperara ante a miséria; "estando ele em sua casa com cólera e paixão de não ter que dar de comer a seus filhos, que lhe pediam de comer, disse que se dava aos diabos". Esperava talvez que, sob a nova ordem, a sorte melhorasse.161 160

Ibid., p. 198. SOUZA, L. M. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial, p. 142. 161

119

Os europeus que colonizam as Américas tinham em seu continente contato com as "bruxas". Esta experiência anterior de demonização do "outro" em seu continente vai ser decisiva no sentido de treinar o olhar dos europeus em relação aos habitantes das Américas. "Foi sobretudo na caça às bruxas que se treinou o olhar demonológico sobre a América".162 O Diabo cristão havia atravessado o Atlântico em companhia dos agentes colonizadores: Encontrando na colônia populações autóctones que também viam o diabo como força atuante e poderosa – as multidões de espíritos que perambulavam pela mata sombria e lugares sinistros –, os jesuítas acabaram por demonizar ainda mais as concepções indígenas, tornandose, em última instância, e por mais paradoxal que pareça, agentes demonizadores do cotidiano colonial. Os índios apavoravam-se com a idéia do Diabo que chegavam a morrer de puro medo do inferno.163

Este ponto de vista é atestado por Iza Chain, quando afirma que a “elite católica dos países ibéricos, em sua maioria, aderiu à tese expressa pelo padre Acosta, segundo a qual, desde a vitória de Cristo e a expansão da verdadeira e pura religião pelo Velho Mundo, Satã haveria se refugiado em terras distantes, de além-mar, territórios dos quais fez um de seus tesouros”.164 O Diabo passara a fazer parte do cotidiano colonial e Ele atuava tornando a natureza selvagem e incitando os moradores do 162

Id., Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI e XVII, p. 26. Id., O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial, p. 140. 164 Op. cit., p. 83. 163

120

continente americano à infidelidade ao cristianismo e também à "idolatria". O reconhecimento do "outro" como idólatra e demoníaco conferia ao empreendimento colonial sua devida legitimidade. O "outro" não é apenas o diferente, mas o adepto do adversário de Deus, logo é preciso exterminá-lo: ... a grande vedete da demonologia americana é o diabo: é ele que torna a natureza selvagem e indomável, é ele que confere os atributos da estranheza e indecifrabilidade aos hábitos cotidianos dos ameríndios, é ele sobretudo que faz das práticas religiosas dos autóctones idolatrias terríveis e ameaçadoras, legitimando assim a extirpação pela força.165

O Diabo também está presente na teoria da colonização de Laura de Mello e Souza. O empreendimento colonial, onde se fazem presentes as figuras do colonizador e do catequista, iria promover o intercâmbio cultural entre os dois continentes, a Europa e a América.166 A “circularidade cultural” não se daria apenas entre os dois continentes, mas também entre os universos culturais erudito e popular.167 O imaginário diabólico iria cada vez mais se tornando rico em função do intercâmbio entre os continentes e entre as culturas popular e erudita. A autora acima citada ainda ressalta os aspectos paradisíacos e demoníacos da colonização. A natureza vai ser identificada pelos conquistadores com o paraíso do qual o ser humano havia sido expulso, conforme o relato bíblico do livro de Gênesis. Os primeiros

165

Id., Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI e XVII, p. 29. Ibid., p. 43. 167 Id., O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial, p. 294. 166

121

habitantes das Américas por sua integração na natureza e por se parecerem, em sua nudez, como as personagens paradisíacas, vão ser identificados com uma inocência edênica. Os primeiros relacionamentos entre conquistadores e indígenas serão amistosos, mas à medida que os portugueses vão decidindo colonizar o espaço territorial que já tinha dono, as coisas vão mudando muito. As relações amigáveis se transformam em massacres e constante atritos. A natureza apenas vai preservando seu aspecto paradisíaco e os seres humanos vão sendo demonizados.168 Uma outra dualidade podia ser observada no Brasil Colonial conforme a teoria da colonização da historiadora citada. Se a vida cotidiana na colônia passara a estar impregnada de demônios, o universo econômico passava a ser descrito de forma divinizada. Essa polarização entre o diabólico e o divino pode muito bem ser exemplificada na passagem a seguir: A complexidade de uma formação social que pressupunha simultaneamente escravismo e cristianismo puxava a colônia para as imagens infernalizadas – Satã no papel de confirmador de Deus. O inferno eram as tensões, os envenenamentos de senhores, os atabaques batendo nas senzalas e nas vielas escuras das vilas coloniais, os quilombos que assombravam as matas, os caminhos, os descampados; os catimbós nordestinos que conclamavam espíritos ancestrais, as curas mágicas, as adivinhações. Do outro lado, a identificação com a metrópole atraía a colônia para o pólo paradisíaco: chegava-se ao céu quando se rezava o credo de Portugal, invadindo os mercados 169 europeus com o açúcar, tabaco, ouro, brilhantes.

168 169

Ibid., p. 32-72. Ibid., p. 149-50.

122

O Diabo iria fincar suas raízes de forma bastante profunda na cultura brasileira. Algumas características seriam bastante persistentes. Um traço que compreendo como sendo uma continuidade do Brasil Colonial é a identificação das culturas africana e indígena como demoníacas. Tal imaginário, desembocado em terras brasileiras, foi logo depositado sobre ameríndios aqui encontrados bem como suas manifestações sociais e religiosas. Os nativos, com suas naturais dificuldades em absorver a mensagem de um império terreno absoluto e de sua versão celestial – um reino de Cristo –, logo assumiram o papel de forças de oposição que, na leitura de colonizadores e religiosos lusitanos, tinha por objetivo conspirar e lutar contra os ideais da mensagem cristã. Dentro dos padrões daquele imaginário tornavam-se, portanto, parceiros das hostes infernais sob a batuta do arquiinimigo da Cristandade, o Diabo.170

A pesquisa de Ronaldo Vainfas sobre um movimento religioso de origem indígena pode, ainda, exemplificar o que tenho afirmado. O historiador

brasileiro da cultura redigiu uma importante

pesquisa histórica sobre um movimento religioso de cunho sincrético indígena e católico durante o período colonial brasileiro. Como os indígenas

brasileiros

não

possuíam

registros

escritos

sobre

os

acontecimentos, o referido historiador teve que recorrer às fontes dos europeus sobre o assunto. O movimento de santidade foi captado pelos olhares

europeus

que

são

"em

parte

etnográficos,

em

parte

demonizadores".171 Estes olhares a que o autor se refere são de Manoel da

170 171

CHAIM, I. Op. cit., p. 115. VAINFAS, R. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial, p. 51.

123

Nóbrega, André Thévet, Hans Staden e Jean de Lery. Os "informantes" do referido historiador são, respectivamente, um jesuíta português, um capuchinho francês, um arcabuzeiro alemão e um francês huguenote.172 O referido autor diz que o relato de Nóbrega é cheio de juízos eurocêntricos e etnodemonológicos; o profeta indígena se transformou em feiticeiro, o transe foi identificado como possessão demoníaca e a cerimônia indígena como um todo foi identificada com o sabá.173 Também o relato de Thévet é demonizador, conforme indica o título do capítulo onde o capuchinho francês registra o movimento religioso indígena: "Dos falsos profetas desta terra, os quais se comunicam com espíritos malignos".174 Interessante é que no relato de Hans Staden, que não está revestido de uma missão religiosa, estão quase ausentes as referências demonológicas aos costumes indígenas, embora os considere embusteiros.175 Finalmente, Jean de Lery é o cronista que mais demonizou a expressão religiosa indígena; considerou as mulheres possuídas pelo Diabo e qualificou a cerimônia de Sabá.176 Câmara Cascudo177 considera que as culturas africana e 172

Ibid., p. 51-52. Ibid., p. 53. 174 Ibid., p. 55. 175 Ibid., p. 56. 176 Ibid., p. 58. 177 No site http://memoriaviva.digi.com.br/cascudo/index2.htm encontramos os seguinte dados sobre a vida e a obra de Câmara Cascudo: “Filho único de Francisco Justino de Oliveira Cascudo e Anna Maria da Câmara Cascudo, ele comerciante e coronel da Guarda Nacional, ela dos afazeres domésticos, nasceu Luís da Câmara Cascudo em Natal, a 30 de dezembro de 1898, onde viveu 88 anos até seu coração parar na tarde do dia de 30 de julho de 1986. (...) Desejou ser um nobre médico de província e chegou a cursar os primeiros anos na Bahia e no Rio de Janeiro. Mas terminou cumprindo o destino de ser Bacharel em Direito e foi estudar na velha faculdade de Direito do Recife, onde ainda ouviu o eco dos discursos de Joaquim Nabuco e Tobias Monteiro e dos versos de Castro Alves. Sonhou ser jornalista e foi. Seu pai nessa época ainda era um homem 173

124

indígena, antes do contato com os portugueses, não conheciam uma entidade espiritual que pudesse personificar o mal de forma absoluta como o faz o Diabo do cristianismo. O pesquisador brasileiro pensa que índios e escravos brasileiros apenas contribuíram para difundir/ampliar os poderes do Diabo branco português, mas não o criaram nem tinham entidades que pudessem equivaler ao anjo rebelde do Cristianismo.178 A figura do Diabo foi trazida pelos colonizadores e projetada, identificada, com personagens das culturas indígena e africana em solo brasileiro. Duas personagens que parecem ter se prestado a este processo de demonização por parte dos brancos portugueses são a Caipora, um espírito das matas de matriz indígena, e o Exu, um espírito ambíguo da cultura africana. Dentro desta concepção de demonização da cultura indígena parece estar

a Caipora. Câmara Cascudo diz que este nome

significa, literalmente, morador do mato. Os indígenas a identificavam com

rico e instalou o jornal A Imprensa para seu filho. Nas suas páginas, o estudante que lia até a madrugada passou a exercitar o gosto de escrever, mantendo uma coluna que chamou de Bric-aBrac e onde exercitava o olho observando a paisagem humana e cultural da cidade e sua gente. Seu primeiro livro, Alma Patrícia, sai em 1921. É a reunião de pequenos estudos sobre poetas e prosadores na Natal de seu tempo. Depois vem Joio, encerrando a fase de crítica. Num breve exercício de ficção sob influência de Viriato Correia, escreve Histórias que o tempo leva, recriando narrativas literárias sobre as ruínas de velhos fatos históricos. O professor de História resiste nas biografias de figuras como Lopez do Paraguai, o Conde d'Eu e o Marquês de Olinda, mas não demora a entrar em sintonia com os modernistas do Recife e de São Paulo, o que lhe abre os olhos e os ouvidos para o homem comum nas suas crenças e costumes, seus cantos e suas danças, suas músicas e suas técnicas, sua vida e sua morte. Em 1939 lança Vaqueiros e Cantadores e seu nome se coloca, a partir de então, como uma legenda no estudo do saber do povo. Funda a Sociedade Brasileira de Folclore. Propõe uma teoria para a Cultura popular. Ergue com erudição um conceito brasileiro para a Literatura Oral. Viaja para beber nas fontes africanas o vinho arcaico de nossas raízes. Autor de clássicos da cultura brasileira como o Dicionário do Folclore, Civilização e cultura, História da alimentação no Brasil, ensaísta da Jangada e da Rede de dormir; antropólogo das Superstições; etnólogo dos Costumes; sociólogo do Açúcar; tradutor de Montaigne e Koster; historiador dos gestos - a obra de Cascudo é continente e ilha.” 178 CASCUDO, C. Dicionário do folclore brasileiro, p. 353.

125

um espírito, talvez de um ancestral, que morava nas matas e que em algumas ocasiões aparecia para causar alguma confusão. Pelo que tudo indica, mesmo que na cultura indígena fosse uma entidade espiritual, não parece um ser qualificado de forma maligna, como seria o Diabo na cultura ocidental cristã. O autor citado diz que um padre do século XVIII explicava o significado da palavra Caipora como estando associada à “rebeldia”. Dizia o padre que o Diabo se disfarçava em figura humana para se comunicar com os índios aldeados e também com os bravos; os índios bravos eram habitantes do mato, também chamados de caiporas. A pesquisa sobre a “origem” do Diabo no cristianismo demonstra que um de seus principais atributos é a “rebeldia”.179 Quanto ao Exu, Câmara Cascudo diz que Exu é o “representante das potências contrárias ao homem”. O sentimento dos seguidores das religiões afro-brasileiras é ambíguo em relação a esta personagem, pois ao mesmo tempo que o temem também o respeitam. Nenhum trabalho pode ser realizado no terreiro sem que antes se faça o despacho para o Exu a fim de que não atrapalhe o desenrolar dos demais rituais. Exu é conhecido como “homem das encruzilhadas”. Onde há um cruzamento de ruas, lá está Exu, sendo preciso ofertar-lhe pipocas e farinha com azeite-de-dendê. Os animais que são sacrificados para Exu são o bode, o galo e o cão. Sua cor é o vermelho e é reconhecido como uma entidade 179

Ibid., p. 223.

126

fálica.180 Mesmo que o meu foco neste item ainda não seja a I.U.R.D., penso que os elementos acima descritos permitem já produzir algumas aproximações sobre as práticas presentes nesta igreja. As características do cristianismo colonial brasileiro acima descritas permitem compreender porque Exu, entidade da expressão religiosa afro-brasileira, é identificado pela I.U.R.D. com o Diabo e seus demônios. A ambigüidade, a interferência nos ritos, o aspecto fálico, o bode como animal a ser ofertado e o habitar nas encruzilhadas, são temas que permitem associá-lo ao Diabo e seus demônios, bem como são temas recorrentes nas orações que precedem aos exorcismos. As minhas observações de campo me levaram a perceber que Exu é a figura mais presente nas invocações/nomeações dos demônios na I.U.R.D. Este fato me leva a lançar a hipótese de que esta igreja, quanto à sua visão demonizante da cultura religiosa do “outro”, pertence a uma tradição que remete ao cristianismo antigo, passa pela “caça às bruxas” no período medieval e desemboca em uma concepção que finca suas raízes no Brasil Colonial, ocasião em que as culturas indígena e africana foram identificadas pelos conquistadores, religiosos e seculares, como expressão demoníaca e inferior à sua. Esta hipótese será desenvolvida no próximo item deste capítulo, logo depois que fizer algumas considerações sobre a história do 180

Ibid., p. 379-380.

127

Diabo no âmbito da cultura cristã ocidental. No final deste capítulo discutirei de que modo certos fragmentos de práticas a respeito do Adversário, até aqui analisadas, estariam sendo retomadas na construção das práticas vigentes na I.U.R.D.

2.4- O mal na era contemporânea: A proliferação de práticas discursivas sobre o Diabo Foi na idade moderna que o Diabo triunfou na cultura ocidental. Paradoxalmente, também foi a partir da modernidade que a legitimidade da crença no Diabo e o rito de exorcismo começaram a ser questionados. Quando ingressamos no mundo contemporâneo, em conformidade com a periodização tradicional da historiografia, há uma tentativa de assassinar o Diabo. Neste item gostaria de analisar este processo de “desencantamento” ou secularização que finca suas raízes na filosofia iluminista moderna, mas cujos efeitos são mais evidenciados somente a partir do século XIX. Vou começar analisando o que compreendo por secularização e a relação entre a emergência deste fenômeno com o protestantismo. O Protestantismo, simbolicamente, nasceu no início da Idade Moderna a partir da fixação das 95 teses do então monge Martinho Lutero na Catedral de Wittenberg localizada na Alemanha. Tornou-se uma

128

convenção chamar as ações individuais ou coletivas de oposição ao catolicismo romano antes deste período de pré-reforma. Keith Randell diz que “Reforma foi o termo usado para descrever o complexo conjunto de fatos que durou a maior parte do século XVI, pelo qual uma significativa minoria dos membros da Igreja Católica foi perdida para as novas igrejas protestantes que se estabeleceram como rivais da Igreja de Roma”.181 Concordo com o autor quando afirma que a reforma é um processo de deserção da igreja católica, e discordo quando diz que este processo se restringiu ao século XVI. Penso que o processo de ruptura se estendeu, com a criação do metodismo, até o século XVIII. Os movimentos religiosos originados do abandono do catolicismo romano desencadeados pela ação de Lutero, nos séculos XVI e XVII, são denominados de reforma e o Metodismo, filho do século XVIII, é considerado um ramo tardio da reforma. A periodização da reforma demonstra haver uma afinidade entre protestantismo e modernidade. Isto fica evidente se este último termo for compreendido no sentido que foi definido por Zygmunt Bauman: Quero deixar claro desde o início que chamo de modernidade um período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII com uma série de transformações sócio-culturais e intelectuais profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto cultural, como avanço do Iluminismo e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade industrial (capitalista e, 181

RANDELL, K. Lutero e a reforma alemã: 1517-1555, p. 8-9.

129

mais tarde, também a comunista).182

Parece-me um fato que esta interpenetração vai muito além de uma coincidência cronológica. Há entre protestantismo e modernidade uma proximidade de conteúdo. Max

Weber183

percebeu

a

profundidade

deste

relacionamento. Para que o capitalismo existisse, o sistema econômico do mundo moderno, seria necessária a existência de um

“espírito do

capitalismo”184, um universo de conceitos e ações marcados pela ânsia pelo lucro, pela disciplina do trabalho e pelo desejo de poupar. O sociólogo alemão optou por não definir formalmente o espírito do capitalismo, ao invés disto preferiu analisá-lo, descrevê-lo extensivamente, além de afirmar que foi Benjamin Franklin quem expressou claramente este “espírito” em seus discursos. Este “espírito do capitalismo” foi construído através de um processo de determinação mútua com a “ética protestante”. Weber diz que a aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais. Esta inversão do que poderíamos chamar de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência capitalista. Mas, ao mesmo tempo, ela expressa um tipo de sentimento que está inteiramente ligado a certas idéias religiosas.185

182 183 184 185

BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência, p. 299-300. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Ibid., p. 28-51. Ibid., p. 33.

130

Embora Weber tenha percebido que a relação entre os dois fenômenos não devesse ser interpretada como intencional, é fato que o capitalismo se tornou possível graças ao “espírito do capitalismo” e este foi gestado em uma profunda interpenetração com a “ética protestante”. Michael Löwy afirma que o “argumento principal de A ética protestante e o espírito do capitalismo de Max Weber não é tanto (como se diz com freqüência) que a religião é o fator causal determinante do desenvolvimento econômico, mas sim que existe, entre certas formas religiosas e o estilo de vida capitalista, um relacionamento de afinidade eletiva [...].” O sociólogo brasileiro pensa que Weber compreendeu a afinidade eletiva como um “relacionamento de atração mútua e de mútuo reforço, que, em certos casos, leva a uma espécie de simbiose cultural”.186 Também é possível raciocinar de forma inversa e pensar nas dificuldades da ética católica em lidar com as práticas mercantis, conforme assinalou Jacques Le Goff: A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nessa data, a Cristandade, no auge da vigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária ameaçavam os velhos valores cristãos. Um novo sistema econômico está prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita senão de novas técnicas, ao menos do uso massivo de práticas condenadas desde sempre pela igreja.187

Deste modo, o protestantismo nasce como necessidade de 186 187

LÖWY, M. A guerra dos deuses, p. 34-5. LE GOFF, J. A bolsa e a vida, p. 10.

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uma expressão religiosa que pudesse responder melhor à ética mercantil, condenada pelo catolicismo romano como usura, cada vez mais em ação no mundo ocidental moderno. Peter Berger188 notou outra relação entre protestantismo e modernidade. No Ocidente há um processo de secularização189 das imagens religiosas de mundo. Este processo finca suas raízes nos tempos do Antigo Testamento, mas foi acelerado pelo advento do protestantismo na modernidade, que substituiu o conceito antigo e medieval de um mundo criado, ordenado e estabelecido por Deus pela noção de um mundo em aberto e passível de ser transformado pela ação humana. O nascimento de um sujeito racional, liberal, consciente, igual a seus semelhantes e que projeta seus fins e articula os meios para realizá-los dependendo somente de si, é uma construção tipicamente moderna. José Maurício Domingues acredita que originalmente os filósofos da Ilustração e do utilitarismo acreditaram que o sujeito teria, salvo distorções que poderiam ser removidas, clareza em relação a seus interesses e objetivos; racionais por princípio, eles se organizariam mental e praticamente para utilizar-se do mundo a seu redor, inclusive de seu corpo, visando a 190 realização de seus projetos.

Esta noção moderna de um sujeito auto-centrado pode ser percebida com clareza na visão tradicional do que protestantismo 188

BERGER, P. O dossel sagrado, p. 117-138. Ibid., p. 119. “Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”. 190 DOMINGUES, J. M. Sociologia e modernidade: para entender a sociedade contemporânea, p. 29. 189

132

compreende por conversão. Esta é uma experiência direta de um sujeito com Deus. A sua dimensão comunitária, de suma importância para o judaísmo antigo, bem como para o cristianismo antigo e medieval, é substituída pela idéia de que existe um sujeito que está só perante Deus e, a partir deste acontecimento, pode ter sua vida transformada. O Deus que antes era compreendido como criador e mantenedor do cosmos, passa a ser percebido como aquele que testifica seu poder a um sujeito que o experimenta. A experiência de Deus no protestantismo moderno perdeu sua dimensão objetiva para se tornar essencialmente subjetiva. Em um mundo de sujeitos autônomos e centrados, o eixo da divindade passa de “realidade objetiva” (externa ao indivíduo) para “realidade subjetiva” (processo interno de um determinado sujeito). As igrejas protestantes vão se tornando, cada vez mais, o espaço concentrado de sujeitos que tiveram uma vida transformada por Deus, cuja experiência tem uma dimensão subjetiva em primeira instância. O indivíduo é o árbitro de sua experiência. A conversão passou a ser uma questão estritamente ligada à ação de Deus na alma de um sujeito, sem nenhuma verificabilidade externa. Compreendo que as observações de Antônio de Gouvêa Mendonça estão em sintonia com o que estou dizendo: O conceito de conversão individual desenvolveu-se no protestantismo no bojo do processo de industrialização,

133

primeiro na Inglaterra do século XVIII, com o movimento metodista de João Wesley e depois com a formação da civilização norte-americana, no interior do mito do progresso, e por intermédio dos Grandes Despertamentos.191

A manifestação mais bem definida teoricamente desta forma de expressão religiosa, que desloca o eixo da “realidade” do ser divino enquanto exterioridade para a esfera da subjetividade, é a da teologia liberal, muito em voga na passagem do século XIX para o século XX, cujas principais idéias Rosino Gibellini resume da seguinte forma: “a) assunção rigorosa do método histórico-crítico e de seus resultados; b) relativização da tradição dogmática da Igreja, e particularmente da cristologia; c) leitura predominantemente ética do cristianismo. Em sintonia com o otimismo liberal, ela visava harmonizar o mais possível a religião cristã com a consciência cultural da época”.192 Esta tentativa de harmonizar a religião cristã com a cultura da época levaria o protestantismo a assimilar valores e conceitos da filosofia da modernidade, conforme assinala Jürgen Moltmann: O processo da prova cosmológica de Deus apóia-se no pressuposto de um cosmos ordenado. Nessa estrutura, o homem cognoscente considera a si mesmo como um ser animado e dotado de espírito. A ‘casa do ser’ é a sua morada no mundo. Esta concepção do ser foi superada pelo surgimento da subjetividade moderna, européia. Quando o homem, mediante o conhecimento, a conquista e a elaboração, se coloca a si próprio como sujeito do seu mundo, aquela concepção de um mundo visto como um 191

MENDONÇA, A. G. Protestantes, pentecostais e ecumênicos: o campo religioso e seus personagens, p. 123. 192 GIBELLINI, R. A teologia no século XX, p. 19.

134

cosmos fica destruída.193

As concepções da teologia liberal iriam suscitar reações como a do teólogo suíço Karl Barth, construtor de uma neo-ortodoxia cristã. Rosino Gibellini sintetiza da seguinte forma a reação de Barth ao liberalismo teológico: “Nenhum caminho vai do homem a Deus: nem a via da experiência religiosa (Schleiermacher), nem a da história (Troeltsch), e tampouco uma via metafísica; o único caminho praticável vai de Deus ao homem e se chama Jesus Cristo”.194 Seu labor teológico consistiu, fundamentalmente, em tentar recolocar o eixo do ser divino no lugar que considerava correto. Entendo a teologia de Barth como uma crítica ao subjetivismo a que a experiência do sagrado havia se reduzido. Parece-me um fato irônico que protestantes dos dias de hoje se refiram à teologia liberal como uma grande inimiga de sua fé, enquanto ambos têm em comum, pelo menos, a concepção de que a experiência do sagrado é algo atestado pela subjetividade humana e não uma realidade objetiva, exterior a quem o experiência. O deslocamento da compreensão do palco da ação de Deus – do cosmos para a alma de um indivíduo – transformou a religião em um assunto privado na mesma proporção que a natureza foi dessacralizada. Esse processo de dessacralização do mundo iria afetar as sociedades ocidentais contemporâneas, tanto protestantes como católicas, 193 194

MOLTMANN, J. Trindade e Reino de Deus, p. 27. GIBELLINI, R. Op. cit., p. 21.

135

tendo como efeito o declínio das crenças mágicas. Este fato iria influenciar definitivamente a crença no Diabo e seus demônios, que passaria a ser amplamente questionada. A prática do exorcismo começou a perder sua legitimidade no âmbito católico através de um lento movimento que remonta ao concílio tridentino do século XVI. Este concílio ficou bastante conhecido por caracterizar a reação católica ao processo de fragmentação do cristianismo no Ocidente devido às reformas protestantes: Dentre os diversos temas tratados pelo sagrado Concílio tridentino estava a necessidade de se combater as superstições, pois estava cada dia mais claro ser este o mais eficaz meio de preservação dos ritos católicos frente aos ataques protestantes.195

No século XVII outras providências da cúpula romana iriam sedimentar a visão de deslegitimação de práticas mágicas entre os seus fiéis. Desta vez o rito de exorcismo é atacado diretamente. O rito que fora uma prática permeada pela liberdade, recebe uma regulamentação que a tornaria bastante rara no mundo católico contemporâneo, conforme procurei demonstrar anteriormente quando analisei o filme “O exorcista”: Uma das manifestações da luta contra as superstições da Igreja aparece já no início do século XVII com a promulgação do Ritual Romano de Paulo V que impunha certas regras aos ritos de bençãos e exorcismos. Variando de um lugar para o outro em nível e intensidade, aos poucos as decisões romanas iam sendo estendidas a todo mundo católico.196

195 196

RIBEIRO, M. M. Op. cit., p. 99. Ibid., p. 100.

136

A inquisição, que foi um importante mecanismo de construção e difusão da “realidade” do mal na Europa, aos poucos foi deixando de ser instrumento de perseguição de adeptos de Satã para se tornar uma estratégia de poder para controlar a disseminação da magia e da “superstição” no âmbito do catolicismo. Os exorcistas, de defensores da ortodoxia católica iriam se tornar pessoas supersticiosas, portanto, dignas de serem perseguidas e condenadas. Márcia Moisés Ribeiro descreve da seguinte forma este processo de “desencantamento” da visão mágica do catolicismo romano: Por outro lado, o papel da Inquisição também foi fundamental neste processo de “desencantamento do mundo”. Ao tratar dos temas relacionados à magia e ao diabo com o maior desprezo – lembrando o Regimento de 1774 não mais considerava os feiticeiros hereges, mas antes ignorantes, charlatães e doentes mentais – o Santo Ofício acabou desestimulando de forma intensa as novas 197 denúncias de feitiçaria e demais práticas afins.

O trabalho de Peter Stanford também parece endossar esta perspectiva de que mudanças culturais significativas com relação à concepção do Diabo estavam em andamento entre o fim do século XVIII e início do século XIX. Para o autor, o principal responsável pelo declínio da crença no Diabo na Europa se devia à difusão de uma visão cientificista de mundo. O Iluminismo ainda estava no começo, mas já se conseguia encorajar a humanidade a não se sentir estranha em relação ao mundo circundante, e a não ficar procurando constantemente pela proteção de Deus. Dessa 197

Ibid., p. 164.

137

forma, os eventos que antes eram tidos como ditames dos caprichos espirituais, ou como resultados de uma batalha cósmica entre Deus e o Diabo, foram reavaliadados sob a luz do conhecimento científico.198

A visão cientificista de mundo iria interferir de forma tão marcante na cultura religiosa ocidental que, no século passado, para muitas pessoas e clérigos, o Diabo havia se transformado em algo sem grande importância. Ao longo do século XX, as principais igrejas cristãs passaram a considerar as conversas sobre o Diabo como algo fora de moda. De vez em quando apareciam algumas menções desprentenciosas aqui, ou mesmo com tantas referências ligeiras ali, mas essa figura que um dia estivera na boca dos clérigos, com a mesmo constância que aí também estava o nome de Deus, não conseguia sair do limbo.199

Na minha forma de ver, o modo como Peter Stanford analisa o declínio na crença no Diabo é bastante unilateral, se comparada com as explicações dadas por Robert Muchembled. Para o historiador francês, o declínio da crença no Diabo se dá através de um movimento lento e muito mais complexo: O imaginário ocidental não expulsou brutalmente o diabo em meados do século XVII, mesmo que este momento possa marcar uma real cisão intelectual entre racionalistas e os pensadores tradicionais, empenhados em manter para a teologia sua posição dominadora no campo das idéias. Na verdade, Satã foi perdendo lentamente, insensivelmente, sua soberba em uma Europa em profunda 200 mutação.

Para Robert Muchembled há uma conjugação de fatores 198 199 200

STANFORD, P. Op. cit., p. 245. Ibid., p. 283. MUCHEMBLED, R. Op. cit., p. 191.

138

que vão levar ao declínio da crença em Satã. Os fatores que poderiam explicar a falta de popularidade do Inimigo de Deus na Europa Contemporânea inclui transformações nos mecanismos inquisitoriais, construção de uma visão racionalista de mundo, ao lado de transformações profundas na cultura européia: Mas seria falso afirmar que uma das principais razões do declínio de Satã possa ser encontrada na cessação da caça às feiticeiras. A relação dever ser exatamente o inverso: a diminuição ou o desaparecimento das perseguições contra supostos adeptos do diabo está ligada ao enfraquecimento da crença no demônio, às dúvidas sobre a realidade do sabbat e do pacto infernal... Não devido exclusivamente à arrancada racionalista e científica, que pressagiava os debates de idéias do século XVIII, mas igualmente a um questionamento mais geral dos modos de sentir e de pensar até então dominantes... Para aprofundar a análise, temos que acrescentar que a matriz da transformação não é puramente intelectual ou religiosa. Ela provém de uma verdadeira revolução mental, visível em inúmeros aspectos da existência, constituída por um 201 “desencantamento” do universo.

Ainda é preciso considerar que o declínio da crença tradicional no Diabo, como ocorreu na Europa contemporânea, não significou sua extinção.

O velho personagem apenas passou a ocupar

outros espaços sociais. O Diabo vai se tornando um personagem um pouco mais raro no âmbito exclusivamente religioso do mundo ocidental para começar a povoar a literatura romântica do século XIX e o cinema ao longo do século XX. O Diabo não desaparece com a Revolução Francesa, nem mesmo sob os violentos golpes da razão, da ciência e da 201

Ibid., p. 198-199.

139

industrialização. Sua imagem continua a assombrar o imaginário ocidental, mas ela deixa de ter por referência exclusivamente o dogma religioso para ligar-se a diversos movimentos intelectuais, culturais e sociais europeus dos séculos XIX e XX.202

Michel Maffesoli fornece uma interpretação do mal no mundo contemporâneo que me parece estar em perfeita harmonia com a versão secularizada da existência do Diabo na cultura européia. Para o sociólogo francês, a crença no Adversário de Deus é vivida de forma secularizada em ritos sociais que procuram exorcizar o mal em suas diferentes formas na atualidade. É muito diferente quando o mal, a sombra, a morte, em suma, a dor ligada intrinsecamente à vida, são reconhecidas como características essenciais. As criaturas, quaisquer que sejam, são manifestações da vida e por isso mesmo merecem uma atitude “compassional”, fraterna, pois juntas constituem o fluxo vital. É assim que devemos entender a utilidade social dos diversos “mundos intermediários” que vêm a ser as crenças, religiosas ou filosóficas, no “duplo”, espíritos, daimon e outras figuras tutelares ou assustadoras. Elas ajudam a viver o sofrimento no dia a dia, comunalizando-o.203

Tendo me ocupado inicialmente da formulação da crença no Diabo na Europa de forma específica e no mundo ocidental de modo mais genérico, gostaria de afunilar a análise para o nosso país. Não vou me estender muito na análise da crença no Inimigo no Brasil contemporâneo porque este é ponto focal desta tese e, portanto, este trabalho será feito de forma detalhada no próximo capítulo. Por enquanto, apenas gostaria de

202 203

Ibid., p. 239. MAFFESOLI, M. A parte do Diabo: resumo da subversão pós-moderna, p. 136.

140

fazer um breve mapeamento do campo religioso para localizar o modo como a I.U.R.D. está inserida neste universo. Vou começar esta breve análise do campo religioso brasileiro seguindo as pistas deixadas por Leonildo Silveira Campos. O Brasil teve o catolicismo romano como religião majoritária durante a maior parte da sua história. Em meados do século XIX o protestantismo começou a se instalar no país de forma tímida e gradual. No início do século XX este chega a fixar suas raízes institucionais, todavia ainda é inexpressivo do ponto de vista numérico. É no século XX que grandes transformações vão ocorrer no campo religioso brasileiro com a emergência das religiões afrobrasileiras

e

o

nascimento,

expansão

e

posterior

explosão

do

pentecostalismo. Na atualidade o catolicismo romano disputa sua hegemonia no campo religioso brasileiro com as religiões afro-brasileiras e com as várias expressões do pentecostalismo. A chegada constante de novos agentes no interior do campo religioso brasileiro tem tornado a disputa cada vez mais acirrada: A chegada de qualquer novo agente no interior de um campo provoca, necessariamente, o deslocamento das pessoas e instituições ali estabelecidos. Por isso, a estratégia do recém-chegado é, se não conseguir alianças, contestar e desbalizar o já existente. Os novos pregadores tendem a vestir a roupagem dos “profetas”, encarando a retórica da novidade e da transformação, denunciando os demais como meros “sacerdotes” ou “feiticeiros”. As mudanças ocorridas no interior do campo religioso, desde a vinda dos pentecostais, analisadas a seguir, refletem os

141

conflitos e lutas desencadeadas a partir da tensão entre os estabelecidos e os arrivistas.204

Penso que as afirmações acima de Leonildo Silveira Campos se casam muito bem com as considerações de Pierre Bourdieu sobre a conceituação de religião e magia no interior do campo religioso. A expressão religiosa que está buscando o seu estabelecimento no campo religioso tende a relegar ao universo da magia a religião do outro no intuito de afirmar a sua legitimidade religiosa: Uma vez que a religião, e em geral todo sistema simbólico está predisposta a cumprir uma função de associação e de dissociação, ou melhor, de distinção, um sistema de práticas e crenças está fadado a surgir como magia ou como feitiçaria, no sentido de religião inferior, todas as vezes que ocupar uma posição dominada na estrutura de relações de força simbólica, ou seja, no sistema das relações entre o sistema de práticas e de crenças próprias a uma formação social determinada. Desta maneira, costuma-se designar em geral como magia tanto uma religião inferior e antiga, logo primitiva, quanto uma religião inferior e contemporânea, logo profana (aqui equivalente a vulgar) e profanadora. Assim a aparição de uma ideologia religiosa tem por feito relegar os antigos mitos ao estado de magia ou de feitiçaria. Como observa Weber, é a supressão de um culto sob a influência de um poder político ou eclesiástico, em prol de uma outra religião, que, reduzindo os antigos deuses à condição de demônios, deu origem no curso do tempo à oposição entre a religião e a magia.205

Se é possível interpretar as crenças e os ritos no Diabo e seus demônios na I.U.R.D. como construtores de teodicéias, também me parece possível interpretá-los como desconstrução da explicação para o mal alheia. 204

CAMPOS, L. S. Na força do espírito: os pentecostais na América Latina, um desafio às igrejas históricas, p. 96. 205 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 43-44.

142

Usando termos da sociologia de Pierre Bourdieu, a I.U.R.D. desconstrói o status das religiões concorrentes, afirmando o seu aspecto mágico. Através do rito de exorcismo, a Igreja do Bispo Macedo não apenas constrói e mantém a sua teodicéia, mas também concorre com outras explicações em um vasto e competitivo mercado religioso.206 Isso acontece através de processo de demonização da religião do “outro”. Podemos perceber isto através da atribuição de nomes de orixás das religiões afro-brasileiras aos demônios que atormentam a vida das pessoas. A presença e o próprio testemunho dos demônios confere um estatuto de objetividade à teodicéia da I.U.R.D. ao mesmo tempo que procura “desmascarar” a teodicéia do religião concorrente. Não é pela fala do dirigente do culto que as pessoas podem verificar o aspecto “farsante” das religiosidades concorrentes, mas pela própria voz dos demônios, que se auto-nomeiam identificando-se com os orixás. Nas outras religiões, especialmente na umbanda e no catolicismo, não há explicação para o mal eficaz, logo, não há funcionalidade do discurso. É só na I.U.R.D. que se tem a “verdadeira” resposta para os problemas humanos. Aqueles que têm buscado solução em outras religiões e não a têm encontrado, são desafiados a aderir à “verdadeira” resposta, à “verdadeira” teodicéia, e esta só pode ser encontrada na I.U.R.D. Penso que a I.U.R.D. tem feito isto com muita eficácia, haja vista o seu crescimento no 206

A este respeito ver BERGER, P. L. Op. cit., p.149.

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Brasil e no exterior. Um exemplo muito claro do que afirmei acima é que orixás do candomblé e da umbanda serão identificados pela I.U.R.D. como demônios.207 Paulo Bonfatti parece estar de acordo com esta visão quando afirma que a grande maioria de membros da Igreja do Bispo Macedo crê na existência de religiões demoníacas, além do que "essa maioria identifica como religiões demoníacas as afro-brasileiras."208 O Diabo pode ser odiado, temido, ou até mesmo xingado, como muitas vezes observei em cultos na I.U.R.D., mas ele é absolutamente indispensável ao cristianismo. É difícil pensar no cristianismo sem a figura do Adversário de Deus. Por que este personagem é importante, ou mesmo necessário ao cristianismo? John A. Sanford levanta a seguinte questão acerca da necessidade e da importância do Inimigo: "Pode Deus trazer seus filhos para junto de si se não há nenhum adversário que tenta atraí-los, desviando-os de Deus?"209 Penso que a correlação entre Deus e seu par oposto, bem como a necessidade do Diabo e seus demônios para o cristianismo estão bastante claras no exemplo que colhi em minhas observações de campo: Algumas pessoas endemoninhadas sobem ao palco para uma entrevista. Uma senhora endemoninhada é a primeira. “Qual o teu nome?”, “Exu-caveira, quero matar toda a raça dela”. “Você recebeu o que?”, “Galo 207

Voltarei a tratar desta questão quando der um mergulho nas publicações da referida I.U.R.D. um pouco mais adiante. 208 BONFATTI, P. Op. cit., p. 86. 209 SANFORD, J. A. Op. cit., p. 55.

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preto pra matar toda a família dela”. O dirigente pergunta pelos familiares da senhora endemoninhada e sobe ao palco uma jovem, que diz ser sua filha, e uma criança muito pequena. O dirigente pergunta para a filha da senhora endemoninhada o que a mãe dela tinha, não espera resposta. Pergunta para o demônio “Que você fez com a filha dela?” e o demônio responde “Prostituição, beber, cigarro, tudo que ela gosta ...”. O dirigente pede que os seus auxiliares preparem uma bacia com água e óleo santo trazido de Israel. Recomeça a entrevista com o demônio, “Que doença você coloca na vida dela?” e o demônio responde “Nenhuma, só desgraça. Matei o marido dela, joguei o carro em cima dele!”. “Se você puder, você faz o que com a filha dela?”, “Eu mato como matei o marido dela”. Há uma interrupção no exorcismo para uma leitura bíblica. Leitura bíblica - Jo 10: 9,10 (Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo. Entrará e sairá e encontrará pastagem. O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância). Orientação do dirigente sobre o texto bíblico. “Quando você entra pela porta, assume compromisso com Jesus, isso não vai acontecer com você”, referindo-se à mulher que estava à frente endemoninhada e fala para a filha da senhora endemoninhada “Se você não aceitar Jesus, o demônio vai te matar também”. O dirigente relê o texto de Jo 10: 10, trocando a palavra ladrão por Diabo: “O 210 Diabo veio somente para roubar, matar e destruir”.

Nesta perspectiva, o caráter de Deus só pode ser definido com clareza em oposição ao Diabo. É difícil definir o reino da luz sem fazer referência ao reino das trevas. É difícil definir o caráter de Cristo sem pensar no seu oponente, o Anticristo. "O Anticristo era a contrapartida maligna de Cristo. Este era todo bondade e luz – O Salvador; o outro, todo maldade e escuridão – o Destruidor. Um nascido de uma virgem; o outro de uma prostituta."211 210 211

DIÁRIO DE CAMPO, Fortaleza, 04 de agosto de 2000, Sexta feira, 19h. NOGUEIRA, C. R. F. Op. cit., p. 66.

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Como já destaquei acima, Jeffrey B. Russell defende a idéia de que o Diabo é importante porque tem a função de ser um princípio contrário a Cristo. "A mensagem central do Novo Testamento é a salvação: Cristo nos salva. E nos salva do poder do Diabo. Se o poder do Diabo é rejeitado, a missão salvadora de Cristo perde o sentido."212 Em princípio pode parecer estranho, mas é a existência do poder das trevas que faz com que seja necessário um outro poder que seja redentor. Aqui é preciso notar as diferenças entre a concepção de salvação nos evangelhos e nas cartas paulinas213. Nas cartas paulinas a salvação é um conceito abstrato, mas nos evangelhos a salvação está profundamente relacionada à pessoa de Jesus Cristo. Jesus salva curando, expelindo demônios, enfim, dissipando o poder das trevas, libertando do poder do Diabo! Luther Link pensa que Deus e o Adversário estão tão relacionados que ele apresenta a hipótese de que o segundo trabalha para o primeiro, concepção que não soaria nem um pouco absurda para um observador dos cultos da I.U.R.D., conforme o exemplo acima citado. O autor estranha que as artes plásticas não tenham identificado os hereges e os judeus com o Pai da mentira, apesar de a literatura o fazer. Os hereges e os 212

RUSSELL, J. B. Op. cit., p. 233. A diferença que aponto entre cartas e evangelhos está fundamentada no gênero literário destes. As cartas são textos do cânon do Novo testamento cristão escritos, via de regra, por apóstolos para comunidades dentro das fronteiras do império romano com o intuito de resolver questões circunstanciais de caráter doutrinário, ético e organizacional. As cartas paulinas recebem este qualificativo por terem sido escritas pelo apóstolo Paulo ou discípulos seus. Os evangelhos são textos que narram, de um ponto de vista teológico, os principais acontecimentos e ensinos da vida de Jesus. A tradição atribui a Mateus, Marcos, Lucas e João a autoria dos quatro evangelhos canônicos, respectivamente. 213

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judeus são agentes de Satã, mas não foram identificados iconograficamente com ele. O autor se pergunta por que esta dificuldade das artes plásticas em dar uma face ao Inimigo de Deus? A sua resposta é a de que "o Diabo trabalha para Deus. Ele castiga os pecadores: faz o trabalho de Deus, portanto não pode ser um judeu ou um herege".214 A religião cristã torna-se muito mais necessária quando há um poder maligno o tempo todo procurando abocanhar as pessoas. Além disso, Deus pode ficar exclusivamente com o "trabalho limpo", pois do "trabalho sujo" se responsabiliza o seu Adversário. Deus é bom, logo não pode castigar as pessoas, mas se não houvesse um castigo para aqueles que rejeitam a religião cristã, que necessidade haveria de as pessoas aderirem a ela? Não consigo pensar a sobrevivência da I.U.R.D. sem essa idéia da atuação maléfica e constante do Diabo. Luther Link ainda apresenta um outro motivo para que o Diabo seja uma "máscara sem rosto", ou seja, ele não possui uma representação iconográfica fixa: "... sendo ele uma criação cristã cujo papel a Igreja definiu, só pode representar o mal tal como a igreja o define."215 O Pai da mentira está a serviço de Deus e também da igreja enquanto instituição. Quando alguém se define como contrário a qualquer conceito da uma dada igreja, este acaba por ser considerado como um agente de Satã. Penso que é exatamente isto que faz a I.U.R.D. ao dar uma face ao Diabo e seus demônios totalmente identificada com a 214 215

LINK, L. Op. cit., p. 195. Ibid., p. 200.

147

umbanda. Uma outra possibilidade de abordar a complementaridade entre Deus e o Diabo foi traçada pela psicologia analítica jungiana. O historiador Carlos Roberto F. Nogueira analisa a questão da seguinte forma: C. G. Jung dizia que a figura de Cristo era tão acentuadamente perfeita que necessitava de um complemento psíquico para restaurar o equilíbrio. Na presença de uma evidência do Mal no mundo, os cristãos eram levados a aumentar o poder de Satã e de suas forças e, ao mesmo tempo, a complementar a divindade de Jesus com a sua antítese maligna.216

Parece que a questão da complementaridade entre Deus e o Diabo na psicologia analítica evoca outras questões mais controvertidas. Entendo que John Sanford estaria de acordo com as afirmações acima de Carlos Roberto F. Nogueira acerca da psicologia analítica: "Cristo é somente bondade, amor, justiça e perdão; nele não há nenhum vestígio de obscuridade ou malícia; como resultado dessa unilateralidade, o lado obscuro aparece na imagem do Anticristo, uma figura que compensa a unilateralidade da imagem de Cristo".217 O que Carlos Roberto F. Nogueira não mencionou é que isto era um problema para Carl Gustav Jung. O cristianismo primitivo, por intermédio de seus principais pensadores, elaborou a doutrina da "privatio boni", que consiste, grosso modo na afirmação de que o mal não possui uma substância como o possui o bem; o mal só pode ser definido em relação ao bem, pois o mal nada mais é do que 216 217

NOGUEIRA, C. R. F. Op. cit., p. 68. SANFORD, J. A. Op. cit., p. 171.

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diminuição, privação do bem.218 John A. Sanford resumiu da seguinte forma as objeções de Carl Gustav Jung a esta clássica doutrina cristã: 1) A imagem unilateralmente luminosa de Cristo contradiz o fato de que o si-mesmo é uma combinação de opostos. 2) A divisão e isolamento entre o mal e a divindade deu a ele demasiada autonomia, com resultados desastrosos para a humanidade, especialmente quando a doutrina da privatio boni tranqüiliza os homens numa falsa sensação de segurança ao negar a realidade do mal, ainda que o sentimento humano esteja contra tal negação. 3) A objeção lógica de que se dizemos que o bem é real também devemos dizer que o mal é real, já que o bem e o mal são um par de opostos logicamente equivalentes.219

Com a rejeição da substancialidade do mal, o cristianismo também renegou qualquer aspecto sombrio de Deus. Como a psicologia analítica vê nas representações das divindades projeções da totalidade da personalidade das pessoas, uma representação divina marcada tão somente por aspectos benignos implicaria também em uma negação do aspecto sombrio da personalidade. Acontece que o contato com o aspecto sombrio da personalidade é fundamental para o crescimento psíquico saudável.220 Deste modo, "a imagem psicológica da Trindade, enquanto representação de Deus, estaria psicologicamente incompleta, faltando-lhe o elemento diabólico para completar para sua quaternidade, característica de uma totalidade."221 Esta forma de analisar a relação entre o bem e o mal permite a Paulo Bonfatti perceber o elemento diferencial da I.U.R.D. 218

Ibid., p. 169. Ibid., p. 174-175. 220 BONFATTI. P. Expressão popular do sagrado: uma análise psico-antropológica da Igreja Universal do Reino de Deus, p. 156. 221 Ibid., p. 155. 219

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O que se observa é que existe um certo equilíbrio de forças psíquicas opostas e em constante tensão, pois, ao mesmo tempo que Cristo está sempre na IURD, o Demônio também está na mesma proporção. Sem dúvida, isso representa uma diferença psicológica muito grande em relação a outras expressões religiosas, o que diferencia a IURD das outras igrejas.222

Embora seja bastante difícil transitar no universo de conceitos da psicologia analítica, sobretudo para quem não é da área de psicologia, a importância desta forma de abordagem logo se mostra por não explicar o sucesso da I.U.R.D. de forma negativa. Esta igreja triunfa por sua capacidade de atender a demandas simbólicas de seus seguidores, dentre elas a necessidade de entrar em contato com o lado sombrio de sua personalidade sem que o ego das pessoas seja exposto aos riscos que correria se não o fizesse através do exorcismo. Embora tenha as qualidades que acabei de indicar, a explicação para a questão do mal oriunda da psicologia jungiana não é a que sigo nesta tese. Conforme argumentei no primeiro capítulo, a compreensão do Diabo como discurso de Foucault é o caminho pelo qual tenho procurado trilhar. Acima já afirmei que as pessoas que freqüentam a I.U.R.D. são constituídas como sujeitos endemoninhados a partir das práticas discursivas difundidas no interior desta igreja. Toda a história de vida das pessoas é narrada novamente a partir da experiência de estar possuída e

222

Ibid., p. 156.

150

despossuída pelo Diabo e seus demônios. Este ponto de vista é que desejo desenvolver e aprofundar no próximo capítulo desta tese.

3- O DIABO TESTEMUNHA O PENTECOSTES: A CONSTRUÇÃO DO DIABO NA HISTÓRIA CULTURAL DO PENTECOSTALISMO Este terceiro capítulo tem como objetivo fazer uma análise das práticas acerca do Diabo no âmbito do pentecostalismo, observando as continuidades e as rupturas que existem entre práticas discursivas sobre o Diabo na I.U.R.D. e no pentecostalismo. Tem como questões fundamentais as seguintes: Como nasceu o pentecostalismo? Quais são as permanências e as rupturas que a I.U.R.D. mantém com fenômeno denominado de pentecostalismo? A fala da I.U.R.D. sobre o Diabo, de forma particular, diferencia-se da fala do pentecostalismo, de forma geral?

3.1- Por uma análise das práticas acerca do Diabo no pentecostalismo brasileiro Os evangélicos constituem o grupo religioso que mais tem

151

crescido no Brasil. Tomando como referência os três últimos censos do país, podemos observar um crescimento bastante significativo entre os anos 1980 e 1999. A porcentagem de brasileiros que eram evangélicos em 1980 era de 6,6 (7.885.650 em números absolutos), mas este índice saltou para 9% da população em 1991 (13.157.094). Segundo o último censo realizado pelo IBGE em 2000, os evangélicos já representam 15,6% da população do país (26.452.174).223 Os pentecostais formam o principal grupo responsável pelo aumento tão acentuado de evangélicos no país. Em 1980 havia 3.863.320 pentecostais no Brasil, 3,2% da população. Em 1991 o país já possuía 8.768.929 pentecostais, totalizando 6% dos brasileiros. O último censo revelou que existe entre nós 17.975.106 pentecostais, ou seja, 10,6% de todos os habitantes destas terras são pentecostais. O Brasil está aprendendo a falar a linguagem pentecostal com uma certa rapidez. Uma publicação recente224 mostra que o interesse pelo pentecostalismo tem despertado a atenção também da academia. Os organizadores da obra perceberam o registro de 11 teses de doutorado e 40 dissertações de mestrado no site da CAPES, e isso considerando apenas os trabalhos que abordam a I.U.R.D. nos anos entre 1995 e 2001.225

223

JACOB, C. R. et ali, Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil, p. 34. ORO, A. P. et ali. Op. cit, p. 365-379. 225 Infelizmente a maioria destas teses e dissertações está armazenada em bibliotecas de difícil acesso. Seria um trabalho hercúleo tentar localizar e obter cópia de cada uma a fim de analisá-las, o que considero o ideal. Possível para mim foi ler as teses e dissertações que foram publicadas e que, por isso mesmo, têm suscitado debates interessantes no campo acadêmico. 224

152

Penso que os dados acima são suficientes para despertar o interesse do leitor ou leitora para esta aproximação histórica do pentecostalismo. Acho também que os números justificam a importância do “objeto” de estudo pentecostalismo. Este fenômeno que cresce de forma significativa, sobretudo nas últimas décadas, está presente no país há quase um século. Outra particularidade que o rótulo pentecostalismo pode esconder é a diversidade de conceitos e práticas presentes em cada denominação. Por isso, gostaria de historiar o fenômeno, desde seus antecedentes no exterior até a sua explosão numérica na atualidade em nosso país. Desejo também analisar três importantes marcos históricos relacionados à presença pentecostal em terras brasileiras: 1) as primeiras décadas do século XX, quando, quase simultaneamente à sua invenção no Estados Unidos, chegam e se instalam no nosso país os primeiros crentes; 2) meados do mesmo século, ocasião em que a presença pentecostal começa a se massificar entre nós e 3) o fim dos anos 70 e início dos anos 80, oportunidade em que começa a florescer uma nova modalidade do fenômeno, denominada por alguns pesquisadores e pesquisadoras de neopentecostalismo. Adoto a estratégia de relatar criticamente a história do pentecostalismo, empenhando-me em analisar a inserção dessa expressão religiosa nos três momentos históricos acima indicados. Vou tomar como ponto de partida desta narrativa histórica

153

a síntese de Frederik D. Bruner226: “O metodismo foi o terreno moderno em que floresceu o pentecostalismo. O revivalismo era parcialmente, e cada vez mais, a prática norte-americana da teologia metodista, e Finney foi o indivíduo chave, e o movimento da santidade o veículo coletivo daquela teologia e prática.”227 Vou abordar os três movimentos acima citados com o objetivo de analisar a contribuição que cada um deu à construção do pentecostalismo. Embora seja preciso separá-los para efeito de análise, é importante ressaltar o quanto estão entrelaçados na prática. Há uma intensa circulação de conceitos e práticas entre os três acontecimentos referidos. (1) O metodismo é uma denominação/instituição religiosa que se fundamenta nos ensinamentos de J. Wesley (1703-1791), tendo sua origem no final do século XVIII. É considerado como um ramo tardio da reforma protestante do século XVI. Um ponto de partida para se compreender melhor esta denominação é atentar para a própria reforma protestante e suas nuanças. A reforma protestante assumiu características muito distintas, pois encontrou diferentes ambientes culturais nos mais diversos lugares da Europa do século XVI. Um mesmo país da Europa podia apresentar variações que iam desde um radicalismo até um reformismo mal 226 Deste ponto em Diante retomo mais uma vez a alguns dados de minha pesquisa de mestrado para aprofundá-la e ampliá-la. Ver OLIVA, A. S. O Diabo e seus demônios na Igreja Universal do Reino de Deus: teologia e rito de exorcismo na Catedral da Fé na cidade de Fortaleza. 227 BRUNER, F. D. Teologia do Espírito Santo, p. 34.

154

disfarçado. A Inglaterra, terra de J. Wesley, seguiu caminhos bastante particulares. A reforma neste país foi desvestida de maiores radicalidades quanto à forma de culto e à teologia. Houve, de fato, uma “nacionalização” do catolicismo, originando o que se pode chamar de anglo-catolicismo, uma expressão cristã católica em sua essência, com uma leve “tintura” protestante. A falta de radicalidade da reforma na Inglaterra gerou muitas reações entre as pessoas. Uma delas foi o puritanismo, um movimento de manifestação de inconformidade diante de uma igreja que manteve muitas características contestadas pelos reformadores em geral. Ser puritano era, antes de tudo, estar afastado das supostas “impurezas” da igreja oficial, muito marcada pelo que seus contemporâneos chamavam de “papismo”. Isso porque a Igreja Anglicana manteve a forma de governo episcopal, portanto uma hierarquia religiosa incomum entre os nascentes ramos do protestantismo. Antônio de Gouvêa Mendonça fala da dificuldade em se definir o puritanismo, mas, de qualquer modo, descreve-o como um “modo de ser, de ver os homens e as coisas sob o prisma da fé religiosa.”228 A partir desta afirmação o referido autor passa a analisar alguns dos elementos componentes do modo de vida puritano: 1) do ponto de vista político, está relacionado à Revolução Gloriosa na Inglaterra no século XVII; 2) do ponto 228

MENDONÇA, A. G. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil, p. 37.

155

de vista eclesiástico, foi o responsável pelo surgimentos das igrejas livres, seja sob a forma congregacional (igrejas locais com absoluta autonomia) ou sob a forma presbiteriana (igrejas locais aglomeradas em federações sob um regime representativo através de consistórios locais) e 3) do ponto de vista teológico, caracterizava-se, sobretudo, pela “teologia do pacto”, onde cada congregação é composta por “santos visíveis” que têm um pacto pessoal com Deus.229 O puritanismo teve forte repercussão sobre os familiares de J. Wesley, sobretudo sobre a de sua mãe, pessoa que muito o influenciou.230 Como foi dito acima, uma das possibilidades de se explicar as origens do metodismo é considerá-lo como um ramo tardio da reforma. Tenho grande simpatia por este modo de interpretar a religião originada das pregações do pastor inglês. O historiador da cultura Peter Burke231 considera que a reforma dos séculos XVI e XVII ficou mais restrita às elites, necessitando ainda ser completada. O citado autor não usa o termo reforma para designar as igrejas que nasceram de um processo de deserção do catolicismo a partir do século XVI. Para ele, a reforma é designada pela tentativa do clero católico e protestante em promover transformações no universo da cultura popular. Há uma primeira tentativa por parte da elite clerical em promover transformações na cultura popular nos séculos XVI e XVII. Como esta primeira tentativa fracassou, houve uma segunda no 229

Ibid., p. 37-38. A esse respeito ver LLOYD-JONES, M. Os puritanos: suas origens e seus sucessores, p. 246267. 231 BURKE, P. Cultura popular na idade moderna: Europa, 1500-1800, p. 231-265. 230

156

século XVIII, desta vez não a partir de cima, mas com a participação das camadas “populares”. Esta segunda fase da reforma foi profundamente marcada pela presença do metodismo, que representaria uma penetração dos valores da reforma protestante na “cultura popular”, e como tal recebeu influência deste meio. J. Wesley era pastor anglicano e como tal morreu. O pai do metodismo

não

fundou

esta

expressão

religiosa

enquanto

denominação/instituição. O nascimento de uma Igreja Metodista é posterior à sua morte. A disciplina ética, a personalidade rigorosa, a assiduidade nos exercícios espirituais e os encontros do “clube dos santos” contribuíram para a construção do rótulo de metodista que iria caracterizar a denominação fundada depois de seu falecimento. Falando de um ponto de vista teológico, o metodismo está profundamente entrelaçado ao arminianismo. Enquanto a doutrina da predestinação do calvinismo oferecia pouca ou nenhuma liberdade humana no processo de salvação, aquele reafirmava a salvação como graça/presente divino, mas insistia na liberdade humana em responder de forma afirmativa ou negativa à ação redentora divina. O arminianismo teria nascido como uma reação à falta de liberdade humana diante dos decretos predestinantes de Deus, como era pregado pelos calvinistas. Os seguidores de J. Wesley viriam a ser os maiores difusores desta concepção de salvação. A teologia do avivamento de Wesley era arminiana ... a livre graça de Deus em Cristo, salvação livre pela fé no

157

Salvador mediante o convite de Deus ao arrependimento e à fé. Parece que, pela primeira vez, a música é usada especificamente como canal da mensagem religiosa ao mesmo tempo que apela para as emoções.232

Outro fator presente no metodismo, e depois uma importante característica do pentecostalismo, muito ligado à vida de seu fundador seria uma vivência de cunho emocional que tivera. J. Wesley precisou de alguns anos de vida cristã e de peregrinações para encontrar repouso na famosa experiência denominada de “coração aquecido”. O peregrino escreve em seus diários como vivia angustiado por ser um cristão/pastor e não ter adquirido absoluta convicção de ser salvo e amado por Deus, fato que iria revolucionar sua vida e ministério.233 Este acontecimento iria constituir uma das marcas mais importantes do metodismo. Antônio de Gouvêa Mendonça ressalta que este penetrou nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XVIII “com sua ênfase mais na conversão do que no batismo, na experiência religiosa mais do que simplesmente pertencer a uma instituição eclesiástica.”234 As dificuldades dos inconformados com a igreja anglicana teriam levado muitos ingleses a verem nas terras além-mar possibilidades de construir o tipo de cristianismo tão desejado, mas impossível de ser realizado em sua pátria. O próprio J. Wesley chegou a viajar aos Estados Unidos em missão. Quando o líder religioso inglês e seus colegas 232 233 234

MENDONÇA, A. G O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil, p. 40. Ver LELIÈVRE, M. João Wesley: sua vida e obra. MENDONÇA, A. G. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil, p. 50.

158

avivalistas em geral não “cabiam” mais na igreja oficial, passavam a pregar em outros lugares (distantes geograficamente – além-mar – e socialmente – ruas, praças públicas e proximidades de fábricas). Este parece ser o melhor contexto para se compreender a famosa frase de J. Wesley: “O mundo é a minha paróquia”. No meu modo de ver, é um bom caminho entender o metodismo como um dos principais antecessores do pentecostalismo. Consigo enxergar na experiência fundante do pai do metodismo como uma transformação e uma inflexão sui generis no âmbito do protestantismo de modo geral. Há, todavia, que se ressaltar que há muitas pessoas que discordam veementemente desta posição. Lembro-me de uma ocasião em que participava de um evento que reunia historiadores do pentecostalismo e vi um importante teólogo metodista negar, quase ofendido, haver qualquer relação entre um e outro fenômeno. (2) A vida e as pregações de J. Wesley estavam profundamente entrelaçadas

com o avivalismo. O avivalismo é um

movimento religioso que aconteceu no interior das igrejas originadas da reforma protestante nos séculos XVIII e XIX, sem ter assumido uma forma institucional

específica.

Algumas

ênfases

da

reforma

protestante

supostamente estariam se esfriando e alguns pregadores pensavam que seria necessário fazer com que o entusiasmo inicial pudesse viver/reviver. A idéia de avivar/reavivar está relacionada à retomada do

159

fervor religioso que havia marcado as igrejas nascidas da reforma protestante. Os resultados produzidos pelo avivalismo foram o crescimento do número de membros das igrejas protestantes, o nascimento de novas instituições e o despertar missionário que iria caracterizar o século XIX.235 Mateo Lelièvre e também Martyn Lloyd-Jones falam, ao longo de seus livros, das pregações dos avivalistas na Inglaterra e em outros lugares. Estes pregadores atraíam multidões que ficavam horas ouvindo-os falar. Enquanto muitos ouvintes se convenciam, outros se indignavam, mas o fato é que os avivalistas conseguiam reunir milhares de pessoas ao ar livre. A proibição de pregar em algumas paróquias, como foi o caso do próprio J. Wesley, teria sido uma grande contribuição para a expansão do avivalismo. Uma vez proibidos de falar nas paróquias, os pregadores se dirigiam para outro países ou para ambientes não convencionais na época, como as imediações das fábricas nascentes. Parece-me haver uma estreita relação entre os movimentos avivalistas e a nascente revolução industrial. A modernidade seria caracterizada pela crescente industrialização acompanhada da acentuada urbanização. Os grandes conglomerados urbanos europeus seriam palcos de muitos conflitos sociais. As grandes cidades estariam despreparadas para receber tão grande concentração de pessoas, não tendo como absorver tanta mão-de-obra, o que viria a formar um grande exército de pessoas 235

Ibid., p. 49-50.

160

insatisfeitas com suas condições de trabalho, além de desempregados e mendigos. Estas massas urbanas encontrariam em expressões religiosas como o metodismo/avivalismo um importante componente para a contrução de sentido em um novo mundo urbano. Frederik D. Bruner236 vê no avivalismo contribuições fundamentais

à

religião

norte-americana

e,

por

conseguinte

ao

pentecostalismo, mas dá destaque especial à “individualização e à emocionalização da fé cristã”. O citado autor dá atenção também a C. Finney (1792 –1876), considerado a maior influência depois de J. Wesley sobre os filhos e filhas do Pentecoste. O pregador avivalista enfatizava uma “experiência subseqüente à conversão que se chamava batismo no Espírito Santo”. Além disso, teria utilizado “técnicas de incitação emocional”. Ele próprio registra uma experiência religiosa mediada pelas emoções da seguinte forma: Fui poderosamente convertido na manhã do dia 10 de outubro. À noitinha do mesmo dia, e na manhã do dia seguinte, recebi batismos irresistíveis do Espírito Santo, que me traspassaram, segundo me pareceu, corpo e alma. Imediatamente me achei revestido de tal poder do alto, que umas poucas palavras ditas aqui e ali a indivíduos 237 provocavam a sua conversão imediata.

Minha tendência é perceber a ênfase do metodismo e do avivalismo na experiência religiosa intermediada pela emoção como uma reação ao acentuado racionalismo que passou a se difundir nos meios 236 237

Op. cit., p. 30-31. FINNEY, C. G. Uma vida cheia do Espírito, p. 13.

161

protestantes ligados mais estreitamente à reforma do século XVI. É de domínio no meio acadêmico a tese do sociólogo clássico M. Weber sobre a afinidade eletiva entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. O primeiro teria sido um grande produtor de imagens racionalizadas de mundo, fundamental à constituição e manutenção do segundo. Penso que nesse contexto de acentuada valorização de modos de pensar e viver de forma tão racionalizada é que deve ser situada a alternativa de se buscar uma vivência religiosa mais emocionalizada. (3) Simultaneamente ao metodismo e aos avivamentos, se difundiram, nos países de fala inglesa, os movimentos de santidade. Como os movimentos avivalistas, os de santidade não se restringiram a uma configuração denominacional específica, mas estavam presentes em diversas igrejas provenientes da reforma protestante. Eram ajuntamentos de pessoas em residências particulares ou locais apropriados para “retiros” com o objetivo de compreender e buscar santidade. A contribuição mais importante do metodismo do século XVIII, segundo Paul Freston238, foi o conceito de “segunda graça, distinto da salvação, a qual Wesley chamava de perfeição cristã.” Este conceito seria popularizado pelos movimentos de santidade no século XIX. Frederik D. Bruner vê o surgimento destes ligados aos seguintes fatores: Parece que o movimento da santidade surgiu de uma variedade de causas sendo as principais entre elas os 238

FRESTON, P. Op. cit., p. 73.

162

efeitos posteriores desmoralizantes da Guerra Civil norteamericana, a insatisfação dentro das igrejas metodistas com a “santidade” ou aderência à doutrina perfeccionista wesleyana da Igreja Metodista, e uma preocupação correspondente por causa do avanço dos conceitos liberais na teologia e das riquezas e do mundanismo na igreja como um todo.239

Esta busca pela santificação é um dos frutos da teologia arminiana que anunciava a participação humana no processo de salvação, como foi descrito acima. Deus salva graciosamente, mas o ser humano deve responder a esta graça redentora e levar uma vida de santidade. Os ajuntamentos coletivos foram se constituindo em um veículo por excelência para que as pessoas pudessem reforçar umas nas outras o fervor na busca pela santidade, bem como para atestar a eficácia desta busca. É fundamental ressaltar o papel que as redes de sociabilidade cumprem na difusão de conceitos e vivências de caráter religioso. Na minha opinião, este seria o foco adequado para se colocar sobre os movimentos de santidade, que teriam a função de criar espaços para que sujeitos diferentes possam criar suas experiências. Como a “realidade” é socialmente construída, a concretude de um conceito teológico sempre clama por espaço sociais onde estes também possam ser vivenciados e transformados em fato “objetivo”. Donald W. Dayton conta que em Nova York a esposa de um médico, Phoebe Palmer e sua irmã Sarah Lankford tiveram uma

239

Op. cit., p. 32.

163

experiência de santificação. Segundo o autor, a primeira se tornaria a figura principal do movimento de santidade: promoveria reuniões em sua casa por mais de sessenta anos, seria editora de uma revista, “Guia para a santidade”, e iria, finalmente, evangelizar de forma itinerante. As reuniões realizadas na sua residência eram muito semelhantes aos ajuntamentos carismáticos contemporâneos.240 O metodismo, os avivamentos e os movimentos de santidade, ao longo dos séculos XVIII e XIX, contribuíram com um universo de conceitos e práticas que viriam a exercer uma forte influência sobre o nascente pentecostalismo. Embora estes fatos não devam ser considerados pentecostais de forma propriamente dita, forneceram o background teórico-prático que estes precisavam para se constituir primeiro como movimento e depois através de formas institucionalizadas. Paul Freston argumenta que o pentecostalismo brasileiro, originado nos Estados Unidos no início do século XX, encontra sua origem mais remota no avivalismo metodista e no movimento de santidade dos séculos anteriores. O movimento de santidade penetrou em muitas denominações e produziu grupos separatistas de santidade. Nestes grupos separatistas o pentecostalismo teria se originado.241 Tendo analisado suas raízes norte-atlânticas, gostaria de me dedicar ao pentecostalismo de forma propriamente dita. Mesmo tendo se 240 241

DAYTON, D. W. Raíces teológicas del pentecostalismo, p. 39. FRESTON, P. Op. cit., p. 73-74.

164

alimentado de outros contextos, os crentes pentecostais não se limitaram a consumir conceitos e práticas religiosas, mas recriariam-nas, dando-lhes novas formas. Vou narrar os primórdios da história do pentecostalismo dando destaque para alguns personagens emblemáticos que conseguiram aglomerar seguidores em torno de si e alguns, posteriormente, vieram a ser fundadores de instituições/igrejas pentecostais. (1) Os primórdios do pentecostalismo nos remetem à pessoa de C. F. Parham. Este pastor metodista começou a sua carreira ministerial em Linwood, Kansas, EUA. Sua congregação era ferrenha defensora da segunda bênção, posterior à salvação, a

experiência de

santificação. Este teria sido instruído por A. B. Simpson, um pregador de cura divina, que o advertira acerca do avivamento que deveria marcar o novo século. A idéia de avivamento entusiasmaria C. F. Parham que fundaria um instituto bíblico para treinar pessoas para que estivessem preparadas para evangelizar. No final do século XIX C. F. Parham fundou o Lar de Curas Betel e o Colégio Bíblico Betel, ambos na cidade de Topeka, Kansas. A questão fundamental discutida com seus alunos e alunas era acerca de qual fator deveria evidenciar, sob o ponto de vista bíblico, o batismo com o Espírito Santo. A resposta veio após algum tempo de pesquisa: o falar em línguas deveria evidenciar a existência de uma experiência de batismo com o Espírito Santo. Não bastava a descoberta intelectual do fato, era preciso

165

que alguém tivesse a experiência do falar em línguas. Isto aconteceu em uma vigília, quando uma aluna de C. F. Parham, Agnez Ozman, sentiu necessidade de receber oração por imposição de mãos, fato que a fez orar em línguas.242 Neste ponto cabe ressaltar a posição defendida por Paulo D. Siepierski quanto ao assunto.243 Para este autor, o falar em línguas a que se refere C. F. Parham não é a glossolalia (falar em língua desconhecida), mas a xenoglassia (falar em língua estrangeira sem prévio conhecimento da mesma). Alguns fatores estariam relacionados ao fenômeno. Em Kansas havia grande percentual de estrangeiros, mas muitos deles não sabiam falar inglês. Portanto, a xenoglassia era fundamental para a urgência da pregação a todos os povos, que se revestia de um caráter pré-milenarista. Penso ser esta uma explicação bastante razoável para os fatos. (2) Ricardo Gondim244 ressalta que C. F. Parham decidiu mudar de método e iniciou um período de itinerância. Passou a viajar pelos Estados Unidos e a ensinar a existência de três experiências com o Espírito santo: salvação, santificação e poder espiritual com evidência do falar em línguas. Neste caso, o falar em outras línguas, evidência de que a pessoa teria sido batizada com o Espírito Santo, seria uma terceira bênção e não uma segunda bênção, como viria a ser denominada de forma predominante

242 243 244

Ver CAMPOS, L. C. Pentecostalismo: sentidos da palavra divina, p. 22. SIEPIERSKI, P. D. Contribuições para uma tipologia do pentecostalismo. GONDIM, R. O movimento pentecostal: história e raízes teológicas.

166

no pentecostalismo. Luís de Castro Campos245 diz que C. F. Parham teria criado uma escola bíblica em Houston, Texas, no ano de 1905. Nesta escola estaria W. Seymour, um negro, que o autor identifica como sendo proveniente do movimento de santidade, que foi impedido de fazer matrícula por conta da segregação racial nos Estados Unidos, mas que acabou participando como aluno assistente em função de uma concessão feita por C. F. Parham. Tendo assimilado os seus ensinamentos, W. Seymour se deslocou para Los Angeles, onde pregou na Igreja dos Nazarenos, mas foi expulso por causa do teor de sua mensagem. Deslocouse, então, para o norte de Los Angeles onde passou a pregar em uma casa. Em 1906 algumas pessoas que se reuniam na casa falaram em línguas. O movimento começava a crescer, foi então preciso que se deslocassem para um antigo templo metodista na rua Azuza. Alguns autores246 gostam de enfatizar o caráter de engajamento social do pentecostalismo entre os negros. Ingo Wulfhorst destaca que no “movimento pentecostal negro a santificação fazia parte da luta política de resistência à dominação econômica dos brancos e da força cultural negra, expressas em símbolos, ritmos e canções.”247 O

pentecostalismo

dos

brancos

foi

assumindo

características diferentes, deixando de lado as questões sociais e 245

Op. cit., p. 22. CAMPOS, L. C. Op. cit. e também WULFHORST, I. O pentecostalismo no Brasil. In: WULFHORST, I. et ali. Estudos teológicos 1. 247 WULFHORST, I. Op. cit., p. 7. 246

167

econômicas e se voltando para questões mais de cunho espiritual. Este fato teria levado a um “cisma” entre brancos e negros antes de terminar a primeira década do século XX. Da vertente pentecostal conduzida pelos brancos é que se originara o pentecostalismo brasileiro.248 No meu modo de ver, esta perspectiva seria uma boa explicação para o fato de que somente nas últimas décadas do século XX é que os pentecostais começariam se inserir no mundo da política, contrariando sua posturas nas décadas anteriores. (3) Em uma das reuniões de W. Seymour estava W. H. Durham, um pastor batista que trabalhava em Chicago. W. H. Durham experimentou o batismo com o Espírito Santo, marcado pelo falar em línguas. Divergia de W. Seymour, ao afirmar que o batismo com o Espírito Santo seguido pelo falar em línguas era uma segunda bênção e não uma terceira bênção como pensava W. Seymour.249 De volta a Chicago, Illinois, passa a anunciar a nova experiência que teve, transformando a cidade em um dos mais significativos centros de difusão do pentecostalismo. Paulo D. Siepierski250 ressalta que este pastor iria influenciar aos futuros líderes de três importantes denominações pentecostais do Brasil: L. Francescon (Congregação Cristã no Brasil), D. Berg e G. Vingren (Assembléia de Deus) e A. S. McPherson (Igreja do Evangelho Quadrangular).

248 249 250

Ibid., p. 8. CAMPOS, L. C. Op. cit., p. 25. E também WULFHORST, I. Op. cit., p. 8. Op. cit.

168

Tendo abordado alguns dos personagens fundadores do pentecostalismo nos Estados Unidos, gostaria de passar à análise histórica de como esta expressão religiosa chegou ao Brasil e fincou raízes institucionais. A minha estratégia narrativa implicará em fazer um breve histórico das mais conhecidas denominações pentecostais deste país, bem como de seus líderes fundadores, procurando relacionar os fatos com seu devido contexto, como apontei no início deste capítulo. (1) A Congregação Cristã no Brasil foi a primeira denominação pentecostal a entrar no país. Seu líder pioneiro foi L. Francescon, operário imigrante italiano que encontrou a sua primeira acolhida na igreja presbiteriana italiana dos Estados Unidos, tendo algumas passagens pela igreja valdense251, o que faz os estudiosos e estudiosas discordarem quanto à sua exata origem religiosa. O fato é que sofreu do presbiterianismo a marcante influência da doutrina da predestinação, fato que faz da igreja que fundou uma instituição que não evangeliza, mas que apenas espera que os eleitos se acheguem. L. Francescon não se restringiu a freqüentar a Igreja presbiteriana italiana, mas passou a estar presente nas reuniões dirigidas por 251

Alguns movimentos nasceram na Idade Média com o intuito de oferecer uma alternativa para as pessoas que desejavam ser cristãs, mas não podiam tolerar uma Igreja altamente hierarquizada e autoritária e que, por conseguinte, distorcia os ensinamentos de amor, tolerância, humildade e pobreza de Jesus Cristo. Este é o caso dos valdenses que se inspiravam em Pedro Valdo e no século XII empreenderam um movimento de contestação da hierarquia da Igreja Católica. Os valdenses negavam a necessidade da hierarquia por acreditarem somente na existência de um sacerdócio universal e achavam que os cristãos deveriam ter um modo de vida permeado pela pobreza e não pela luxúria que marcava a vida da hierarquia da igreja. Esta forma de compreender e viver o cristianismo iria assumir formas institucionais que sobrevivem até os dias de hoje.

169

C. F. Durham. Em uma destas reuniões recebeu o dom de falar em línguas e também uma revelação para ser um anunciador da Palavra de Deus. Saiu, então, para Buenos Aires, Argentina, e também para o Brasil. No Brasil instalou-se entre imigrantes compatriotas. A Congregação Cristã no Brasil nasceria em 1910 de um cisma ocorrido desde uma pregação feita por L. Francescon em uma igreja presbiteriana. Nos primeiros vinte anos as pregações nessa igreja eram em italiano, mas depois passou à língua local. A Congregação Cristã no Brasil expandiu-se inicialmente, sobretudo, nos estados de São Paulo e Paraná. Paulo D. Siepierski252 segue a hipótese de que esta igreja teria se expandido a partir das rotas do café. Sabe-se que na virada do século XIX para o século XX muitos imigrantes vieram para o Brasil com o intuito de substituir a mão-de-obra escrava. Dentre os imigrantes havia muitos italianos que se instalaram nos estados de São Paulo e Paraná, onde o solo era muito propício à agricultura. Isto explicaria porque a Congregação Cristã no Brasil viria a ser uma igreja, pelo menos em princípio, principalmente de meio rural. A Congregação Cristã no Brasil é uma das igrejas mais rigorosas, sobretudo no que diz respeito à vestimenta, dentre as pentecostais. Os homens se assentam separados das mulheres, não possuem pastor ou qualquer outro tipo de obreiro remunerado, não aceitam o valor fixo de 10%, comum entre as igrejas cristãs como contribuição, ninguém 252

Op. cit.

170

prepara a pregação previamente, pois acreditam que o Espírito Santo inspira alguém no momento adequado. Além disso, não preparam pessoas para o batismo, pois os eleitos ouvem o chamado quando é oferecida a oportunidade para isso. As mulheres devem usar véu para entrar na igreja. Ao final do culto cumprimentam-se com o ósculo santo. São também rigorosos com o que se chama de usos e costumes, pois as mulheres não podem se depilar, usar calças compridas, maquilagem ou qualquer enfeite que possa “envaidecê-las”. Os homens freqüentemente usam paletós e cabelos muito curtos, e não podem usar barba por considerarem indecoroso. Todos são proibidos de assistir televisão (pelo menos tê-la em casa, uma vez que muitos são proibidos de ter a televisão, mas a assistem na casa de vizinhos). (2) Como L. Francescon, D. Berg e G. Vingren, os fundadores da Assembléia de Deus, eram imigrantes e operários suecos. Teriam se deslocado para os Estados Unidos no início do século em função de uma crise em seu país. Instalaram-se em Chicago no intuito de conquistar melhores condições de vida e acabaram por descobrir as reuniões dirigidas por C. F. Durham. Receberam o batismo no Espírito Santo e também uma revelação que os orientava para ir em direção ao “Pará”. Embora muitos insistam no acaso do chamado missionário de D. Berg e G. Vingren para o Pará, Paulo D. Siepierski253 argumenta que este 253

Op. cit.

171

estado do Brasil era na época muito famoso no exterior por sua produção de matéria prima para a confecção da borracha. No fim da primeira década do século XX, quando os dois missionários estrangeiros chegaram ao Brasil, o país está no auge do “ciclo da borracha”, fenômeno que teria atraído milhares de pessoas de outras regiões do país em busca de uma “terra sem males”. A região norte passou a ser uma grande alternativa para muitos nordestinos afetados pelas freqüentes secas que assolam sobretudo o sertão, processo sempre acompanhado pela expulsão dos camponeses das grandes propriedades. Mais tarde, os aventureiros frustrados provocariam o retorno de muitos migrantes no país quando a borracha brasileira começou a perder espaço para o mercado asiático. Na trilha do refluxo migratório, a Assembléia de Deus iria se expandir pelo país na ordem inversa da Congregação Cristã no Brasil. Enquanto esta ocupou o sul e sudeste e depois as outras regiões, aquela primeiro conquistou as regiões norte e nordeste e depois as demais regiões. A implantação da Congregação Cristã no Brasil seguiu as trilhas do café, enquanto a Assembléia de Deus seguiu a trilha da borracha com o retorno dos migrantes. A Assembléia de Deus também nasceu de um cisma dentro de uma igreja protestante tradicional. Desta vez a afetada foi uma igreja batista da cidade de Belém, de onde dezenove pessoas saíram para formar a

172

Assembléia de Deus. D. Berg e G. Vingren vieram para o Brasil sem sustento para o trabalho missionário. Instalaram-se na igreja batista de Belém e tiveram algumas oportunidades para pregar. A forma como os missionários suecos interpretavam a Bíblia gerou polêmica entre os batistas. A doutrina do Espírito Santo – o falar em línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo – foi o elemento que gerou a discórdia entre os missionários suecos e a liderança batista local.254 Segundo o órgão oficial da igreja, o trabalho de implantação da Assembléia de Deus no Brasil passou por quatro fases: 1) de 1911 a 1924, divisão e construção do primeiro templo; 2) de 1924 a 1930, expansão pelo estado do Pará; 3) de 1930 a 1950, evolução no estado do Pará e estados vizinhos como Ceará, Amazonas e Maranhão; 4) de 1950 a 1990, crescimento com ênfase no trabalho missionário.255 (3) Ressaltei acima que W. H. Durham teria influenciado aos futuros líderes de três importantes denominações pentecostais do Brasil: L. Francescon (Congregação Cristã no Brasil), D. Berg e G. Vingren (Assembléia de Deus) e A. S. McPherson (Igreja do Evangelho Quadrangular). A. S. McPherson é contemporânea dos demais pioneiros do pentecostalismo brasileiro, embora a denominação que fundou tenha chegado ao Brasil apenas em meados do século XX. A. S. McPherson teria experimentado a cura divina em uma das reuniões de W. H. Durham e 254 255

CAMPOS, L. C. Op. cit., p. 31. Ibid., p. 32.

173

passara a difundir tal experiência. Infelizmente a fundadora da Igreja do Evangelho Quadrangular morreu antes mesmo que esta igreja chegasse ao Brasil. Paul Freston propõe uma compreensão do pentecostalismo em três ondas: a primeira a partir de 1910, a segunda a partir de 1950/60 e a terceira a partir do final dos anos 1970. A Igreja do Evangelho Quadrangular faria parte da segunda onda e não da primeira, ao lado da Congregação Cristã no Brasil e da Assembléia de Deus. Para o citado autor, as igrejas da segunda onda iriam se diferenciar da primeira por fazerem uso dos modernos meios de comunicação de massa.256 Um dos argumentos para se questionar a distinção entre primeira e segunda ondas do pentecostalismo brasileiro é o fato de A. S. McPherson estar inserida no mesmo contexto de L. Francescon e de D. Berg e G. Vingren; se o contexto é o mesmo por que diferenciar o tipo de pentecostalismo proveniente deles do proveniente dela? A Igreja do Evangelho Quadrangular chegou ao Brasil como fruto de uma “Cruzada Nacional de Evangelização”, promovida pelos pregadores de cura divina H. Williams e R. Bootright. Algumas igrejas protestantes tradicionais, dentre elas uma igreja presbiteriana independente em São Paulo, abriram suas portas para a Cruzada Nacional, causando muitos problemas e divisões no seio da igreja e originando a Igreja do 256

FRESTON, P. Op. cit., p. 70-2.

174

Evangelho Quadrangular. Em princípio esta igreja teria crescido muito, sobretudo a partir da adesão de membros de igrejas tradicionais. A Igreja do Evangelho Quadrangular tem uma forma “liberal” quanto à vestimenta recomendada a seus fiéis257, diferenciando-se das igrejas pentecostais clássicas.

Também se diferencia pelo espaço

igualitário ocupado pela mulher, o que pode ser explicado pelo fato da sua fundadora ter sido uma representante do sexo feminino. É importante atentar para o significado de quadrangular no slogan da igreja, pois através dele se pode ter uma síntese da teologia presente na denominação. Trata-se das quatro ênfases da denominação: Jesus salva, Jesus batiza no Espírito Santo, Jesus cura e Jesus volta. Paulo D. Siepierski258 pensa que esta é uma excelente síntese teológica, não apenas da Igreja do Evangelho Quadrangular, mas do pentecostalismo em geral. A supremacia da cura a partir da implantação da Igreja do Evangelho Quadrangular no Brasil tem levado autores, como Antônio de Gouvêa Mendonça,259 a chamar estas denominações de “agências de cura divina” devido ao suposto enfraquecimento do vínculo eclesiástico nestas igrejas e o aparecimento de uma relação utilitarista entre fiel e igreja e ao

257

WULFHORST, I. Op. cit., p. 11. Op. cit. 259 MENDONÇA, A. G. Evolução histórica e configuração atual do protestantismo no Brasil. In: MENDONÇA, A. G. & VELASQUES, P. Introdução ao protestantismo no Brasil, p. 11-59. 258

175

nascimento de lideranças autoritárias/centralizadoras.260 Gostaria de empreender uma breve análise do contexto sócio-cultural em que o pentecostalismo foi inserido e se difundiu no Brasil. Para Regina Reyes Novaes essas primeiras décadas de presença pentecostal no Brasil seriam marcadas por um estilo de vida predominantemente rural, embora já estivessem em andamento uma série de fatores que viriam transformar o país em espaço fundamentalmente urbano. Embora seja adequado identificar como ponto de partida para a análise do pentecostalismo clássico um cenário rural, não se deve esquecer que já nas primeiras décadas do século XX estão colocadas as condições para que o Brasil viesse, com relativa rapidez, a ter sua população concentrada em grandes cidades. Penso que este cenário de mudanças aceleradas é

o mais correto para se pensar como o

pentecostalismo vai se instalando e se definindo, com o passar das décadas, em uma alternativa de construção de sentido de vida bastante razoável para as camadas populares urbanas. Tomemos, como ponto de partida apenas, um Brasil ainda profundamente rural: A expansão pentecostal no Brasil (...) pode ser pensada através de três momentos. Uma primeira onda compreende os anos 1910-1950, época em que 80% da população brasileira vivia no campo. Nestes anos a expansão se fez, sobretudo, a partir da região Norte (através da denominção Assembléia de Deus) e Nordeste (Congregação Cristã do 261 Brasil). 260

WULFHORST, I. Op. cit., p. 11. NOVAES, R. R. “Pentecostalismo, política, mídia e favela”. In: VALLA, V. V. Religião e cultura popular, p. 50.

261

176

A afirmação acima é tão correta que ainda hoje é possível observar características, residuais em algumas comunidades ou mais enfáticas em outras, desse modus vivendi rural no pentecostalismo pelo menos na maneira como preservam o que tem sido chamado de adoção de “usos e costumes”: cabelos longos para as mulheres e curtos para os homens, vestidos ou saias para pessoas de sexo feminino e paletó para os varões, restrições quanto ao uso de maquiagem e adereços, proibição de acompanhamento de programas televisivos etc. A preservação até hoje, como é o caso de muitas comunidades, de usos e costumes pode ser interpretada como um modo de resistência cultural ao processo acelerado de transformação do mundo rural mediante uma urbanização pela qual o país viria a passar nas décadas posteriores à instalação dessas duas primeiras igrejas pentecostais. Penso que estas mudanças ficam bastante evidentes na cronologia das últimas décadas do Século XIX e primeiras do século XX proposta pelo historiador da cultura Nicolau Sevcenko: 1) Os anos de 1870 a 1900 são caracterizados pela cristalização e difusão da “Revolução Científico-Tecnológica”, que faria expandir formas globalizadas da economia e princípios de racionalidade técnica, sendo o momento em que o Brasil começaria a ingressar na modernidade; 2) Os anos de 1900 a 1920 seriam marcados pela introdução de novos padrões de consumo, instigados

177

pela nascente onda publicitária; 3) De 1920 a 1930, período de crise do regime republicano e ascensão de um discurso nacionalista/nativista que viria a servir de base ao populismo; 4) Nos anos de 1930 a 1940 há o ingresso do governo varguista na cena política brasileira, sendo caracterizado por uma orientação autoritária na tentativa de construir uma base social de sustentação do regime.262 Em sintonia com a visão de Nicolau Sevcenko está Maria Cristina C. Wissenbach, quando analisa as primeiras décadas do século XX e afirma que esse período foi caracterizado por um crescente aumento dos contingentes urbanos da sociedade brasileira. Este crescimento foi tão repentino e acelerado que passa a haver um descompasso entre demandas humanas e existência de infra-estrutura, o que viria a gerar uma série de problemas sociais. Entendo que é importante destacar estes problemas sociais porque eles podem ajudar a explicar como o pentecostalismo viria a estar tão atrelado às camadas populares urbanas e dentro desta categoria social viria a ser uma importante alternativa de reconstrução de um mundo que se dissolvia rapidamente. Nessa época, o adensamento de populações nas grandes cidades ocorreu sem que houvesse uma correspondência na expansão da infra-estrutura citadina e na oferta de empregos e moradias, transformando esse avolumar menos num desenvolvimento e mais num inchaço, o que acentuou o contraste entre as desigualdades sociais que aí 263 se fizeram presentes. 262

SEVCENKO, N. “Introdução”, In: ____. (Org.). História da vida privada no Brasil 3: república, da belle époque à era do rádio, p. 35-37. 263 WISSENBACH, M. C. C. “ Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade

178

Para que possamos ter a exata noção das mudanças ocorridas no Brasil ao longo do século XX, seria interessante contemplar alguns dados: Foi assim que migraram para as cidades, nos anos 50, 8 milhões de pessoas (cerca de 24% da população rural do Brasil em 1950); quase 14 milhões, nos anos 60 (cerca de 36% da população rural de 1960); 17 milhões, nos anos 70 (cerca de 40% da população rural de 1970). Em três décadas, a espantosa cifra de 39 milhões de pessoas.264

Tenho consciência de que afirmar que um dado fenômeno religioso arrebanha para si grandes contingentes de pessoas das camadas populares não explica muita coisa, uma vez que a maioria absoluta da população brasileira tem vivido abaixo da linha de pobreza. Por outro lado, entendo que um dos fatores que viria contribuir para o enraizamento do pentecostalismo em terras brasileiras seria a sua capacidade de responder aos anseios que as camadas urbanas pobres teriam de um referencial de cunho ético e místico que pudesse reestruturar seu mundo social desagregado. A expansão pentecostal mais acelerada a partir das décadas posteriores à metade do século XX demonstra a capacidade que este fenômeno manteve de se colocar como resposta aos anseios das pessoas, embora agora em um novo contexto. Se nos dias de hoje se pode falar de uma quantidade já possível. In: SEVCENKO, N. (Org.). História da vida privada no Brasil 3: república, da belle époque à era do rádio, p. 91. 264 MELLO, J. M. C. & NOVAES, F. A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil 4: contrastes da intimidade contemporânea, p. 581.

179

significativa de crentes pentecostais oriundos de camadas médias da população, além de contar até com a presença de pessoas das classes mais abastadas, o pentecostalismo ainda não perdeu sua capacidade de seduzir as camadas populares. Parece-me, sim, que o anseio por um sentido fundamentado em valores transcendentais é uma aspiração dos brasileiros de uma forma geral e o pentecostalismo tem tido alguma eficácia em se colocar como resposta a estas pessoas, independente de sua camada social. A seguir, vou abordar as últimas décadas de presença e expansão pentecostal no nosso país para, posteriormente, tecer novas considerações sobre o modo como esta expressão religiosa se adapta às mudanças ocorridas no país. (4) O primeiro ramo do pentecostalismo brasileiro que nasce de uma liderança nacional é a Igreja Evangélica o Brasil para Cristo. Seu grande líder e fundador é o pedreiro pernambucano Manoel de Mello. Manoel de Mello foi da Assembléia de Deus e da Igreja do Evangelho Quadrangular, onde aprendeu a utilizar a técnica itinerante das pregações de cura divina em tendas. O templo/sede da igreja está em São Paulo, no bairro da Lapa, e é um templo considerado o maior do país com seus 15.000 lugares. Esta igreja traz alguns elementos residuais das igrejas a que pertenceu seu líder/fundador, embora não pareça enfatizar o dom de falar

180

em línguas.265 Algumas particularidades desta igreja chamam a atenção: foi uma igreja filiada a órgãos ecumênicos como o Conselho Mundial de Igrejas e seu líder tem grande envolvimento com a política partidária. Outra característica desta igreja que passou a ser também marcante no pentecostalismo brasileiro a partir dos anos 1950/60, é o uso da radiodifusão. O pentecostalismo chegou no Brasil e instalou-se. Ao longo do século XX foi encontrando o seu espaço no campo religioso brasileiro. Em princípio, teve um crescimento considerável, mas nada de excepcional. Nas primeiras décadas era mais um fenômeno que causava admiração do que preocupação. A partir de meados do século XX começou a conhecer um crescimento vertiginoso, fato que o levaria a ser, rapidamente, o ramo mais expressivo do protestantismo brasileiro. Mais recentemente, o pentecostalismo tem voltado a ocupar a atenção dos brasileiros em geral, seja para condená-lo, como para analisá-lo academicamente, ou mesmo para se tornar um adepto seu. O fato é que parece ter se instalado de forma duradoura no campo religioso brasileiro e hoje começa, inclusive, a ameaçar a hegemonia da igreja católica. Uma metodologia relativamente comum na pesquisa brasileira sobre o pentecostalismo tem sido a de uma primeira aproximação do fenômeno através de classificações/tipologias. Gostaria de analisar 265

Ibid., p. 12.

181

criticamente algumas destas tipologias por dois motivos: 1) elas são bastante úteis como uma primeira visão sintética da história do pentecostalismo e 2) elas ajudam a reconhecer os principais conceitos e práticas das diferentes instituições pentecostais. Antônio de Gouvêa Mendonça propõe a seguinte tipologia para o protestantismo em geral: protestantismo de imigração (Igreja Luterana); protestantismo de missão (Igreja Congregacional, Igreja Presbiteriana, Igreja Metodista, Igreja Batista); pentecostalismo clássico (Assembléia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Evangélica o Brasil para Cristo); agências de cura divina (Deus é amor).266 Paul Freston propõe uma tipologia do pentecostalismo especificamente a partir de um conceito que usa uma analogia física267, o conceito de onda: a primeira onda vai de 1910 até 1950, com destaque para as igrejas pioneiras e tem como contexto os fluxos migratórios (Assembléia de Deus e Congregação Cristã do Brasil); a segunda onda vai de 1950 a 1970, com destaque para a fragmentação do pentecostalismo e tem como contexto São Paulo (Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Evangélica o Brasil para Cristo e Deus é amor); a terceira onda começa no fim dos anos 1970 e adquire força a partir dos anos 1980 e tem como contexto o Rio de

266

MENDONÇA, A. G. Evolução histórica e configuração atual do protestantismo no Brasil. In: MENDONÇA, A. G. & VELASQUES, P. Op. cit., p. 11-59. 267 Cf. CAMPOS, L. S. Op. cit., p. 51.

182

Janeiro (Igreja Universal do Reino de Deus e Igreja Internacional da graça de Deus).268 Leonildo Silveira Campos faz uma extensiva análise das diferentes tipologias do pentecostalismo. Chama o modelo de Antônio de Gouvêa Mendonça de dualista (pentecostalismo e agências de cura divina) e o de Paul Freston de tricotomista (três ondas). O referido autor vê dificuldades no modelo de Paul Freston pelo enquadramento que faz das igrejas da segunda e da terceira ondas. Algumas igrejas da chamada segunda onda (Igreja Evangélica o Brasil para Cristo e Deus é amor) já trazem em si muitos elementos que seriam desenvolvidos posteriormente pelas igrejas da chamada terceira onda. Leonildo Silveira Campos afirma preferir o modelo dualista por ter a vantagem de contrastar fenômenos diferentes

e

utilizar

melhor

os

critérios

teológicos,

históricos,

organizacionais, bem como a origem social dos fiéis.269 Paulo Siepierski também discorda da tipologia proposta por Paul Freston e propõe a seguinte: pentecostalismo clássico (Assembléia de Deus e Congregação Cristã do Brasil); pentecostalismo neoclássico (Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Evangélica o Brasil para Cristo e Deus é amor); pós-pentecostalismo (Igreja Universal do Reino de Deus e Igreja Internacional da graça de Deus).270 Paulo Siepierski pensa que há uma

268 269 270

Op. cit., p. 67-159. Op. cit., p. 29-60. Op. cit.

183

continuidade entre a primeira e a segunda onda do pentecostalismo, mesmo que a ênfase deixe de focar o batismo com o Espírito Santo para ficar sobre a cura divina. Daí a denominação de pentecostalismo clássico e pentecostalismo neoclássico como indicação de que o fenômeno é o mesmo, mas com deslocamento da ênfase teológica. Este autor prefere a denominação pós-pentecostalismo a neopentecostalismo porque reconhece a existência de uma ruptura entre o pentecostalismo da primeira e segunda ondas e o pentecostalismo da terceira onda. Se há significativas diferenças quanto ao fenômeno, então um termo que indica ruptura (pós) deve ser preferido a um termo que represente continuidade (neo). Para Paulo Siepierski, um fato que pode indicar claramente a ruptura do póspentecostalismo em relação ao pentecostalismo clássico e o pentecostalismo neoclássico é a ênfase na escatologia. O pentecostalismo clássico e o pentecostalismo neoclássico são pré-milenaristas, enquanto o póspentecostalismo é pós-milenarista. Este aparente simples deslocamento da ênfase na escatologia seria suficiente para justificar um discurso de prosperidade material (enriquecimento) e espiritual (cura, exorcismo); uma vez que a volta de Cristo não é imediata cabe acumular benefícios para se continuar vivendo aqui na Terra. Paul Freston procura localizar o contexto de cada uma das três ondas do pentecostalismo. A primeira onda tem como contexto fluxos migratórios, a segunda onda tem como contexto São Paulo e a terceira

184

onda o Rio de Janeiro. Estes contextos servem apenas como ponto de partida de desenvolvimento dos movimentos. Se esta perspectiva está correta, então é possível associar o boom pentecostal do meio do século XX em diante com a crescente urbanização do país. O século XX no Brasil é marcado por uma importante inversão populacional. No início do século a maior parte da população seguramente vivia no campo, enquanto uma parte bem pequena nas cidades. A crescente industrialização sobretudo a partir de 1930, foi transformando São Paulo e Rio de Janeiro nas maiores cidades do país e até entre as mais urbanizadas do mundo. É razoável associar o crescimento vertiginoso do pentecostalismo a partir de meados do século à crescente urbanização do país, sobretudo o eixo Rio/São Paulo. As aflições cotidianas causadas pelas grandes cidades, a falta de voz e vez, a frustração das pessoas em relação à falta de emprego e à falta de perspectivas de vida, teriam transformado o pentecostalismo em uma proposta bastante convincente/supridora.271 Ricardo Mariano utiliza uma nomenclatura um pouco diferente das apresentadas acima, mas sua classificação é muito semelhante à que foi proposta acima por Paul Freston. Com base na teoria das três ondas

do

pentecostalismo,

ele

propõe

a

seguinte

classificação:

pentecostalismo clássico, deuteropentecostalismo e neopentecostalismo.272 Outro fato que chama a atenção na abordagem de Ricardo Mariano é a 271 272

Op. cit., p. 67-72. MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo brasileiro, p. 23-49.

185

forma como concebe o neopentecostalismo. Operando com o universo conceptual de Max Weber, o autor constrói um tipo ideal de neopentecostalismo. As novas igrejas pentecostais (neopentecostais), dentre elas a I.U.R.D., são caracterizadas, fundamentalmente, pelos seguintes conceitos e práticas: a “guerra contra o Diabo”, a “teologia da prosperidade” e a “liberalização dos tradicionais usos e costumes de santidade pentecostal”.273 Embora nesta tese eu não tenha escolhido uma classificação a priori da I.U.R.D., penso que a análise de Ricardo é bastante útil à medida que permite perceber que as crenças e os ritos concernentes ao Diabo e seu demônios são de grande relevância para quem estiver pesquisando o pentecostalismo dos dias de hoje. Pelos motivos acima expressos, tenho uma tendência a me aproximar mais de pesquisas como a efetivada por Waldo César274 onde a abordagem do pentecostalismo se dá sem uma classificação prévia. A aproximação do fenômeno vai se dando por sucessivas visitas ao universo cotidiano das pessoas que vivem o pentecostalismo. A pesquisa de Waldo César contempla temas como concepções teológicas, linguagens, espaço de vida, sem necessidade de uma classificação prévia do fenômeno. Como é possível compreender pela análise das tipologias construídas acima, a crença e os ritos concernentes ao Diabo não é uma

273

Ibid., p. 109-223. CÉSAR, W. Vida cotidiana e transcendência no pentecostalismo. In: CÉSAR, W. & SHAULL, R. Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs: promessas e desafios. 274

186

invenção da I.U.R.D. Estas práticas discursivas podem ser observadas ao longo da história do cristianismo, bem como na história do pentecostalismo. Os pentecostais, de um modo geral, acreditam da existência do Diabo, bem como entendem que este pode possuir ou invadir a vida de pessoas, mas a possessão raramente é teatralizada nas igrejas pentecostais tradicionais. Também nestas igrejas os exorcistas normalmente não falam com os demônios, mas apenas se preocupam em expulsá-los da vida das pessoas. Outra característica das igrejas pentecostais tradicionais é o fato de que o exorcismo é um acontecimento mais raro. O Diabo é muito mais a figura de um tentador voraz, que raramente possui os corpos das pessoas. A I.U.R.D. apresenta algumas continuidades em relação ao pentecostalismo de uma forma geral, o que justifica dizer que ainda se trata do mesmo fenômeno: 1) a teologia arminiana dos movimentos avivalistas está presente na fala dos líderes da igreja; 2) a experiência religiosa intermediada pela emoção, característica do pentecostalismo de uma forma geral e que é um herança do metodismo; 3) embora muito mais rara, a experiência do falar em línguas também se faz presente na igreja do Bispo Macedo e 4) uma ênfase bastante significativa da ação de Deus como produtora de cura física, emocional e espiritual. Não há, todavia, apenas continuidades entre a I.U.R.D. e o pentecostalismo de uma forma geral. A igreja do Bispo Macedo tem sido classificada por alguns estudiosos como sendo neopentecostal. Como já foi

187

analisado acima, uma das características do que alguns estudiosos chamam de neopentecostalismo é a ênfase na teologia e na prática da batalha espiritual. Esta é uma marca fundamental da I.U.R.D. e que permite configurar o que há de específico nesta igreja no que concerne ao Diabo. Mais adiante vou procurar esboçar com mais detalhes as práticas discursivas acerca do Diabo na igreja do Bispo Macedo. No momento vou me ocupar em analisar o contexto sócio-histórico em que floresceram e se difundiram as igrejas pentecostais das últimas décadas. A antropóloga Alba Zaluar, especialista em estudos sobre violência no Brasil, afirma que desde os anos 80 do século XX o nosso país tem experimentado um crescente aumento da criminalidade. Mesmo que não existam séries históricas para todas essas quatro últimas décadas e para todas as regiões, estado e cidades, é fato que, desde os anos 80, o Brasil conheceu em quase todos os seus estados e grandes cidades, mas principalmente nas regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Brasília), um novo crescimento da criminalidade e da violência.275

Para a estudiosa da violência não há uma relação direta entre crescimento da violência e o processo de urbanização do Brasil. Aquele deveria ser explicado por uma conjugação de diversos outros fatores. As décadas de 50 a 70 do século passado veriam surgir grandes e médias regiões metropolitanas no interior do país, especialmente no 275

ZALUAR, A. “Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil”. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil 4: contrastes da intimidade contemporânea, p. 269.

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sudeste. Todavia, a partir dos anos 80 há uma mudança de sentido dos fluxos migratórios. O sul passa a ser o principal fornecedor de migrantes, que agora se deslocam sobretudo para o centro-oeste e o norte.276 Como explicar, então, o crescimento da violência de modo a não estabelecer como principal fator a acentuada urbanização? A violência no Brasil tem sido vista, principalmente pelas autoridades políticas e pela mídia, como uma questão diretamente relacionada à falta de policiais na rua. A partir deste discurso, aumentar o policiamento teria como implicação direta a diminuição da violência. Parece-me que a simplicidade deste ponto de vista se deve ao fato de negligenciar fatores de cunho social que estão diretamente ligados à violência. Podemos identificar uma soma de fatores que estão atados à sua expansão nas últimas décadas no Brasil: 1) péssima distribuição de renda no país – o abismo entre ricos e pobres é cada vez maior; 2) difusão de uma cultura de impunidade – quando ladrões de colarinho branco não são devidamente punidos por seus crimes, passam a servir de estímulo para que pessoas de outras camadas sociais passem a imitá-los; 3) não reconhecimento de que toda sociedade deve possuir seus ritos de evasão da violência latente na vida social – quando a agressividade não é extravasada homeopaticamente, corremos o risco de vê-la explodir em situações-limites; 4) formação de poderes paralelos ao poder supostamente legítimo do Estado 276

Ibid, p. 269-270.

189

– uma vez que este não cumpre seus papéis básicos, sua legitimidade passa a ser questionada e substituída por outros poderes, como o dos traficantes; 5) a anomia das sociedades modernas – uma grande massa de cidadãos apenas ascendem socialmente quando passam a militar em estruturas de poder ilegais.277 Parece-me óbvio que as camadas populares acabam sendo sempre as principais vítimas da violência que se difunde em nosso país, todavia esta não é a única. Camadas médias e abastadas estão cada vez mais acuadas em seus condomínios horizontais ou verticais. A tentativa de criar espaços residenciais hom*ogêneos não tem garantido um isolamento do mundo da violência para as pessoas mais privilegiadas do nosso país. Não é por acaso que um dos focos do discurso pentecostal esteja voltado para problemas que afetam a todos os estamentos da sociedade, como é o caso da violência. Em tempos de insegurança pública, o pentecostalismo se apresenta como alternativa simbólico-religiosa para problemas que o Estado não se mostrou ainda competente para solucionar. É neste caldo que Jurandir Freyer Costa chamou de “cultura da sobrevivência” que florescem outras síndromes de nossa patologia social. Como o indivíduo está esmagado por engrenagens sociais que desconhece, surgem para socorrê-lo pastores eletrônicos, magos astrólogos, tarólogos, adivinhos etc. Ao avanço do neopentecostalismo, parcela da Igreja católica replica com a prática dos carismáticos; as pressões de Roma contra a Teologia da Libertação são crescentes. Como não há justiça eficaz nem instituições bem estruturadas, as pendências pessoais e os dramas individuais são expostos 277

Ibid., p. 270-276.

190

e “resolvidos” nos programas “mundo cão”.278

Outro fator fundamental para a expansão e popularização do pentecostalismo contemporâneo, especialmente a I.U.R.D., é a difusão da mídia televisiva no Brasil nas últimas décadas e a conseqüente apropriação pela religião deste recurso. Esther Hamburger afirma que no ano de 1991 71% dos lares brasileiros já tinham televisores. Certamente este número cresceu na última década, o que significa que a quase totalidade das casas brasileiras está conectada às transmissões televisivas.279 O belo trabalho de Esther Hamburger nos chama a atenção para o papel que a televisão de forma geral e as novelas de maneira particular têm desempenhado na construção de identidades sociais: E, de fato, a televisão está implicada na reprodução de representações que perpetuam diversos matizes de desigualdade e discriminação. A super-representação de brancos em relação a negros e mulatos consiste em um exemplo gritante da maneira como, por omissão, os mais diversos programas televisivos contribuíram para a reprodução da discriminação racial. (...) A TV capta, expressa e constantemente atualiza representações de uma comunidade nacional imaginada.280

Poderíamos perguntar, então, que papel a televisão e as telenovelas têm desempenhado na construção e difusão de identidades no Brasil Contemporâneo? A mesma autora citada acima responde de diversas maneiras. 278

MELLO, J. M. C. & NOVAIS, F. A. Op. cit., p. 658. HAMBURGER, E. “Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano”. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil 4: contrastes da intimidade contemporânea, p. 448. 280 Ibid., p. 441. 279

191

Em primeiro lugar, a televisão passa a ocupar um espaço público, ideal para a difusão de discursos que interferem na formação de identidades pessoais, que antes dela era ocupado por governantes, intelectuais, instituições públicas oficiais ou religiosas. Não é por acaso que a I.U.R.D., como uma das igrejas que crescem no país é dona de uma emissora de televisão: A televisão dissemina a propaganda e orienta o consumo que inspira a formação de identidades. Nesse sentido, a televisão, e a telenovela em particular, é emblemática de um novo espaço público, no qual o controle da formação e dos repertórios disponíveis mudou de mãos, deixou de ser monopólio dos intelectuais, políticos e governantes titulares dos postos de comando nas diversas instituições estatais.281

Em segundo lugar, cria “modelos de homem e mulher, de namoro e casamento, de organização familiar”, além de que “amplificam para todo o território nacional as angústias privadas das famílias de classe média urbana do Rio de Janeiro e São Paulo.”282 Ou ainda, em outras palavras: Flertando com o universo proibido do incesto, do prazer, do sexo antes do casamento, livre de filhos e obrigações legais, da separação como saída para casamentos infelizes, com independência financeira para a mulher, com tecnologias reprodutivas, as novelas foram sucessivamente atualizando representações da mulher, das relações amorosas e da família.283

Em terceiro lugar, cria sociabilidades: “Novela é torcida.

281

Ibid., p. 442. Ibid., p. 443. 283 Ibid., p. 472. 282

192

Tão importante quanto o ritual de assistir ao capítulo de todo dia, é a atividade de comentar a história com os vizinhos, os amigos, no trabalho, em casa, com o marido, as empregadas.”284 A I.U.R.D. não apenas tratou de criar um acesso à televisão para se propagar no Brasil e no exterior, mas aprendeu a dramatizar a vida das pessoas ao vivo em seus cultos. Indo a um culto da igreja do Bispo Macedo, as pessoas podem experimentar participar de uma novela global ao encenarem seus dramas sociais nos palcos dos templos previamente preparados. Outro fator preponderante e para se compreender a importância do uso da mídia televisiva por parte das igrejas pentecostais contemporâneas está relacionado às transformações pelas quais o campo religioso brasileiro tem passado. Quanto mais diversificado ou plural, maior se torna a concorrência entre as diferentes expressões religiosas. Aqueles que melhor aprenderem a divulgar seu “produto” são os que mais chances têm de sobreviver neste concorrido mercado. Claro que a televisão tem um papel primordial na difusão de produtos religiosos. Em um texto muito importante sobre a religiosidade brasileira contemporânea, Maria Lucia Montes toma como ponto de partida o evento conhecido como o chute na santa. Um bispo da I.U.R.D. chuta uma imagem de Nossa Senhora na véspera de um feriado nacional devotado 284

Ibid., p. 479.

193

à santa. Este fato viria a desencadear um conflito religioso entre a igreja do Bispo Macedo e o Catolicismo Romano. Os fatos são interpretados da seguinte maneira pela autora supra citada: Qual o significado desses episódios, no panorama religioso brasileiro de meados da década de 90? Sem dúvida, eles indicavam transformações profundas, cujos efeitos só agora emergiram escancaradamente à superfície. Significam, em primeiro lugar, a afirmação de um novo poder do protestantismo no Brasil, de dimensões inéditas em um país tradicionalmente católico. Mas significa também ... uma transformação importante no próprio campo protestante.285

A

autora

ainda

se

pergunta

pelos

sinais

destas

transformações. Sua resposta diagnostica a existência de algo inédito na história do fenômeno religioso brasileiro – a formação de um competitivo mercado de bens religiosos: A evidente ampliação e diversificação do “mercado de bens de salvação”. Igrejas enfim gerenciadas abertamente como verdadeiras empresas. Os modernos meios de comunicação de massa postos a serviço da conquista de almas... Uma maior autonomia reconhecida aos indivíduos que, um passo adiante, seriam julgados em condições de escolher livremente sua própria religião, diante de um mercado em expansão.286

Não tenho dúvidas de que, quanto mais se diversificar o campo religioso brasileiro, maior importância terá a televisão para difusão das igrejas. Dada a quantidade enorme de televisores por habitantes no nosso país, o acesso a milhões de lares através da telinha é a estratégia mais

285

MONTES, M. L. “As figuras do sagrado: entre o público e o privado”. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil 4: contrastes da intimidade contemporânea, p. 68. 286 Ibid., p. 69.

194

eficaz de propaganda, inclusive religiosa.

3.2- Por uma análise das práticas acerca do Diabo na Igreja Universal do Reino de Deus

Como no primeiro capítulo desta tese já fiz um histórico da I.U.R.D., bem como de seu mais famoso líder na atualidade, neste item vou me concentrar na análise de publicações acadêmicas sobre a referida igreja para, depois, analisar como os seus crentes se auto-identificam e que práticas discursivas acerca do Diabo são construídas no interior desta igreja. Penso que utilidade deste enfoque se deve ao fato de ser esta a melhor forma de se apreender o que há de específico acerca da crença no Diabo no âmbito da igreja do Bispo Macedo, principal objetivo de uma genealogia foucaultiana. O pesquisador ou pesquisadora da I.U.R.D. tem à sua disposição alguns trabalhos de cunho acadêmico publicados no Brasil, cada um enfocando aspectos diferentes, com metodologias diferentes e navegando através de um universo de conceitos também muito diverso. Ricardo Mariano é autor de “Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil”, originalmente uma dissertação de Mestrado apresentada na Universidade de São Paulo. Trata-se de um trabalho pioneiro na área e que muito tem contribuído para difundir a

195

palavra neopentecostalismo para designar a expressão pentecostal contemporânea. O texto de Ricardo Mariano não aborda a I.U.R.D. de forma exclusiva, mas a coloca ao lado de outras igrejas que classifica como tendo características semelhantes e que cabem na designação de neopentecostais. A sua pesquisa, mesmo que se insista nos inconvenientes das classificações prévias, é de grande importância por estar embasada em farta pesquisa de campo e dialogar com o universo teórico da sociologia compreensiva de origem weberiana. Esta tese se aproxima da pesquisa de Ricardo Mariano no interesse pela pesquisa de campo, mas se distancia à medida que procura trabalhar com um recorte temático mais delimitado ao se restringir tão somente à I.U.R.D. Também se distingue por ser trabalho de caráter historiográfico e não sociológico, obviamente. A pesquisa de Ricardo Mariano é fundamental porque permite apreender de forma sintética as práticas discursivas da I.U.R.D. O tipo ideal que constrói do que chama neopentecostalismo ajuda em muito a visualizar o que há de mais importante para a liderança e os fiéis da citada igreja: 1) a teologia e a prática da batalha espiritual bastante acirradas; 2) a teologia da prosperidade que instrumentaliza a busca incansável de ascensão social e 3) a teologia que permite fundamentar a prática de despojar-se o que se convencionou chamar de usos e costumes. A pesquisa de Leonildo Silveira Campos, “Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal”,

196

é originalmente uma tese de doutorado apresentado à Universidade Metodista de São Paulo. Trata-se de um texto que aborda a I.U.R.D. de forma exclusiva, embasado também em farta pesquisa de campo, que se identifica como dentro do universo conceitual da sociologia compreensiva, que aceita o conceito de tipo ideal de origem weberiana como útil para o estudo do pentecostalismo.287 O autor coloca o seu foco sobre o aspecto organizacional da igreja dirigida pelo Bispo Macedo procurando apreender este aspecto a partir das três metáforas que aparecem no título da obra. Aborda de passagem a questão do exorcismo e da crença no Diabo e seus demônios na Igreja Universal.288 uma vez que esta não é a questão central de sua pesquisa. No seu trabalho Leonildo Silveira Campos enfatiza a assimilação e a utilização de práticas empresariais no interior da I.U.R.D. Esta igreja é vista pelo autor como uma instituição permeada pelas seguintes práticas: 1) teatralização das aflições de seus fiéis constante e publicamente; 2) construção de uma visão templocêntrica, ou seja, o principal espaço de irrupção de experiência sagrada seria o templo e 3) desenvolvimento de práticas mercadológicas no interior da igreja, no sentido de que há um comércio explícito de bens simbólicos nos cultos. Do ponto de vista temático, o texto mais próximo desta tese é “O Diabo no Reino de Deus: por que proliferam as seitas?” de Margarida 287 288

CAMPOS, L. S. Op. cit., p. 58. Ibid., p. 337-341.

197

Oliva. Originalmente uma dissertação de mestrado apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a pesquisa procura interpretar o exorcismo e a crença no Diabo e seus demônios a partir da teoria do mimetismo religioso de René Girard. A autora realizou trabalho de campo para embasar suas análises, mas faz muito poucas referências ao aspecto empírico ao longo de sua argumentação. O texto da autora vai assumindo um caráter muito mais de uma teoria da origem do fenômeno religioso, no estilo de “As formas elementares da vida religiosa” de Émile Durkheim. Algumas idéias da autora, colocadas de forma muitas vezes apressada, precisam ser problematizadas, como por exemplo a afirmação logo de início de que o fator preponderante para a difusão da I.U.R.D. é o demonismo.289 A própria pesquisa de Leonildo Silveira Campos acima citada pode servir para demonstrar que esta é uma afirmação unilateral por desprezar aspectos como a organização institucional e o marketing como elementos que contribuem para o crescimento da referida igreja. Outra questão que precisa ser problematizada é a insistente interpretação do diabólico na Igreja Universal como sendo manifestação de uma mentalidade primitiva.290 Não acho que a crença no Diabo e seus demônios e o rito do exorcismo sejam expressão de uma mentalidade primitiva e/ou selvagem que se contraponha à racionalidade do mundo 289 290

OLIVA, M. O Diabo no Reino de Deus: por que proliferam as seitas?, p. 15. Ibid., p. 18; 19; 22; 57; 65; 66; 71; 78-79.

198

contemporâneo. Penso que tanto a crença no Diabo e seus demônios, como o rito do exorcismo, são expressões de uma racionalidade que opera com uma lógica diferente da que rege, por exemplo, os valores de pessoas que não fazem parte da igreja dirigida pelo Bispo Macedo Este é o meu caso e, certamente, o das pessoas cujas pesquisas acima mencionei, mas isso não faz as nossas crenças e ações superiores ou mais racionais que as crenças ou ações de um adepto da I.U.R.D. Penso que a alteridade não pode ser categorizada de forma negativa. Embora a temática da dissertação de Margarida Oliva seja muito parecida à desta tese, a forma de abordar, compreender e interpretar a I.U.R.D. em muito se diferencia. Na compreensão da autora, o diabólico é visto como elemento que produz o crescimento da denominação, enquanto que na minha pesquisa procuro abordar o sentido que o diabólico assume nos discursos da liderança e dos fiéis da referida igreja. Na minha forma de compreender, o universo diabólico não é apenas o que explica o crescimento da igreja, mas o que constrói o próprio sentido de pertença à comunidade religiosa. A diabolização do “outro” serve como elemento demarcador de território: o universo diabólico é o universo do “outro” e o universo não diabólico é a I.U.R.D. A referida igreja não apenas diaboliza o outro, mas submete a pessoa que aspira aderir à comunhão dos fiéis a um processo de desdiabolização através do rito de exorcismo. O exorcismo, assim, não é

199

apenas um ritual que está a serviço do crescimento da igreja, mas um ritual que serve como um rito de passagem: o fiel passa de um estado de adesão a outras expressões religiosas e também de aflições para um outro estado, que é o de adesão e pertença à nova comunidade religiosa. Outra pesquisa especificamente sobre a I.U.R.D. é a de Paulo Bonfatti, “A expressão popular do sagrado: uma análise psicoantropológica da Igreja Universal do Reino de Deus”, originalmente uma dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Trata-se de um texto bastante original por ser o autor um psicólogo de formação que procura aprender a colher seus dados para análise utilizando-se de técnicas de inserção de campo da antropologia. A pesquisa é fundamentada em farta pesquisa de campo e o universo conceptual que utiliza para interpretar suas observações procedem da psicologia, especificamente da psicologia analítica de Carl Gustav Jung. O que chama a atenção no trabalho de Paulo Bonfatti é a forma como se propõe a superar os preconceitos que regem muitas das explicações da Igreja Universal. O autor parte do pressuposto de que o sucesso da I.U.R.D. tem uma relação muito profunda com a capacidade desta igreja em responder às demandas que possuem os seus fiéis. O autor pensa que qualquer explicação monolítica em relação ao sucesso da igreja do Bispo Macedo deva ser descartada. Há uma conjugação de fatores que se unem

200

para concretizar o sucesso da denominação.291 A nossa tese procura aproximar-se da forma como Paulo Bonfatti aborda a referida igreja, apesar de estar muito distante de uma interpretação psicológica. Como procurei demonstrar nos capítulos anteriores, utilizo um recorte teórico foucaultiano, portanto alternativo à explicação psicanalítica. Também me distancio da pesquisa de Paulo Bonfatti por ter um recorte temático bastante diferente. Enquanto foco as práticas discursivas acerca do Diabo em perspectiva historiográfica, este é apenas um dos vários aspectos que o referido autor aborda. O meu foco está sobre a construção do Diabo na forma como aparece nos discursos da liderança da igreja e nas suas publicações e também no rito de exorcismo na forma como é vivenciado nos cultos. Estou preocupado com questões sociais como a demonização do “outro” e a construção do sentido de pertença comunitária religiosa, fatos que não estão sob o foco de uma abordagem psicológica. Embora a pesquisa acadêmica procure criar classificações ou utilizar uma determinada nomenclatura para descrever os fenômenos que analisa, é preciso ressaltar que estas nomeações do universo acadêmico nem sempre coincidem com a auto-identificação dos adeptos da própria denominação. A liderança da I.U.R.D. parece procurar imprimir em seus fiéis o sentido de pertença à própria denominação. 291

BONFATTI, P. Op. cit., p. 23.

201

Nas observações de campo que realizei e nas fontes primárias impressas que tive acesso, percebi que as pessoas da igreja não utilizam para se identificar termos como deutero-pentecostal, póspentecostal, neo-pentecostal ou mesmo pentecostal. Estas categorias, embora úteis para uma visão sintética do fenômeno, são externas à denominação, pois são produzidas no meio acadêmico e não coincidem com os termos de auto-identificação de um fiel da igreja. Servem, todavia, para que o estudioso ou estudiosa do pentecostalismo possa perceber que conjunto de práticas são mais freqüentes no interior das igrejas. A pessoa simplesmente pertence à I.U.R.D. e demonstra, através de sua fala, sentir muito orgulho de pertencer a uma igreja que tem a característica de efetivar o que promete, é uma igreja que de fato põe fim às aflições das pessoas. Não pude perceber nas pesquisas de campo ou na literatura produzida pela denominação referências consistentes em relação a qualquer categoria que possa servir como fator identificador do fiel da igreja. As categorias do meio acadêmico se diferenciam muito das expressões que servem para o fiel se auto-identificar. A liderança procura difundir o nome da igreja e o sentido de pertença a ela. Há, todavia, situações em que a igreja é atacada por seus adversários (inimigos que concorrem na mídia, no mercado religioso ou no universo da política) e a simples auto-identificação como I.U.R.D. não é suficiente para fazer frente a inimigos muitas vezes tão poderosos. É momento em que sua liderança passa a buscar uma auto-

202

identificação como um universo religioso mais amplo. É quando os dirigentes da igreja procuram localizá-la em uma categoria mais elástica, como por exemplo, a palavra evangélico. Evangélico é o termo que serve para designar a quase totalidade das igrejas que nasceram do grande movimento de deserção da Igreja Católica a partir do século XVI. Defendo a idéia de que somente quando a liderança da I.U.R.D. se vê atacada por seus adversários ou tem ambições que vão além dos limites de sua denominação, ela procura se inserir em uma categoria que a identifique com um universo mais amplo. A categoria que a liderança procura utilizar nos cultos para construir uma identidade que vai além dos limites da I.U.R.D. mais freqüentemente é a palavra evangélico, embora publicações292 da denominação cheguem a apresentar categorias como protestante, e o estatuto e regimento interno da denominação identifique a I.U.R.D. da seguinte forma: A Igreja Universal do Reino de Deus tem os mesmos princípios doutrinários das demais Igrejas Evangélicas Pentecostais, diferenciando apenas em alguns costumes e dando ênfase a alguns aspectos do ministério do Senhor Jesus Cristo e Seus Apóstolos.293

Os editores do livro do Bispo von Helde, conhecido por ter chutado uma imagem de uma santa do catolicismo romano em um programa televisivo, cujo título é bastante sugestivo, “Um chute na 292 293

HELDE, B. Op. cit. ESTATUTO E REGIMENTO INTERNO, p. 31.

203

idolatria”, justificam a empreitada de seu líder da seguinte forma: “Lucrando com a polêmica, a Igreja Católica Romana aproveitou o episódio para revitalizar os cultos de adoração à Aparecida e aos demais santos, bastante desgastados nos últimos anos, graças ao crescimento dos evangélicos do país”.294 Minhas observações de campo também atestam esta busca de uma identidade maior da I.U.R.D. na tentativa de levar a cabo seus objetivos. Ao final de um culto que assisti, o dirigente justifica da seguinte forma a propaganda política de um candidato a vereador na cidade de Fortaleza, que é pastor da I.U.R.D., conforme registrei em meu diário de campo: O pastor faz um longo discurso. Há um projeto de lei feito por um “padreco” que pretende fazer com que seja tirada uma porcentagem de toda oferta dada nas igrejas. Por isso é preciso falar de política na igreja, por isso é preciso eleger candidatos para defender os interesses dos evangélicos. A política brasileira está cheia de corrupção, se tivesse evangélicos na política, não haveria tanta corrupção. “Vote no Pastor Alexandre, que é o candidato 295 do bispo”.

Os candidatos devem ser eleitos para defender os interesses dos evangélicos. É preciso notar que aqui a categoria de identificação dos fiéis é bastante elástica, aqui a I.U.R.D. é uma igreja no meio de várias outras. Este fato contrasta com o cotidiano da igreja em que a ênfase recai sobre o sentido de pertença à denominação em oposição às demais igrejas. 294 295

HELDE, B. Op. cit., p. 11. DIÁRIO DE CAMPO, Fortaleza, 11 de setembro de 2000, Segunda feira, 10h.

204

Isso porque a I.U.R.D. no seu cotidiano constrói a sua identidade em oposição a outras religiões (umbanda e catolicismo principalmente) e até mesmo em relação ao que denomina de evangélico. Todas as demais expressões religiosas são apenas “religiosidade”, algo vazio e que não apresenta resultados, mas a I.U.R.D. é cristianismo, uma expressão de fé que dá resultados. Neste jogo de identidades a igreja fica entre o ser e o não ser evangélica. Quando é ameaçada por inimigos que julga não poder enfrentar sozinha, define-se como evangélica. Quando não precisa parecer associada às demais igrejas para enfrentar um inimigo comum, constrói sua identidade até mesmo em oposição aos evangélicos, demonizando-os, como o faz em relação às demais denominações religiosas. O rito de exorcismo, neste sentido, é bastante importante, pois constrói o sentido de pertença à igreja. Se todas as demais expressões religiosas são demoníacas, é preciso desdiabolizar as pessoas para que possam passar a fazer parte da “verdadeira” igreja. O rito de exorcismo funciona, então, como rito de passagem que serve para a construção da identidade do fiel da I.U.R.D. Acima procurei demonstrar como a identidade do crente da I.U.R.D. é construída, bem como o papel que o Diabo tem no sentido de instrumentalizar a auto-identificação religiosa. No próximo capítulo desejo me concentrar na análise das fontes primárias com o objetivo de demonstrar como a igreja compreende e fundamenta teologicamente sua crença no

205

inimigo de Deus.

4- O DIABO CHEGA AO REINO DE DEUS NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DO DIABO NA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

Este quarto e último capítulo tem como objetivo fazer um mapeamento do campo religioso brasileiro, com vistas a localizar, numa constelação de pronunciamentos, o que há de específico no discurso sobre o Diabo da I.U.R.D. Este é o ponto para o qual todos os dados apresentados nos capítulos anteriores culmina. Se o trabalho dos capítulos anteriores foi de preparar o terreno, agora vou me ocupar em fazer uma genealogia do discurso sobre o Tentador na igreja do Bispo Macedo de forma propriamente dita. Algumas perguntas irão nortear esta análise genealógica: Como está configurado discursivamente o campo religioso brasileiro na atualidade? Quais são os embates que a I.U.R.D. enfrenta no interior deste campo? Como as práticas discursivas sobre o Diabo instrumentalizam estes embates?

206

4.1- O campo religioso brasileiro e os embates discursivos da Igreja Universal do Reino de Deus Tomo como ponto de partida alguns dados quantitativos sobre o campo religioso brasileiro nos seus últimos trinta anos. Alguns acontecimentos chamam bastante a atenção: 1) a diminuição na casa de quase 20% do número de católicos romanos; 2) a triplicação da porcentagem de evangélicos em geral; 3) o aumento avassalador das pessoas que se auto-identificam como sem religião e 4 ) o fato de os pentecostais ocuparem a posição de dois terços do total de evangélicos.296 Anos

Sem População Católicos Evangélicos Evangélicos Evangélicos Outras total religiões religião de missão pentecostai s

1970

93.470.306

91,8%

_____

_____

5,2%

2,5%

0,8%

1980

119.009.778

89,0%

3,4%

3,2%

6,6%

3,1%

1,6%

1991

146.814.061

83,3%

3,0%

6,0%

9,0%

3,6%

4,7%

2001

169.870.803

73,9%

5,0%

10,6%

15,6%

3,2%

7,4%

O quadro acima demonstra que o campo religioso brasileiro apresenta uma forte tendência para a diversificação. A hegemonia do catolicismo romano começa a ser ameaçada de forma séria, principalmente se o número de adeptos continuar a decrescer no ritmo das três últimas décadas. Quase na mesma proporção que diminui a porcentagem de 296

JACOB, C. R. et ali, op. cit., p. 34.

207

católicos, aumenta a quantidade de evangélicos de uma forma geral. Os responsáveis por este alavancamento do grupo são os pentecostais, o que significa dizer que, na atualidade, para cada três evangélicos do Brasil, dois são pentecostais. Os sem religião têm crescido bastante também. Há algumas hipóteses a serem consideradas: 1) teria aumentado de fato o seu número; algumas pessoas teriam sido católicas, frustraram-se com sua religião de origem e se tornaram evangélicas; estas igrejas, que se colocavam como uma ótima alternativa ao catolicismo, não puderam satisfazer os desejos dos novos adeptos, gerando frustração e o encaminhamento para a alternativa de passar a viver sem uma relação institucional com o Sagrado; 2) como nosso país é, na atualidade, mais plural e as opções mais livres, as pessoas que não tinham uma relação com o sobrenatural perderam a vergonha de se auto-identificar

desta

“desencantamento”

forma;

com

o

3)

está

sagrado;

havendo alguns

um

ventos

processo

de

secularizantes

começaram a soprar por estas terras também e 4) os sem religião poderiam ser enquadrados entre os sem vínculo institucional, mas permaneceriam pessoas com fé; o Brasil começaria a estar sendo influenciado por uma religiosidade de tipo nova era, onde a experiência religiosa é vivida no âmbito da vida privada. Embora se possa falar com justiça em diminuição do domínio católico romano, não se pode dizer que todos os grupos religiosos

208

têm conseguido se multiplicar com a mesma facilidade dos pentecostais. A umbanda e o candomblé apresentam cifras que demonstram estar em um estado de quase estagnação numérica. O mesmo se pode dizer dos protestantes tradicionais, que quase não contribuem para o acelerado crescimento dos evangélicos de uma forma geral. Penso que o campo religioso brasileiro atual, com base nos dados estatísticos acima apresentados, pode ser sintetizado da seguinte maneira: 1) perda crescente do domínio do catolicismo romano; 2) estabilização de expressões religiosas tradicionais como o protestantismo histórico, a umbanda e o candomblé; 3) crescimento expressivo dos evangélicos em geral, tendo como responsável as denominações pentecostais e 4) crescimento dos sem religião, seja por desistência de ter a religião como categoria construtora de sentido para a vida, seja por um processo de privatização do sagrado. Para aprofundar um pouco mais a análise sobre o grupo religioso, que é o foco desta tese, outro quadro pode nos ajudar. Interessante é notar que, se a cada três evangélicos, dois são pentecostais, um em cada pentecostal é assembleiano.297 Denominações pentecostais

297

Porcentagem do universo pentecostal

Assembléia de Deus

47,7%

Congregação Cristã do Brasil

14,04%

Igreja Universal do Reino de Deus

11,85%

Ibid., p. 44.

209

Denominações pentecostais

Porcentagem do universo pentecostal

Evangelho Quadrangular

7,44%

Deus é Amor

4,37%

Maranata

1,56%

O Brasil para Cristo

0,99%

Casa da Bênção

0,73%

Nova Vida

0,52%

Para chegar ao posto de maior igreja evangélica brasileira, a Assembléia de Deus precisou de várias décadas. O que chama atenção é o fato de a I.U.R.D. já aparecer como a terceira maior força pentecostal, mesmo sendo uma das igrejas mais novas do nosso país. A denominação dirigida pelo Bispo Macedo nos dias de hoje, em termos numéricos, só perde para as duas igrejas que são quase centenárias. Sua porcentagem está em vias de ultrapassar a igreja pentecostal mais antiga do Brasil, a Congregação Cristã do Brasil. Com a diversidade religiosa no Brasil, tem também se difundido uma grande soma de discursos e práticas acerca do Diabo. A racionalização do mundo da vida nas sociedades modernas tem feito com que discursos e práticas que deitam raízes em tempos antigos convivam com outros fundamentados ou apropriados pela perspectiva científica. Gostaria de apresentar, a seguir, um quadro com uma síntese desta diversidade de práticas e discursos para, depois, analisá-los de forma extensiva.

210

Formação discursiva científica

Formação discursiva religiosa

O Diabo não é um ser, mas uma realidade O Diabo possui realidade ontológica: construída pelos seres humanos: 1) Ser pessoal que age principalmente através 1) Projeção do aspecto sombrio da da tentação moral e do erro doutrinário, que personalidade humana (psicologia) raramente possui as pessoas (protestantismo tradicional) 2) Psicopatologias que produzem a convulsão 2) Ser pessoal que age principalmente através de corpos (psiquiatria) da tentação moral e que possui menos 3) Projeção dos males estruturais (sociologia) raramente as pessoas (pentecostalismo clássico) 4) Conjunto de representações pertencentes ao 3) Um ser impessoal manifesto nas estruturas imaginário cultural (antropologia) injustas da sociedade (catolicismo e protestantismo de libertação) 4) Ser pessoal que age principalmente através da possessão e é o responsável por todo tipo de desgraça (pentecostalismo contemporâneo ou neopentecostalismo)

Penso que os critérios utilizados na elaboração deste quadro ficarão evidentes à medida que eu puder analisá-lo de forma detalhada. Isto será feito ao longo deste capítulo. Grande é o desejo que possuo de me deter na análise da formação discursiva acima descrita como científica, mas não posso fazê-lo por um motivo simples: demandaria realizar um trabalho extenso e impossível de ser compatibilizado como o foco central desta tese. Precisaria de muito tempo para pesquisar em fontes primárias cada um dos discursos científicos sobre Satã. Minha alternativa será apenas indicar que tenho consciência da importância das categorias de cunho científico para a explicação do mal, mas focarei somente os discursos religiosos sobre o assunto. Usarei a estratégia de caracterizar cada um dos discursos religiosos sobre o Diabo no Brasil contemporâneo através de fontes

211

primárias. Ao fazer isso, poderei descrever e analisar os embates discursivos dos concorrentes

da I.U.R.D. Também me permitirá

caracterizar melhor a explicação iurdiana para o mal, foco do próximo subítem deste capítulo.

4.1.1- O discurso sobre o Diabo no protestantismo tradicional

O que estou chamando de protestantismo tradicional envolve uma gama muito ampla de igrejas: batista, presbiteriana, congregacional, metodista, para ficar só nas mais conhecidas. Este grupo de denominações está muito longe de abrigar conceitos e práticas comuns. Todavia, há um documento que, provavelmente, identifica os conceitos acerca dos quais a maior parte dos protestantes tradicionais concorda. Vou partir do pronunciamento do Pacto de Lausanne sobre o mal para adentrar no debate. O Congresso Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne, aconteceu entre 16 e 25 de julho de 1974, na Suíça. Contou com a participação de cerca de 2.7000 pessoas de mais de 150 países. O produto final de alguns dias de reuniões (preparadas anteriormente por documentos que circularam) foi o “Pacto de Lausanne”, um documento representativo da visão teológica dos protestantes tradicionais.

212

De especial interesse para esta tese é o parágrafo 12 do pacto, que aborda o tema do conflito espiritual: Cremos que estamos empenhados num permanente conflito espiritual com os os principados e potestades do mal, que querem destruir a igreja e frustrar a sua tarefa de evangelização mundial. Sabemos da necessidade de nos revestirmos da armadura de Deus e combater essa batalha com as armas espirituais da verdade e da oração. Pois percebemos a atividade de nosso inimigo, não somente nas falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela, em falsos evangelhos que torcem as Escrituras e colocam o homem no lugar de Deus. Precisamos tanto de vigilância como de discernimento para salvaguardar o evangelho bíblico. Reconhecemos que nós mesmos não somos imunes ao mundanismo, quer de pensamento ou de ação, isto é, não somos imunes ao perigo de capitularmos ao secularismo. Por exemplo, embora tendo à nossa disposição pesquisas bem preparadas, valiosas, sobre o crescimento da igreja, tanto no sentido numérico como espiritual, às vezes não as temos utilizado. Por outro lado, por vezes tem acontecido que, na ânsia de conseguir resultados para o evangelho, temos comprometido a nossa mensagem, temos estado excessivamente preocupados com as estatísticas e até mesmo as utilizado de forma desonesta. Tudo isso é mundanismo. A Igreja tem de estar no mundo; o mundo não tem que estar na Igreja.298

É interessante a concepção de mal apresentada no pacto. Assume uma posição bastante tradicional ao afirmar a existência e a pessoalidade do mal, mas identifica seus modos de ação como estando ligados à produção de ideologias fora das igrejas cristãs, tanto quanto dentro destas através da distorção de um suposto verdadeiro evangelho. O principal

modo

de

ação

do

Adversário

consiste

em

distorcer

doutrinariamente a integridade da palavra de Deus. Esta afirmação está em sintonia com o principal valor do protestantismo tradicional: correção ou 298

ALIANÇA BÍBLICA UNIVERSITÁRIA, Pacto de Lausanne comentado por John Stott, p. 72.

213

expressão racionalmente adequada de conceitos doutrinários. Seu avesso é a imprecisão, logo, o modo privilegiado de ação do Inimigo de Deus. Neste mesmo sentido vão os comentários sobre o pacto feitos por John Stott. Não se trata de um simples comentarista, mas de um verdadeiro ícone da modalidade de protestantismo aqui analisada, além de ter sido um dos mais influentes participantes do congresso; também colaborou na elaboração do documento final. Depois dessa introdução geral ao conflito espiritual e às armas espirituais, o parágrafo desce a particularidades. Ele ousa declarar que estamos aptos a perceber a atividade do nosso inimigo. Embora ele próprio seja invisível, sua tática não é, e assim “não lhe ignoramos os desígnios” (2Co 2:11). Sabemos, pelas Escrituras, quais as armas por ele usadas em seu ataque à igreja primitiva e sabemos, pela história, bem como por experiência, que os seus métodos não mudaram. As três principais armas da sua armadura ainda são o erro, o mundanismo e a perseguição.299

Claro que o intérprete está falando de erro doutrinário, aquele causado por um processo de distorção das Sagradas Escrituras do cristisnismo e que conduz à “falsa” teologia. Mundanismo é descrito como o ato das igrejas cristãs e seus fiéis se tornarem permeáveis aos valores seculares do mundo contemporâneo, como o de valorizar o número de adeptos do cristianismo em detrimento de sua qualidade de vida. A outra forma de ação de Satã é a instigação da intolerância religiosa, impedindo que os cristãos se expressem ou cultuem com liberdade.300 299 300

Ibid., p. 74. Ibid., p. 74-77.

214

Outro comentador do parágrafo 12 do Pacto de Lausanne é Júlio Paulo T. Zabatiero. Trata-se de um teólogo presbiteriano independente e professor em uma escola teológica luterana no sul do país. Para este autor, houve no Brasil uma onda no meio evangélico marcada pelo que chama de “batalhismo espiritual”, uma supervalorização do tema do conflito espiritual. Esta moda já estaria sendo superada na atualidade, mas, de qualquer modo, se caracterizou por uma visão equivocada de mundo marcada

por

um

exagerado

dualismo/espiritualismo.

Esta

visão

dual/sobrenaturalista poderia ser definitivamente superada a partir de uma dose adequada de educação cristã associada à educação teológica.301 Na breve análise do parágrafo 12 do Pacto, não há nenhuma menção do Diabo como personificação do mal, mas o modo de combater o erro do “batalhismo” é colocar-se diante de um processo racional de estudo e reflexão. Ainda é preciso ressaltar que este discurso já deixa transparecer, ainda que sutilmente, um tom polêmico com a explicação pentecostal contemporânea que analisaremos mais adiante, caracterizada por uma visão bastante acirrada da guerra espiritual. Um outro documento importante para a nossa análise é o livro de Russel Shedd, um biblista americano, residente no Brasil há muitos anos, pastor batista e muito conhecido no meio evangélico. O próprio título de seu livro já sugere a direção que seu conceito de mal vai tomar. “O 301

ZABATIERO, J. P. T. “Os desafios do Pacto de Lausanne para a igreja hoje”. In: KOHL, M. & BARRO, A. C. Missão integral transformadora, p. 33-37.

215

mundo, a carne e o Diabo” é um opúsculo com 10 pequenos capítulos: 1) mundo: criação e Inimigo; 2) o mundo e o século; 3) o mundo: a rede que nos prende; 4) a carne; 5) as marcas da carne; 6) como lutar para vencer a carne; 7) Satanás: o Inimigo destruidor do cristão; 8) as estratégias satânicas; 9) o ataque e a defesa do cristão e 10) conclusão: o mundo, a carne e o Diabo.302 Como se pode ver, os três primeiros capítulos são dedicados à análise do mundo, os três seguintes à carne e os finais ao Príncipe dos demônios. O décimo capítulo é uma conclusão sintética de sua visão sobre o mal. Em suma, o Diabo não é o único adversário que o ser humano tem que enfrentar, ao seu lado estão o mundo e a carne. Para Shedd, o mal possui uma forma personificada, por ele designada de Satanás, mas este de Deus atua nas fraquezas humanas, denominada de carne, assim como no mundo. Esta tríade – mundo, carne e Diabo – seria a responsável pelas lutas que as pessoas enfrentam. Há um inimigo interno do indivíduo, seus desejos egoístas, sua inclinação para o mal, um outro externo, contextual, social, o mundo no qual habitamos e está corrompido estruturalmente pelo pecado e, por fim, um terceiro, que é o nosso personagem maldito. Este último age através da tentação/sedução, procurando potencializar a maldade inerente à humanidade e ao mundo criado. “Não fosse a carne, Satanás teria pouquíssima possibilidade de 302

SHEDD, R. O mundo, a carne e o Diabo.

216

tentar a humanidade e mantê-la sob o seu senhorio”.303 Em um outro parágrafo do livro o autor coloca em destaque sua concepção personificada do Inimigo de Deus. Também está evidente a relação polêmica do discurso a que está sujeito com concepções científicas ou mesmo religiosas que negam a existência ou pessoalidade do Diabo: Ainda que o homem moderno tenha banido do seu pensamento o Diábolos das Escrituras e muitos teólogos tenham transferido o Demônio para a mitologia, é inegável o fato de que a Bíblia afirma a sua existência. O objetivo deste capítulo é conhecer melhor nosso adversário e buscar estratégias escriturísticas para vencê-lo.304

Para o pensador protestante, Satã é um ser sobrenatural, personificado e que exerce comando sobre uma corja de adeptos muito fiéis: Satanás é um espírito pessoal e invisível. Não é onipresente como Deus. Sua atuação depende dos seus súditos que têm o nome de potestadades (Ef 2.2). O termo grego (exousia) foi usado por Paulo, em Romanos 13:1, para identificar as autoridades humanas do império romano. Esses governantes mantinham o poder de Roma e sustentavam o trono do imperador reinante. Concluímos que o poder do diabo é mantido pelo seu exército de demônios, que recebem suas ordens do pináculo da hierarquia infernal.305

O Diabo possui as seguintes estratégias de atuação: 1) ignorância e cegueira; 2) engano, ilusão e valores invertidos; 3) a armadilha das Escrituras torcidas e 4) as ciladas dos prodígios, do poder e da

303

Ibid., p. 70. Ibid., p. 84. 305 Ibid., p. 93. 304

217

prosperidade.306 Se anteriormente o ataque foi desferido contra os que menosprezam a existência de Belzebu, agora o alvo de Shedd é aqueles que pregam o evangelho da vida regalada, a exemplo do que fazem os liderados do Bispo Macedo. Mas o que chama a atenção na visão de Shedd é o silêncio sobre a possessão. As estratégias de ação do Pai da mentira são sempre de caráter racional: distorção da sã doutrina, criação de valores deformados, produção de um evangelho impuro, mas não a posse direta da vida das pessoas. Se Satã tem seus modos de atacar os cristãos, Deus teria provido seus filhos e filhas de muitas armas de defesa: 1) amarrar o maligno; 2) não dar lugar ao Diabo; 3) reivindicar a união com Cristo e 4) vestir a armadura de Deus.307 Não está prevista a expulsão de demônios ou um confronto direto com o Príncipe das Trevas. Mesmo a primeira arma de defesa que menciona, “amarrar o maligno” consiste em uma forma de resistência mediante a busca de uma vida em uma comunhão profunda com o Espírito Santo de Deus. A última fonte documental que vou considerar neste subítem é outro tratado global sobre o mal. Seu autor é o teólogo Augustus Nicodemus Lopes, pastor presbiteriano e professor de exegese bíblica. Seu livro, “O que você precisa saber sobre batalha espiritual”, é um manual bastante didático, composto de doze capítulos: 1) nós estamos em guerra; 2) 306 307

Ibid., p. 97-106. Ibid., p. 107-120.

218

origem e difusão do movimento de batalha espiritual; 3) os principais ensinos do movimento de batalha espiritual; 4) o que nos preocupa na batalha espiritual; 5) a vitória de Cristo e sua implicações; 6) batalha espiritual como resistência; 7) batalha espiritual como proclamação; 8) o erro religioso; 9) Paulo e Satanás; 10) a armadura para o dia mau; 11) objetos que trazem bênção e maldição e 12) coisas sacrificadas a demônios. O motivo que teria levado Lopes a escrever um tratado sobre batalha espiritual, um assunto quase interdito no meio presbiteriano, é a rápida difusão do tema no campo religioso cristão contemporâneo: O fato é que o movimento de “Batalha Espiritual” tem produzido o surgimento de novas igrejas (e mesmo denominações) cujo ministério principal é a expulsão de demônios e a “libertação” de crentes e descrentes da opressão demoníaca em todos os níveis (espiritual, moral e físico, bem como geográfico, estrutural e social). Mas não somente isso – as idéias e práticas difundidas pelo movimento têm se infiltrado nas igrejas históricas, cativando muito de seus pastores, oficiais e membros.308

O tom polêmico e apologético, discreto nas primeiras páginas do livro, ganhará contornos muito explícitos em diversos capítulos. A preocupação do pensador presbiteriano é típica de um líder religioso que atua no interior de um campo diversificado, onde conceitos e práticas de um dado fenômeno religioso circulam em universos sociais que lhe seriam estranhos em uma situação menos plural. Para delimitar espaços e marcar posições é que escreve o seu tratado sobre demonologia.

308

LOPES, A. N. O que você precisa saber sobre batalha espiritual, p. 10.

219

A perspectiva do teólogo é explícita e pode ser localizada logo no primeiro capítulo: Existem alguns perigos relacionados com tudo isso que acabo de mencionar. Em primeiro lugar, existe a tendência perigosa, que já toma conta de muitos, hoje, de ver o diabo em todo lugar, de atribuir a ele e aos seus agentes mais do que é devido, de dar-lhe crédito por mais do que ele é realmente responsável. (...) Em segundo lugar, há o perigo de reagirmos radicalmente a esse primeiro perigo e nos lançarmos no erro oposto, e igualmente perigoso, que é desprezarmos e subestimarmos o mundo espiritual tenebroso.309

A sua fala é bastante evidente. Ele está tomando uma posição contra o discurso pentecostal contemporâneo, que tende a identificar o Diabo como o agente de todos os males que afetam a humanidade, tanto quanto contra o discurso católico ou protestante de libertação, que tende a despersonificar o Príncipe das trevas e conceber o mal como uma realidade estritamente social. Eu diria que aqui está demarcada uma visão típica do protestantismo tradicional, cuja principal característica é a crença na pessoalidade do Inimigo de Deus, ao mesmo tempo em que entende ser a possessão um fenômeno muito raro. O posicionamento contrário ao cristianismo de libertação será menos evidente no livro, mas a contestação dos conceitos e práticas das igrejas carismáticas e pentecostais contemporâneas, adeptas da teologia da batalha espiritual, será o tempo todo evidenciada: A doutrina mais fundamental da batalha espiritual é de que todos os males que acometem as pessoas, a sociedade, a 309

Ibid., p. 25.

220

Igreja e os cristãos individualmente, são produzidos diretamente por demônios, os quais se instalam na vida de crentes ou descrentes e nas estruturas sociais, políticas e econômicas de determinadas regiões geográficas.310

Além contestar o conceito de que os demônios agem de forma indiscriminada, Lopes mostra-se muito preocupado com as conseqüências práticas desta crença: Conseqüentemente, em sua ação pastoral, missionária e evangelística, a Igreja deve sempre empregar o método da expulsão de demônios para libertar as pessoas e a sociedade desses males. O que está por trás dos ministérios de libertação individual é a crença de que “os demônios do pecado residem dentro do coração humano”.311

A principal restrição de Lopes aos ensinamentos do movimento de batalha espiritual é a capacidade dos espíritos imundos poderem possuir as pessoas de forma indiscriminada, tanto crentes como descrentes: Pessoalmente acredito que é possível hoje um descrente ser de tal forma oprimido e atacado por Satanás ao ponto de ocorrer a possessão. Questiono, porém, à luz das Escrituras, que os testemunhos de expulsões de demônios de “crentes” sejam casos reais de “demonização” de 312 verdadeiros crentes.

Se o conceito teológico está equivocado, então qualquer ação dele decorrente também estará. Para o pastor presbiteriano, os demônios não podem agir de forma aleatória, tratando de igual forma crentes e descrentes, logo a prática de expelir espíritos malignos de tudo e 310

Ibid., p. 37. Ibid., p. 37-38. 312 Ibid., p. 94. 311

221

de todos deve ser combatida. Se o exorcismo não é a arma privilegiada de combate ao Adversário e seus subalternos, quais são as ações decorrentes de sua visão do mal? Ao comentar um texto bíblico em que o apóstolo Paulo teria escrito a um de seus discípulos, Lopes declara quais atitudes devemos tomar no combate ao Príncipe das trevas: Meu ponto é que Paulo, ao dar instruções a Timóteo sobre a batalha que é o ministério cristão, não lhe prescreve estratégias, mas recomenda-lhe duas atitudes que lhe trariam a vitória: 1) Manter a fé enraizada no ensino bíblico. 2) Ter uma vida reta e santa, em que a consciência nada tenha de que o acusar.313

Reflexão diligente sobre as Escrituras Sagradas e retidão moral são os principais meios para resistir à ação demoníaca. Aqui está muito bem caracterizado a posição ocupada pelo discurso protestante tradicional. As possessões poderão existir, mas serão raras e restritas aos não-crentes. Além disso, há que se cuidar para não confundir invasão satânica com doenças mentais, demonstrando também alguns pontos de contato deste discurso com as explicações provenientes da formação discursiva científica: À luz destas observações acredito que pastores e presbíteros, devidamente ordenados e em pleno exercício de suas atividades, poderão, em se deparando com pessoas genuinamente endemoninhadas, orar pela libertação da pessoa e, em nome de Jesus, ordenar que os espíritos malignos se retirem de suas vidas. Mas isto, não sem antes averiguarem cuidadosamente se a causa real para o comportamento bizarro da pessoa supostamente 313

Ibid., p. 116.

222

endemoninhada é de fato a atuação de espíritos malignos.314

O cuidado para não estar cometendo o erro de expulsar um suposto demônio onde ele não poderia estar, faz com que a situação seja em absoluto rara ou inviável. Acaba por sobrar para o Inimigo de Deus agir apenas a partir da distorção doutrinária. Em função disso, a única forma de combate às trevas será a de estudar e conhecer profundamente a reta doutrina. 4.1.2- O discurso sobre o Diabo no pentecostalismo clássico

Em sintonia com as tipologia que analisei em capítulo anterior, estou denominando de pentecostalismo clássico todas as expressões do fenômeno, exceto sua forma institucional contemporânea, que alguns estudiosos têm chamado de neopentecostalismo, a exemplo do que faz o sociólogo Ricardo Mariano. Para caracterizar este discurso, vou trabalhar com textos provenientes de duas denominações: a Assembléia de Deus e a Igreja do Evangelho Quadrangular. O primeiro documento que analisarei é o “Estatuto da Igreja do Evangelho Quadrangular”, em sua última edição, realizada no ano de 2000. Trata-se de um documento oficial da instituição, criado com o intuito de reger a vida cotidiana de suas igrejas locais. O texto possui um 314

Ibid., p. 129.

223

breve histórico da corporação eclesiástica, seguido de um esboço dos principais conceitos doutrinários e acaba por desembocar em uma série de orientações de caráter burocrático. Para a

nossa análise, tomaremos o

trecho sobre os posicionamentos teológicos da denominação. O título II do documento, “Dos princípios basilares”, aborda dos seguintes temas: as Sagradas Escrituras, a divindade eterna, a queda do homem, o plano de redenção, salvação pela graça, arrependimento e aceitação, o novo nascimento, vida cristã diária, batismo, santa ceia, consagração de crianças, o batismo no Espírito Santo, a vida cheia do Espírito Santo, os dons do Espírito, o fruto do Espírito, moderação, cura divina, a segunda vinda de Cristo, relações para com a igreja, governo, o céu, o inferno, evangelismo e dízimos e ofertas. Como se pode notar, não há nenhuma referência mais explícita sobre a natureza do Diabo e seus demônios ou sobre a prática do exorcismo. No item que aborda a queda do ser humano, há uma referência muito rápida ao Inimigo: Cremos que o homem foi criado à imagem de Deus, diante de quem Ele andava em santidade e pureza mas que, por voluntária desobediência e transgressão, caiu da pureza e da inocência do Éden às profundezas do pecado e iniquidade, e que, em conseqüência disso, toda a humanidade é constituída de pecadores vendidos a Satanás – pecadores por escolha, caracterizados pela iniquidade e inteiramente desprovidos, por natureza, daquela santidade exigida pela lei de Deus, decididamente inclinados para o mal, culpados sem justificativa, justamente merecendo a condenação de um Deus justo e santo.315 315

ESTATUTO DA IGREJA DO EVANGELHO QUADRANGULAR, p. 32.

224

O que o texto apresenta é uma visão em profunda sintonia com as doutrinas clássicas do cristianismo acerca do pecado. O ser humano foi criado por Deus como alguém bom, mas se corrompeu por sua cobiça. A conseqüência imediata da desobediência do gênero humano foi a sua queda, com a posterior expulsão do paraíso. A transgressão também teve como adendo o fato de as pessoas passarem a viver de forma submissa à vontade ao Adversário de Deus. Assim como no dia da derrocada, o Inimigo continua a submeter as vidas aos seus caprichos. Há somente mais uma passagem que menciona o mundo das trevas, o sub-item que aborda o inferno: Cremos que o inferno é um lugar de trevas exteriores e da mais profunda tristeza, onde o verme não morre e o fogo não se apaga; um lugar preparado para o Diabo e seus anjos, onde haverá choro, pranto e ranger de dentes, lugar de amargura por parte daqueles que rejeitaram a misericórdia, o amor e a ternura do Salvador crucificado, escolhendo a morte em vez da vida; e que ali, em um lago que queima com fogo e enxofre serão lançados os descrentes, os abomináveis, os criminosos, os feiticeiros, os idólatras, os mentirosos, e os que rejeitaram e desprezaram o amor e o sacrifício de um Redentor banhado em sangue, deixando atrás a cruz para sua perdição, apesar de toda instância e advertência do Espírito Santo.316

Também este texto apresenta uma forte sintonia com as doutrinas tradicionais para quase todas as igrejas cristãs. Talvez alguns discordem da doutrina das penas eternas – a concepção de que haverá um eterno sofrimento dos incrédulos no inferno – mas é fato que o cristãos, de 316

Ibid., p. 49.

225

forma geral, partilham a visão de que haverá um juízo final, quando os fiéis herdarão o céus e os descrentes serão julgados e enviados para o inferno. Também chama a atenção o destaque dado para o inferno como espaço geográfico para onde irão penar o Diabo e seus seguidores espirituais e terrenos. O mesmo destino do Pai da mentira será dado aos seus subalternos sobrenaturais e aos infiéis: a danação eterna no inferno. Não há nenhuma menção à teologia da batalha espiritual, tampouco à prática do exorcismo. Pode-se subentender que se resiste ao Inimigo de Deus através de uma vida de fidelidade ao Pai Eterno e procurando ser santo ou separado dos prazeres do mundo. Outra fonte que vale a pena analisar é a Bíblia de Estudo Pentecostal317, editada pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus, órgão oficial da denominação pentecostal pioneira no Brasil. Nas últimas décadas têm se difundido no Brasil grande quantidade de textos bíblicos acompanhados de anotações doutrinárias que visam esclarecer ou direcionar a leitura. Trata-se de um fato muito importante para o mercado editorial de Bíblias no nosso país, além de um acontecimento digno de ser investigado pelos historiadores e historiadoras da leitura. A Bíblia de Estudo Pentecostal possui abundantes notas explicativas próximas aos textos originais, além de alguns estudos de cunho doutrinário que dão concretude ao discurso pentecostal tradicional. Os 317

STAMPS, D. C. (Ed.). Bíblia de estudo pentecostal: Antigo e Novo Testamento.

226

editores e autores são teólogos da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, dando às notas e aos estudo um caráter de teologia oficial da denominação. Vou começar a análise por um pequeno estudo sobre os anjos.318 Estes são mensageiros de Deus, podem ser bons ou maus, embora todos tenham sido criados por Deus como seres bons. Como os seres humanos, são dotados de liberdade, por isso alguns participaram da rebelião de Satã. Os demônios são anjos caídos, seguidores de um outro ser celestial rebelde, que se transformou de Anjo de luz em Príncipe das trevas. Esta é uma visão em harmonia com a maior parte dos cristãos. Há um outro estudo muito importante sobre “Poder de Satanás e os demônios”.319 Esta análise doutrinária não se limita a estabelecer a natureza dos anjos caídos, mas aborda o modo como agem e o que devemos fazer para combatê-los. Vejamos, sinteticamente, algumas considerações: 1) o Novo Testamento fornece vários exemplos de pessoas sendo oprimidas ou influenciadas pelo Diabo; 2) os demônios são seres espirituais dotados de inteligência, submissos ao seu maioral, Satã, e se caracterizam por sua personalidade maligna; 3) os anjos caídos são os instigadores da idolatria ou adoração a falsos deuses; 4) o mundo está distante de Deus e dominado pelo Pai da mentira; 5) os demônios podem possuir pessoas incrédulas; 6) os agentes personificados do mal podem ser os causadores de enfermidades; 7) o envolvimento com espiritismo ou 318 319

Ibid., p. 386-387. Ibid., p. 1466-1467.

227

magia leva facilmente à possessão demoníaca e 8) os seguidores do adversário chegaram em um nível de atividade muito alto nestes que são os últimos dias. O destaque para os dados acima é a declarada crença na possessão, que deixa de ser tão rara como o é no caso do discurso anterior. Mostra, todavia, alguma proximidade com aquele ao enfatizar que os crentes não podem ficar possessos: As Escrituras ensinam que nenhum verdadeiro crente, em quem habita o Espírito Santo, pode ficar endemoninhado; i.e.: o Espírito e os demônios nunca poderão habitar no mesmo corpo. (...) Os demônios podem, no entanto, influenciar os pensamentos, emoções e atos dos crentes que não obedecem aos ditames do Espírito Santo.320

Penso que esta é uma citação crucial porque marca um distanciamento

do

protestantismo

tradicional,

ao

declarar

mais

explicitamente o risco de possessão para os descrentes, ao mesmo tempo em que o distancia de posicionamentos do pentecostalismo contemporâneo, que pensa que a invasão demoníaca pode atingir a qualquer pessoa de forma indiscriminada. Esta faceta polêmica contra o discurso de igrejas, como a do Bispo Macedo, que pensam que o Diabo tem autonomia para invadir a vida de qualquer pessoa a qualquer instante, ficará mais evidente no próximo documento que vou analisar. Trata-se de um manual de teologia sistemática escrito em perspectiva pentecostal. A obra é original do Estados 320

Ibid., p. 1467.

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Unidos, tendo sido traduzida no Brasil pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus. O editor do livro é um experiente professor de teologia da mesma igreja na América do Norte. O livro é um volume extenso de 808 páginas que procura abordar todos os grandes temas da teologia sistemática desde uma visão pentecostal clássica.321 A obra possui dezoito capítulos: 1) panorama histórico; 2) fundamentos teológicos; 3) a palavra inspirada de Deus; 4) o Deus único e verdadeiro; 5) a Santíssima Trindade; 6) seres espirituais criados; 7) a criação do universo e da humanidade; 8) origem, natureza e conseqüências do pecado; 9) o Senhor Jesus Cristo; 10) a obra salvífica de Cristo; 11) o Espírito Santo; 12) o Espírito Santo e a santificação; 13) o batismo no Espírito Santo; 14) os dons espirituais; 15) a cura divina; 16) a igreja do Novo Testamento; 17) a missão da igreja e 18) as últimas coisas. O capítulo que trata da demonologia é o sexto, por isso será o único a ser analisado a seguir.322 A visão que o autor tem do mal pode ser perfeitamente harmonizada com o que disse no terceiro capítulo desta tese: a perspectiva cristã tradicional do mal tem oscilado entre o monismo e o dualismo: Conforme já foi observado, esse dualismo seria uma contradição contra o que as Escrituras sustentam a respeito da soberania absoluta de Deus. (...) Esse monismo seria uma contradição daquilo que já foi notado a respeito da posição genuína entre as forças das trevas e o amor do 321 322

HORTON, S. M. (Org.), Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal. Ibid., p. 189-222.

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Senhor soberano e seus propósitos para a redenção da humanidade.323

A partir deste ponto de vista é possível perceber que a visão do autor vai se encaminhar para algo intermediário entre o monismo, que pode desembocar no desprezo das ações demoníacas, e o dualismo, que quase sempre leva a uma supervalorização do poder do Adversário de Deus. O teólogo assembleiano está disposto também a admitir que o Tentador atua a partir de falhas humanas, não sendo, desse modo, o único causador do mal: É certo que Satanás é o tentador (1Ts 3.5), mas cada um é tentado “quando atraído e engodado pela sua própria concupisciência” (Tg 1.14). Satanás é mentiroso (Jo 8.44), o acusador (Ap12.10), o ladrão, e o assassino (Jo 10.10). Não pode, porém, levar a efeito nenhum ato desse tipo sem a participação (e até mesmo a iniciativa) humana.324

Fica claro que o objetivo desta observação sobre a responsabilidade humana é estabelecer um fundamento para criticar a perspectiva acerca do mal do discurso pentecostal contemporâneo. Não ousamos declarar que todos os problemas são demoníacos, nem queremos defender a ilusão de que todos eles possam ser resolvidos mediante a expulsão de demônios. Além disso, muitos dos sintomas dos descritos na Bíblia como demoníacos formam um paralelo com sintomas que, hoje em dia, têm sido isolados como patológicos e humanos.325

Para um pentecostal clássico é fácil admitir estar diante de um caso de possessão demoníaca que exija o ato de exorcismo, mas isso 323 324 325

Ibid., p. 209. Ibid., p. 211. Ibid., p. 212.

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não o faz simpático para com o modo de agir das igrejas das três últimas décadas que tendem a explicar toda maldade como de origem satânica. Infelizmente, nos movimentos pentecostais e carismáticos, os ministérios de guerra espiritual e de libertação abundam, dedicando atenção deliberada ao âmbito do demonismo. Muitos defensores de semelhantes ministérios vão nitidamente além do lugar legítimo que a mensagem bíblica atribui ao demonismo. Parece que nesses ministérios há certo fascínio com o âmbito dos demônios, e o resultado é que muito mais atenção é prestada a eles do que a Bíblia pode apoiar.326

O golpe fatal contra a supervalorização da ação demoníaca é desferido quando o autor do texto se coloca contrariamente à possibilidade de crentes verdadeiros virem a estar possuídos por espíritos imundos: Em semelhante contexto, a demonologia recebe glória e relevância teológica muito além dos limites estabelecidos pela Bíblia. Nessa visão, acredita-se que o horizonte do mundo cristão esteja cheio de ataques de demônios. A forma grotesca dessa crença acha-se na suposição de que os demônios podem possuir e dominar cristãos desobedientes.327

A crítica à maxi-demonização do mundo e a descrença na possibilidade de um crente em Jesus poder ficar possesso, aproximam esta fala da que discutimos anteriormente no âmbito do protestantismo tradicional.

4.1.3- O Diabo no catolicismo e no protestantismo de Libertação 326 327

Ibid., p. 215. Ibid., p. 216.

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Há uma categoria muito importante no cristianismo contemporâneo de viés progressista que lhe permite fazer uma crítica à visão tradicional do mal como uma realidade personificada (o Diabo é a expressão por excelência do mal) e individualista (o pecado é fruto da desobediência pessoal de pessoas ou seres angelicais). Os teólogos e teólogas da libertação têm dado uma contribuição original à história da doutrina cristã ao construírem a concepção de pecado estrutural. Vou analisar alguns autores no intuito de descrever melhor a formação do conceito para demonstrar de que maneira ele insere seus adeptos em uma polêmica discursiva com outras expressões teológicas e práticas do cristianismo. Para a construção do conceito de pecado estrutural seria interessante fazer também uma análise do pensamento dos teólogos evangelicais.328 Eles são antecessores muito importante dos cristãos ligados à teologia da libertação na América Latina. D. Bloesch fornece alguns dados muito importantes em seu livro chamado “Essência da Teologia Evangelical”.329 Vou dar destaque ao capítulo que trata da “total depravação”, que é o que interessa para a reflexão aqui realizada. Na essência da teologia evangelical, noto a existência de 328

Na Europa e Estados Unidos são designados de evangelicais os teólogos e teólogas protestantes que são adeptos de uma visão progressista da política e da economia, embora, na maior parte das vezes, não percam a sintonia com doutrinas clássicas do cristianismo. 329 BLOESCH, D. G. Essentials of evangelical theology, v.1.

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uma doutrina do pecado muito próxima dos moldes da reforma protestante. Este movimento parece caminhar dentro da perspectiva reformada, seguindo especialmente os rastros de Calvino. Todavia, pelas próprias condições do desenvolvimento da teologia, tanto quanto pelas ciências humanas, a teologia evangelical traz uma reflexão mais ampla acerca das conseqüências e manifestações do pecado na vida humana. Reflexão que não se restringe à verificação do pecado individual, mas que alcança as conseqüências deste à coletividade. D. Bloesch pensa que, para Lutero, o ser humano perdeu a natureza dada por Deus: “Pecado representa uma corrupção da natureza essencial” de tal modo que é agora “completamente pecador e perverso”.330 Assim sendo, podemos perceber que Deus não é o autor do mal, pois cria o ser humano com uma natureza boa, mas esta é corrompida pela sua própria existência. Para o citado autor, pecado não é uma necessidade natural, embora seja uma inevitabilidade histórica.331 Mas o pecado, embora uma realidade que afeta indivíduos, não se restringe a estes. A total depravação é algo que afeta a todos, indistintamente. O referido teólogo evangelical observa que, na perspectiva bíblica, a total depravação pode ser pensada a partir de quatro sentidos. O último sentido que analisa é o de que a total depravação “abrange a idéia de corrupção universal da raça humana, apesar de que alguns povos e culturas 330 331

Ibid., p. 94. Ibid., p. 106.

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manifestam esta corrupção muito menos que outras”.332 Este pensador vai além e cita elementos concretos que expressam a manifestação do pecado interior do indivíduo, como racismo, sexismo, classismo e nacionalismo. Estas formas de preconceito são justamente vistas como manifestações coletivas do pecado interior. Embora não negue o pecado individual, interior, D. Bloesch mostra que este se manifesta na coletividade através de atitudes verificáveis de maneira concreta por qualquer pessoa. Ainda é preciso que se aprofunde um pouco mais na questão da manifestação coletiva do pecado individual, da depravação da natureza humana. O trabalho de D. Bloesch é muito importante para que se estabeleça as bases do conceito de pecado para os evangelicais. No que tange a uma análise conjuntural, o trabalho dirigido por R. J. Sider “Rumo a uma teologia da Transformação Social” parece ser muito mais consistente. Vou-me reportar de forma mais restrita aos textos escritos por V. Samuel e C. Sugden que fazem parte desta coletânea.333 Para os dois autores, a transformação da sociedade só pode ser atingida quando houver uma luta contra o mal, que está profundamente enraizado em indivíduos e também nas estruturas sociais.334 Interessante e fundamental é a análise que fazem das Escrituras: No Antigo Testamento Deus agia no meio do seu povo e das nações através de dois agentes – a justiça e a 332

Ibid., p. 90. SAMUEL, V. & SUGDEN, C. “Theology of development: a guide to the debate, toward a theology of social change”. In: SIDER, R. J. Toward a theology of social change. 334 Ibid., p. 25. 333

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promessa. A justiça foi dada ao povo que herdou a promessa de Deus a Abraão. A justiça definiu expectativas de Deus com relação a seu povo no estabelecimento de justos e humanos relacionamentos na sociedade. A justiça é destinada a evitar estruturas de exploração e opressão ao pobre, para dar proteção e alívio ao pobre e vulnerável.335

A promessa de Deus traz em si o compromisso, tanto do ser humano para com Deus, como desse para com seu próximo. O pacto entre pessoas que amam a Deus garante a perpetuação da justiça e esta pode evitar que as estruturas de exploração e de opressão instalem-se. As criaturas divinas têm sua natureza corrompida, por isso, a injustiça se manifesta, através da criação de estruturas pecaminosas. Com a plena consciência da total depravação humana, e de que esta leva o ser humano a criar estruturas pecaminosas, os teólogos evangelicais se tornam capazes de perceber o sentido do clamor dos que são afetados por tal realidade. Eles percebem que o pecado, embora individual, manifesta-se socialmente através da criação de estruturas opressoras. Os teólogos evangelicais compreendem que, sendo o pecado um mal enraizado nas estruturas, urge uma transformação social. Em função disso, compreendem os questionamentos dos cristãos do Terceiro Mundo, pois eles estão levantando um clamor e pedem que os líderes dos países ricos os apóie: “Eles estão perguntando se a teologia ocidental preserva o status quo e se isso é adequado ou bíblico. Eles estão buscando uma teologia da mudança social que não somente alivie os 335

Ibid., p. 54.

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sintomas de sua pobreza mas lute contra suas causas nas estruturas sociais”.336 Outra fonte importante para pensarmos a construção do conceito de pecado e mal como realidades estruturais provém de concílios católicos. Medellín e Puebla são dois concílios católicos. O primeiro aconteceu no ano de 1968 e o segundo em 1979. Medellín é o nome da cidade-sede localizada na Colômbia, tendo sido a segunda conferência geral do episcopado latino-americano. Puebla, também nome da cidade que sediou o evento, desta vez realizado no México, foi a terceira conferência do episcopado latino-americano. Pode-se dizer que a importância dos respectivos concílios reside no fato de expressarem uma transformação no labor teológico que, aos poucos, foi-se espalhando pela América Latina. Mais especificamente, Medellín, pela época em que se realizou, está em sintonia com o nascimento da teologia da libertação. Puebla, mesmo que não marque esse momento onde emerge um novo saber teológico, vai dar continuidade às reflexões de Medellín, conforme podermos perceber ao observar os documentos dos concílios. Assim, muitas das perspectivas de Medellín são ratificadas por Puebla, além de ampliar e criar novos horizontes. Não é pequena a contribuição que os citados concílios prestam à elaboração do conceito de pecado e mal estrutural, justificando, 336

Ibid., p. 42.

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assim, a análise de alguns de seus trechos. As decisões destes concílios partem da necessidade de se elaborar uma mudança radical acerca da teologia na América Latina. O inverso também é verdadeiro, as decisões destes vão fundamentar a reflexão de muitos teólogos e teólogas na América Latina, onde o conceito de mal estrutural vai aparecer elaborado de maneira mais clara. Forma-se, assim, uma espécie de um “ciclo” entre as decisões de Medellín e Puebla e a reflexão teológica na América Latina. Medellín aconteceu em um momento muito conflituoso, de onde também brota uma reflexão teológica muito fecunda. A década de 60 foi muito conturbada política e economicamente no nosso continente. Muitos movimentos de cunho revolucionário tomaram conta da América Latina. Uma visão revolucionária começou a eclodir na América Latina e o cristianismo precisou reelaborar seu discurso. Alguns cristãos começam a assumir o “partido” da revolução. Diante da possibilidade de mudanças sociais mais rápidas e radicais, fato que punha em perigo a preservação da ordem na América Latina, o papa Paulo VI realiza sua primeira visita ao continente. Quando chega à América em 1968, seus discursos foram dirigidos contra as expressões progressistas de maneira esmagadora. As conclusões finais de Medellín constituem uma resposta dos bispos latinoamericanos ao papa.337 O subdesenvolvimento latino-americano, que tem em cada 337

GOTAY, S. S. O pensamento cristão revolucionário, p. 53-54..

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país suas respectivas especificidades, é interpretado pelos pensadores do continente como sendo fruto da injustiça. Por sua vez, esta é gerada por uma situação de pecado.338 A pobreza não é reconhecida como simplesmente natural, mas é identificada também como fruto do mal existente entre as pessoas. Esta viria a ser analisada sob três aspectos, o primeiro deles merece destaque para a presente reflexão: “A pobreza como carência dos bens deste mundo é um mal em si. Os profetas a denunciam como contrária à vontade do Senhor e, muitas vezes, como fruto da injustiça e pecado dos homens.339 Os bispos fazem questão de afirmar que os profetas são os que analisavam estes contextos. Já nos tempos do Antigo Testamento, há registros acerca da injustiça como fruto do pecado humano. Para a cosmovisão vétero-testamentária, pecar era quebrar a aliança com Deus, fato que exigia o compromisso para com Ele e para com o próximo. Grande foi a perspicácia dos bispos latino-americanos ao afirmar que a injustiça era fruto do afastamento de Deus que levava à criação de estruturas que viriam a destruir a vida das pessoas. A pobreza, presença da morte na vida da maioria da população latino-americana, é, então, vista como fruto de uma estrutura pecaminosa. Percebendo que a privação sócio-econômica é oriunda da

338

CELAM. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio (Medellín), p. 56. 339 Ibid., p. 146.

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injustiça, e que esta é conseqüência do pecado humano, a igreja precisa também mudar suas perspectivas de ação. Não basta apenas contemplar a pobreza. As teorias que a explicam como um acontecimento natural são ineficientes e não dão conta de explicar a realidade. Por isso, a liderança religiosa precisa fazer-se pobre, isto é, identificar-se com aqueles que vivem na marginalidade. “Neste contexto uma Igreja pobre: denuncia a carência injusta dos bens deste mundo e o pecado que a engendra.”340 As teses de Medellín teriam continuidade em Puebla. O texto do próprio concílio traz em suas conclusões expressões que demonstram tal fato, conforme analisa Gustavo Gutiérrez: “Esta continuidade aparece não só em declarações expressas, mas sobretudo no modo de tratar alguns temas centrais”.341 O crescimento das diferenças sociais, cada vez mais acentuado, entre ricos e pobres é visto, à luz da fé, como um escândalo. A riqueza que se fundamenta no empobrecimento das massas populares é tida como contrária ao plano do Criador. “Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado, cuja gravidade é tanto maior quanto se dá em países que se dizem católicos e que têm a capacidade de mudar”.342 A situação agrava-se mais ainda quando a igreja vai-se tornando conivente com esta situação e não faz nada para mudar os fatos. 340

Ibid., p. 146. GUTIÉRREZ, G. Pobres e libertação em Puebla, p. 9. 342 CELAM. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio (Medellín), p. 69. 341

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Deve-se ser empática para com os que sofrem e não se pode ser pactuar com o pecado das estruturas. Mais adiante, os bispos latino-americanos vão falar, explicitamente, das dimensões individuais e sociais do pecado: “As angústias e as frustrações, se as considerarmos à luz da fé, têm por causa o pecado, cujas dimensões pessoais e sociais são muito amplas”.343 Verificando a amplitude do pecado, que não se restringe ao indivíduo, mas que afeta a sociedade, os bispos latino-americanos parecem estar conscientes das dificuldades para se evangelizar. O pecado presente nas estruturas estabelece-se como obstáculos à divulgação do Reino de Deus e seus valores. A realização histórica desse serviço evangelizador será sempre árdua e dramática, porque o pecado, força de ruptura, há de impedir constantemente o crescimento do amor e a comunhão tanto a partir do coração dos homens, como a partir das diversas estruturas por eles criadas, nas quais o pecado de seus autores imprimiu sua marca 344 destruidora.

Além de demonstrar as dificuldades para a divulgação do Reino de Deus, a citação acima demonstra o porquê da existência de estruturas opressoras: o ser humano é pecador. Por ser assim, tudo o que faz traz as marcas de sua maldade. As estruturas são construídas, historicamente, pelo ser humano, logo, também trazem em si a marca do mal, logo, as estruturas são pecaminosas. Tendo verificado que o pecado não se restringe à dimensão 343 344

Ibid., p. 76. Ibid., p. 117.

240

pessoal, mas que é também social, a conclusão a que chegam é a de propor uma nova forma de evangelização. Urge uma evangelização libertadora: “Como pastores da América Latina, temos razões gravíssimas para urgir a evangelização libertadora, não só porque é necessário recordar o pecado individual e social, mas também porque, de Medellín para cá, a situação se agravou na maioria de nossos países”.345 G. Gutiérrez, teólogo peruano, é um dos precursores da teologia latino-americana. Sua contribuição para esta é de fundamental importância, pois sua reflexão ganha força em um momento de ruptura com a teologia tradicional européia. Começou a surgir uma “nova” forma de se fazer teologia mais adequada ao contexto latino-americano e o teólogo pioneiro é um desses importantes expoentes nesse processo de transformação. Gutiérrez redescobre que salvação e criação são termos intercambiáveis na tradição bíblica, na qual espírito e matéria constituem uma unidade que se dá na única história que existe. (...) Demonstra que no Antigo Testamento nada existe que possa ser considerado uma separação entre criação (na história) e salvação (fora dela).346

Eu diria que há um processo de sociologização da salvação. Há um rompimento com o transcendentalismo que impedia que se observasse os problemas do nosso continente. A partir do momento em que se dimensiona contextualmente a salvação, passa a fazer sentido falar de 345 346

Ibid., p. 162. GOTAY, S. S. Op. cit., p. 89.

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uma situação social de pecado. “Com a historicização da salvação tem sentido falar de uma situação social de pecado com significado histórico. Gutiérrez o examina como fato social e histórico: ausência de fraternidade, de amor nas relações entre os homens”.347 É interessante notar que o pecado deixa de ser compreendido como um mal metafísico, passando a ser compreendido de maneira menos abstrata. Para G. Gutiérrez, este ocorre em situações bem específicas: “O pecado é alienação fundamental que, por isso mesmo, não pode ser alcançada em si mesma, mas ocorre unicamente em situações históricas concretas, em alienações particulares”.348 A situação de pobreza na América Latina não é simples fato econômico, mas uma questão de justiça, de amor, portanto, uma exigência ética. O Reino de Deus, conseqüentemente, é exigência da justiça e do amor. O referido pensador assinala que há uma violência institucionalizada, um sistema social construído e consolidado sobre a morte do pobre e isso para que poucos desfrutem da riqueza. Assinala que Medellín e Puebla denunciam a pobreza como resultado da ordem social vigente. Há um conflito estrutural. A riqueza de alguns se faz às custas da pobreza de outros: Esses fatores configuram o que foi qualificado por Medellín e Puebla como uma “situação de pecado” ou como “pecado

347

Ibid. p. 91. GUTIÉRREZ, G. "Evangelho e práxis de libertação". In: V.V.A.A. Fé cristã e transformação social na América Latina, p. 216. 348

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social”.349 Este teólogo da libertação rompe, definitivamente, com a noção de mal como uma realidade intimista, e, logo, a redenção passa a ser vista como não estando restrita à dimensão espiritual, sendo preciso questionar a ordem social que se apresenta. “Estamos muito mais diante do pecado como fato social, histórico, carência de fraternidade e ruptura de amizade com Deus e, como conseqüência, cisão interior e pessoal. O pecado prolifera em estruturas opressoras, na dominação e no espólio de povos, raças e classes sociais”.350 Outro importante pensador do continente é o teólogo da libertação E. Dussel. Sua perspectiva do assunto é analisada da seguinte maneira por um outro estudioso do campo religioso: Dussel parte da relação fundamental entre países dominantes e países dependentes para exprimir o fato de que esta situação internacional que afirma a existência humana a partir dessa injusta relação de dominação, que determina a concepção de uma totalidade (na realidade parcial) vista desde a perspectiva dos países imperialistas, constitui o pecado hoje.351

Nota-se,

claramente,

dois

pontos

fundamentais

na

construção do conceito de pecado no pensamento do teólogo argentino. O primeiro aspecto é que este é constituído a partir do conflito dominadordominado. O segundo, é que esse conflito é compreendido dentro de uma perspectiva ética, que deve ser de cunho comunitário e não individualista. 349

Ibid., p. 129. Ibid., p. 130. 351 GOTAY, S. S. Op. cit., p. 93-94. 350

243

É possível notar que o conceito de mal no escritor supra citado respeita às conclusões de Puebla, que teria fornecido bases muito importantes para a sua compreensão do assunto. “O pecado em Puebla, diversamente que em outras épocas, não se situa essencialmente no nível da sexualidade, do horizonte prático, mas sim a sua maior gravidade se situa no nível histórico, estrutural, econômico”.352 Nosso teólogo assinala que o pecado em Puebla vai receber um tratamento mais detalhado do que vinha tendo anteriormente. Este viria rompendo os limites da individualidade por excelência, para ser notado como algo presente na sociedade, enfim nas estruturas. Dussel destaca que a felicidade (a realização, a santidade, o Reino) é as pessoas estarem vivendo face-a-face, entre si e com Deus. Por outro lado, o mal será a interrupção, a ruptura, aquilo que impede que as pessoas estejam face-a-face.353 Ou ainda, o mal se constitui na negação do outro (matar, roubar, humilhar, desonrar, violar). “Isto é o pecado: a destituição do outro como pessoa, a alienação (alienum: diferente, vendido, destruído) de alguém em algo: coisificação, instrumentalização”.354 Em termos muito próximos ao que se verifica na teologia bíblica, pecar contra Deus é o ato de se dominar ao próximo. O pecador é aquele que nega o outro, nega a Deus, totalizando-se. Ao totalizar-se como

352

V.V.A.A, A economia internacional na visão da moral cristã, p. 144. DUSSEL, E. Ética comunitária, p. 28. 354 Ibid., p. 29. 353

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Deus, feitichiza-se, diviniza-se. Isso é considerado idolatria. O pecador é aquele que afirma não haver outro deus além de si mesmo, negando, ao mesmo tempo, o “outro”.355 Assim sendo, o pecado não é um ato individual, mas diz respeito à relação de um ser humano para com outro; também está relacionado à dominação dentro da relação estabelecida entre pessoas: “Quem aceita a tentação do mal, na práxis da dominação do outro, do próximo, significa que o instrumentalizou para seus fins ou aceitou ser instrumentalizado por ele. De qualquer maneira esse pecado assim descrito, esta falta, não é, em última análise, individual, abstrata. Na realidade sempre está em relação com outros.”356 A instituição ou estrutura não é algo que existe por si só, mas é um modo de indivíduos se comportarem “de maneira estável e relacionada”. Dussel compreende que o indivíduo é o fundamento da instituição, assim o mal não se restringe à dominação de indivíduos sobre indivíduos, pois há o pecado social (institucionalizado) quando um grupo domina pessoas, ou outro grupo de pessoas: Se uma pessoa (ou grupo de pessoas) domina estável ou historicamente outra pessoa (ou grupo de pessoas) como os encomendeiros sobre os índios, o proprietário do capital sobre os assalariados, o homem sobre a mulher no machismo, etc. – podemos dizer que esta práxis de dominação, falta ou pecado é institucional, social.357

É muito importante a compreensão do referido autor da 355

Ibid., p. 30. Ibid., p. 31. 357 Ibid. p. 32. 356

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tradicional doutrina do pecado original. Dussel coloca o “nosso ser” em uma dimensão que não se restringe à corporalidade material. Para ele “nosso ser” mais radical é social. O ser humano já nasce com um corpo determinado pela genética, em uma dada cultura, pertence a certa família, com estes ou aqueles valores. Além disso herda, finalmente, determinadas formas de relações sócio-econômicas. O indivíduo vem a um mundo que já possui determinadas estruturas. Não pode optar por não nascer em uma estrutura não-pecaminosa. O indivíduo herda relações que podem estar submersas no mal, e isso independe de sua vontade. Nisso se constitui o pecado original, hereditário: “Ao nos situar num dos termos da relação social do pecado (como indivíduo, como membro da família, de proprietário ou despossuído, como cidadão) herdamos uma práxis que nos constitui relativa e originariamente”.358 Outro representante da teologia latino-americana é O. Costas, líder muito influente sobre mundo evangélico brasileiro progresssista e que participou

do “II Congresso Latino-americano de

Evangelização” onde proferiu uma palestra que tem o seguinte título: “Pecado e Salvação na América Latina”. Passo a analisá-la a seguir. Já no início de sua palestra, Costas fornece informações muito preciosas para se compreender o pecado: “Na Bíblia, o pecado não é um tema especulativo, e sim relacional. Manifesta-se nas relações entre o 358

Ibid., p. 33.

246

homem e Deus, o homem e seu próximo e o homem e seu meio ambiente.”359 O elemento central envolvida na questão do mal é seu caráter relacional e por isso não se pode tratá-la de maneira especulativa. A maldade é algo que se manifesta em uma relação, seja com Deus, com o próximo, ou com a natureza. O referido teólogo protestante vai enfocar vários outros aspectos do pecado. Compreende que este pode manifestar-se de três formas: como desobediência, como injustiça e como idolatria.360 Mas esses conceitos não são genéricos, mas ações cometidas por pessoas, sendo uma realidade pessoal universal. O próprio O. Costas explica o sentido de sua afirmação: “O pessoal do pecado não quer dizer, no entanto, que suas conseqüências se limitem ao pessoal. Porque no pensamento bíblico o pessoal nunca é individualista, isolado dos outros. Ao contrário, o pessoal está intrinsecamente vinculado ao coletivo”.361 O nosso autor ressalta que as estruturas também desobedecem a Deus, atuando injustamente, sendo o mal uma realidade também estrutural. Por sua vez este também afeta às pessoas. Estabelece-se, assim, uma “tensão dialética” entre o pecado pessoal e o social: “Assim como o pecado pessoal repercute na coletividade, assim também o pecado

359

V.V.A.A. América Latina y la evangelizacion en los años 80 (CLADE II), p. 271. Ibid., p. 271-274. 361 Ibid., p. 274. 360

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social afeta às pessoas”.362 O conceito de pecado de Costas é muito coerente com o que tem de salvação. Já que o pecado não é uma realidade meramente pessoal, mas que atinge a sociedade, a salvação também não o pode ser, pois desse modo deixaria intacto o mal social. Costas demonstra ser conhecedor do histórico de dominação sobre a América Latina. Diz que o continente foi engendrado no contexto de estruturas permeadas pela maldade, isso porque a presença ibérica no continente começou com a conquista e a dominação dos “povos aborígenes”.363 Fala também dos dominadores portugueses, ingleses e norte-americanos. Afirma que “sabemos que no fundo de toda esta situação está a perversidade da pessoa humana: a desobediência, a injustiça e a incredulidade”.364 Ele não acredita que o povo latino-americano seja incrédulo, mas que o continente foi engendrado no pecado e, portanto, apresenta-se saturado da mensagem do Salvador. Assinala, todavia, que o rosto de Cristo aparece como que desfigurado, devido à injustiça e à opressão.365 A teologia da libertação exerceu uma forte influência em alguns setores do catolicismo e do protestantismo brasileiro nos anos 70, 80 e 90. Se não conseguiu se popularizar e se tornar um discurso construtor de sentido para as camadas populares de uma forma mais generalizada, ainda 362

Ibid., p. 276. Ibid., p. 282. 364 Ibid., p. 283. 365 Ibid., p. 284. 363

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exerce fascínio em muitas escolas teológicas. Um exemplo disso é a tese de doutoramento do sacerdote católico Irineu J. Rabuske, escrita e defendida nas instalações da Escola Superior de Teologia, instituição luterana no Sul do Brasil. A tese foi publicada366 e está composta de quatro capítulos: 1) possessão e exorcismo: fenomenologia e interpretações; 2) exegese do texto (Mc 3,20-30); 3) Jesus amarra o forte: desdobramento do programa de Jesus em Marcos e 4) amarrar o forte: atualidade de uma missão. Os dois capítulos intermediários colocam seu foco em questões de exegese bíblica bastante técnicas, mas o primeiro e último abrem debates muito interessantes sobre a visão do autor acerca do mal e da prática do exorcismo. Chamou-me a atenção o fato de ser uma tese de doutorado em teologia, escrita por um padre que empreende a análise de um texto sagrado sobre um tema profundamente religioso, mas utiliza um critério interpretativo sócio-político. O modo como vai analisar os exorcismos de Jesus está muito bem expressa no parágrafo a seguir: A partir disso, propomos em nosso trabalho um passo adiante: as causas não devem ser procuradas só no indivíduo que não se integra, mas na própria sociedade que, em razão de suas contradições, é também geradora desses comportamentos extraordinários, os quais a tradição religiosa sempre identificou com a possessão demoníaca. Essa interpretação sociopolítica constitui um passo necessário e complementar para as tentativas anteriores, sem querer suplantá-las.367

366 367

RABUSKE, I. J. Jesus exorcista: estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. Ibid., p. 73.

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No último capítulo retoma a sua perspectiva e explica a abordagem que fará. A possessão é um modo das pessoas das camadas populares expressarem indignação contra a opressão social a que são submetidas. Como não podem fazê-lo de outras formas, manifestam suas frustrações através de categorias religiosas, uma vez que o Novo Testamento está cheio de exemplos bastante sugestivos de invasão demoníaca. Assim sendo, os casos de possessão não se restringem à esfera do indivíduo. Ao contrário, ela é uma das formas de as pessoas reagirem à opressão, principalmente observável nas camadas mais baixas da população. Estamos assim diante de algo que é expressão da interação entre o indivíduo e o sistema sociopolítico e econômico.368

A sua visão do assunto assume um tom declaradamente polêmico contra o discurso sobre o mal da igreja dirigida pelo Bispo Macedo. Nas igrejas e movimentos pentecostais existe a tendência de identificar tudo que é estranho e diferente com o mundo de Satanás. Um caso típico dessa forma de pregação é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que sem operar nenhum esforço de distinção, coloca sob o mesmo rótulo, com igual peso, drogas, violência, problemas conjugais, problemas financeiros, falta de emprego e, por fim, hom*ossexualismo e prática de cultos afro-brasileiros. Quem estiver envolvido numa dessas esferas, é convidado e instado a participar do culto de exorcismo. Com a abjuração dessas obras de Satanás, acena-se com a promessa de uma vida nova, cheia de sucesso e prosperidade, sem nenhuma consideração para com a situação sociopolítica da pessoa. Semelhante pregação tem como efeito a manutenção das pessoas no nível da consciência ingênua. Em geral, como se pode 368

Ibid., p. 309.

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observar, o pentecostalismo é politicamente aliado ao status quo, com pronunciada aversão pelas corrente políticas de esquerda, o que ajuda a compreender a lógica da sua pregação.369

A fala do biblista católico ilustra bem o quanto sua compreensão do mal se distancia do discurso da Igreja Universal. A sua chave de leitura bíblica libertadora o faz entender que há uma visão “alienada” dos iurdianos acerca da possessão e do exorcismo, ao mesmo tempo que só pode enxergar propósito em um rito dimensionando-o politicamente. O mal é o que oprime e o bem é o que liberta. 4.1.4- O discurso sobre o Diabo no pentecostalismo contemporâneo

Uma grande influência sobre o pentecostalismo brasileiro dos dias atuais é a médica, escritora e exorcista americana Rebecca Brown. Selecionei uma amostragem de seu pensamento para que possamos compreender bem algumas questões que já foram levantadas anteriormente, como quando abordei a relação polêmica do discurso protestante tradicional com este que daqui em diante passo a analisar. Um dos problemas anteriormente colocados por Lopes acerca dos adeptos da teologia da batalha espiritual era a possibilidade de um cristão vir a estar possesso. Seu livro “Prepare-se para a guerra” está estruturado em dezessete capítulos. Para que se possa ter uma noção dos temas abordados 369

Ibid., p. 317.

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pela escritora, bem como do contexto em que extraio algumas citações, passo a enumerá-los: 1) saia da cidade; 2) fazendo alianças com Deus; 3) um ano de lutas; 4) permanecendo inabalável; 5) o princípio da sabedoria; 6) fogo; 7) escutando Deus; 8) oração; 9) demônios em cristãos; 10) portas de entrada; 11) um engano; 12) provando os espíritos nas igrejas cristãs; 13) desmascarando os ensinos da nova era e a evangelização de seus seguidores; 14) o abuso de crianças em seus rituais; 15) o homem de ânimo dobre; 16) o Espírito e o mundo espiritual e 17) Libertação.370 Vou começar com o tema da presença de demônios na vida de cristãos. Para a autora o assunto é polêmico e delicado, mas deve ser analisado: Devemos abordar de forma direta a questão de demônios habitando em cristãos. Eu sei que é um tema de acaloradas discussões. Eu mesma costumava pensar que cristãos – crentes verdadeiros – não podiam ter um demônio habitando em si. Assim pensava até que Deus chamou-me para este ministério.371

A sua conclusão é a de que um crente pode ficar possesso, como se pode perceber em um trecho um pouco mais adiante: “Eu não consigo conter o riso quando alguém piedosamente me diz: – Um cristão não pode ser habitado por um demônio porque ele é o templo do Espírito Santo e os dois não podem estar na mesma casa ao mesmo tempo”.372 A explicação para a possibilidade de um cristão ficar 370 371 372

BROWN, R, Prepare-se para a guerra. Ibid., p. 139. Ibid., p. 142.

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possesso é simples. As pessoas possuem uma barreira de proteção contra os demônios que pode ser quebrada: Normalmente os cristãos estão cercados por muros de proteção, de forma que os demônios não podem entrar. Não-crentes também estão protegidos até um certo limite, pelo fato de o Senhor não permitir que os demônios não violem o livre arbítrio deles. Assim, em ambos os casos uma abertura no muro protetor precisa ser feita para que os demônios possam entrar em uma pessoa e habitar no seu corpo.373

A questão passa a ser: como os demônios quebram a barreira de proteção existente na vida das pessoas, de uma forma geral, e na dos cristãos, de forma especial? Através de brechas abertas por atos pecaminosos. “O pecado abre uma brecha na parede protetora, muitas vezes permitindo a um demônio de fato entrar na pessoa que cometeu pecado. Eu chamo a tais brechas, portas de entrada”.374 A partir daí as “portas” passam a ser mencionadas e analisadas: ocultismo, movimento nova era, eventos da infância, hereditariedade, jogos, sexo, artes marciais e música rock.375 Impossível seria citar e debater cada um desses aspectos. Apenas em caráter de ilustração do pensamento da autora, vou mencionar o sexo como uma porta de entrada de demônios na vida das pessoas: Qualquer participação em perversões sexuais abre a pessoa diretamente à entrada de demônios. As Escrituras são claras; é pecado praticar qualquer um dos atos seguintes: sexo com pessoas do mesmo sexo, sexo com animais, sexo com qualquer pessoa que não seja o seu cônjuge e sexo com demônios. Qualquer contato sexual 373 374 375

Ibid., p. 149. Ibid., p. 150. Ibid., p. 157-184.

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com uma pessoa com quem não esteja casada, quase sempre resultará na invasão de demônios em sua vida.376

A demonologia da Rebecca Brown exerceu uma influência significativa sobre líderes pentecostais no Brasil. Um exemplo disso é a brasileira Neuza Itioka, uma ex-líder de movimento estudantil cristão, doutora em teologia pelo Seminário Teológico Fulller, nos Estados Unidos. Também em caráter ilustrativo de seu pensamento, vou analisar seu livreto “A cruz e a batalha espiritual”, organizado em pequenos capítulos: 1) a cruz, o único meio para a salvação; 2) a cruz e o ocultismo/ espiritismo e 3) a cruz e o testemunho nas universidades. A sintonia de seu pensamento com o da escritora anterior é evidente no trecho a seguir: Que diremos, como seguidores de Jesus, diante dessa realidade? O Espírito Santo é aquele que nos sensibiliza e capacita para podermos discernir a realidade. Muitos de nós cremos em principados e potestades, mas descansamos erroneamente acreditando que, desde que cremos em Jesus, eles não podem nos tocar. Quando na realidade, a luta do inimigo e dos seus demônios é contra 377 os santos, contra a igreja de Jesus.

A visão semi-dualista cristã tradicional toma concretude na fala da teóloga brasileira, ao descrever a natureza do conflito permanente entre as trevas e a luz: O que é o encontro de poderes? Como ele funciona na prática? É o choque de dois poderes opostos: os poderes das trevas e da luz em confronto, porque o evangelho de Jesus Cristo está sendo apresentado. É o choque entre o 376 377

Ibid., p. 178. ITIOKA, N., A cruz e a batalha espiritual, p. 21. Com negrito da própria autora do texto.

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império das trevas e o reino da luz, já que a mensagem central do evangelho é transferir os que estão no ocultismo e espiritismo ...378

A demonóloga menciona um testemunho de como é importante guerrear contra as trevas, não apenas no nível de uma vida pessoal, mas com dimensões nacionais. A Argentina era um país pouco receptivo ao evangelho mas depois do desenvolvimento da visão da guerra espiritual, os resultados da evangelização mudaram drasticamente. Tudo parece indicar que quando a igreja aprendeu a amarrar os principados e potestades das cidades, o resultado foi milhares de convertidos.379

O discurso que adquire concretude nos textos das estudiosas acima mencionadas está claramente em uma relação contratual com o que difunde o pentecostalismo contemporâneo, no qual está incluída a igreja do Bispo Macedo. Como vou descrever e analisar exclusivamente a Igreja Universal na segunda metade deste capítulo, vou abordar mais um exemplo fora de seu âmbito neste sub-ítem. Outro influente líder pentecostal da atualidade é o missionário R. R. Soares, como gosta de ser tratado. Ele é a pessoa que passa o maio número de horas semanais em exposição na mídia televisiva. Em um periódico de sua autoria, relata a história de uma jovem senhora convertida à sua igreja, a Internacional da Graça de Deus: Nascida e criada em Osasco, SP, Eunice Bispo dos Santos, 33 anos, envolveu-se com o espiritismo na esperança de ser curada de uma enfermidade que a atormentava desde 378 379

Ibid., p. 25-26. Ibid., p. 30-31.

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os 17 anos. Raspou a cabeça, começou a desenvolver, fez muitos trabalhos, mas continuava doente. Cansada de tanto sofrimento, Eunice resolveu largar tudo, mesmo sendo ameaçada de morte. Devido a trabalhos de matança realizados contra ela pelo pai-de-santo, quase foi internada num hospital psiquiátrico. Mas Jesus chegou a tempo de salvá-la da morte, restaurando por completo sua saúde e lar. Hoje, Eunice se orgulha de servir a Cristo, o único que lhe deu paz, alegria, saúde e liberdade.380

Depois do relato de sua conversão do “espiritismo” para o cristianismo, há uma longa e detalhada entrevista sobre sua vida antes e depois de passar a freqüentar a igreja do missionário. Um pergunta que vale a pena observar a resposta é sobre seu processo de “libertação”. Quando comecei a ouvir o missionário pela TV. Justamente naqueles dias, ele anunciou que daria uma aula para todos os espíritas. “Eu vou mostrar para vocês quem são esses guias que se dizem ser de luz.” Na semana seguinte, ele abriu a Bíblia e explicou que, uma vez a pessoa morta ela não pode voltar mais (Hb 9.27): “Esses orixás são o próprios demônios. Eles não são pessoas mortas, são espíritos demoníacos que incorporam em você”.381

No texto mencionado, o discurso sobre batalha espiritual, demonizador da religião alheia, como o faz Neuza Itioka e o Bispo Macedo, ganha vida. O que faz o missionário é “desvelar” a realidade da trama farsante do astutos demônios. Em outro número da mesma publicação, R. R. Soares faz uma longa exposição sobre “As táticas que o Diabo usa para nos afastar de Deus”. “Vamos, este mês, falar de algumas táticas que o diabo usa para nos

380 381

SOARES, R. R. Livre dos Orixás, Carta viva, nº 46, p. 22. Ibid., p. 28.

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afastar de Deus. Temos que abrir os olhos, para que ele não nos engane, impedindo de alcançar o prêmio que nosso Deus já estabeleceu”. A seguir, passa a enumerar e analisar as táticas do inimigo, que são sete: mentira, oposição, falta de entendimento, cegueira espiritual, impulsos humanos, desafios e propostas e incredulidade.382 O que tentei fazer até aqui foi descrever uma pluralidade de discursos e práticas acerca do Diabo no Brasil contemporâneo. A intenção era a de fornecer um contexto amplo em que emerge a fala da I.U.R.D. sobre o assunto. Vim analisando perspectivas até desembocar no pentecostalismo contemporâneo ou neopentecostalismo, fenômeno no qual a igreja do Bispo Macedo pode ser inserida. Na caracaterização deste último discurso evitei já abordar exemplos ligados à instituição que está sob o foco desta tese, na intenção de deixar tudo para o seu desfecho. Começo, então, este trabalho de análise documental mais restrito.

4.2- O discurso sobre mal na Igreja Universal do Reino de Deus

Para compreender o discurso sobre o Diabo e seus demônios na I.U.R.D. vou tomar como ponto de partida uma obra clássica e

382

SOARES, R. R. Árvore de Natal: de Deus ou do Diabo? Carta viva, nº 39, p. 2-9.

257

polêmica sobre o assunto escrita pelo Bispo Macedo.383 A autoridade do Bispo não se fundamenta no conhecimento teórico, pois se trata de uma pessoa com muita experiência prática no assunto. Na apresentação da obra, J. Cabral se refere ao seu superior da seguinte forma: Este homem, que Deus levantou nesses dias para uma obra de grande vulto no cenário evangelístico nacional e mundial, conhece todas as artimanhas demoníacas. Seu freqüente contato com praticantes do espiritismo, nas suas mais diversas ramificações faz com que seja conhecedor da matéria.384

Esta é a fonte em que o discurso sobre o mal aparece da maneira mais exemplar e explícita e está estruturada em vinte capítulos: 1) orixás, caboclos & guias; 2) quem são os demônios? 3) Deus permite a atuação de demônios? Por quê? 4) como os demônios se apoderam das pessoas; 5) nomes usados pelos demônios; 6) a mediunidade e suas características; 7) possessão e encostos; 8) sinais de possessão; 9) o “desenvolvimento”; 10) enganos demoníacos; 11) os demônios têm poder? 12) os demônios e as doenças; 13) trabalhos e despachos; 14) macumba pega? 15) crentes endemoninhados? 16) ação da igreja x ação do demônios; 17) poder contra os exus & cia. 18) dez passos para a libertação; 19) o que todo ex-macumbeiro deve saber e 20) o Espírito Santo. Se em “Orixás, caboclos e guias” temos um tratado sistemático sobre o Adversário de Deus, em outros lugares vamos encontrar

383 384

MACEDO, B. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? Ibid., p. 20.

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alguns fragmentos e/ou exemplos sobre o assunto. Por isso, vou me valer do modo como o livro está estruturado para organizar tematicamente a demonologia da Igreja Universal. A estratégia será partir de assuntos tratados neste livro exemplar para cruzar com dados de outras publicações do Bispo Macedo, bem como de outros líderes da denominação. (1) Quem são os demônios? No início do segundo capítulo de seu livro mais importante sobre o assunto, Edir Macedo expõe o seu objetivo: “Neste capítulo procuraremos elucidar ou desvendar a origem de todos os males que afligem a humanidade.”385 Depois passa à sua exposição propriamente dita, ao dizer que o Diabo é um anjo que caiu da sua glória devido à inveja: “Desejava muitíssimo ser semelhante ao Altíssimo; queria assumir o trono de Deus e o seu lugar; por isso foi expulso dos céus juntamente com todos os seus seguidores.”386 Em outra publicação,387 descreve a personalidade de Satã com as seguintes características: possui intelecto, emoções, vontade própria, responsabilidade moral e é referido através de pronomes pessoais. A natureza deste mesmo personagem inclui características como: ser criatura, possuir espiritualidade, astúcia e inteligência, ter sido um querubim, o posto mais alto na hierarquia angelical. Também é identificado como sendo

385 386 387

Ibid., p. 29. Ibid., p. 30. Id., Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus 2, p. 45-46.

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assassino, mentiroso, pecador, acusador e oponente. Todavia, possui alguns limites, como estar privado de onisciência, onipotência e onipresença, além de poder ser resistido pelos seres humanos que sejam verdadeiramente cristãos e ter seus limites de ação impostos por Deus.388 O bispo descreve também os seguintes aspectos físicos do Diabo: Seus nomes eruditos são pouco conhecidos. As pessoas evitam usá-los, por isso deram-lhe diversos apelidos. É normalmente descrito como um ser chifrudo, rabudo (às vezes com a cauda em forma de seta), unhas grandes semelhantes a garras, olhos redondos, avermelhados, cascudo, barba de bode, pele tinada de hirsuta, asas semelhantes a de morcegos e pés de cabra.389

Sobre os demônios afirma que são espíritos incorpóreos e que, por isso, precisam usurpar os corpos das pessoas: “Sempre, na história da humanidade, satanás arranjou um ‘jeitinho’ para conseguir entrar no corpo do homem e usá-lo como lhe convém.”390 Além de serem espíritos sem corpos, os demônios são revoltados, isto se deve ao fato de terem perdido o status que possuíam na corte divina devido à sua queda: Tornaram-se espíritos revoltados; querem fazer o possível e o impossível para verem as outras criaturas de Deus perdidas e sem a imagem do seu criador. Eles (os demônios) não podem fazer nada contra Deus, mas podem tocar nas Suas criaturas.391

Os demônios fazem parte de uma hierarquia que inclui

388 389 390 391

Id, Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? p. 47-48. Id., O diabo e seus anjos, p. 8. Id., Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? p. 33. Ibid., p. 35.

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principados, potestades, dominadores e forças espirituais do mal. Os principados fazem parte de “uma classe especial de demônios que ocupam a posição de autoridade política sobre países, estados e municípios”; as potestades são demônios que “agem na execução do poder religioso”; dominadores são “espíritos imundos que dominam a mente humana, tornando-a escrava da razão”; as forças espirituais do mal são “os espíritos imundos, espíritos de enfermidade, que atuam no sentido de levar as pessoas aos sofrimentos físicos e espirituais, tais como doenças e surtos delas, desastres, medo, insônia, constantes dores no corpo, depressão, desejo de suicídio”.392 (2) Como os demônios se apoderam das pessoas? O capítulo quarto de seu livro fundamental trata de como os demônios se apoderam das pessoas: 1) por hereditariedade; 2) pela participação direta ou indireta em centros espíritas; 3) por trabalhos ou despachos; 4) por maldade dos próprios demônios; 5) por envolvimento com pessoas que praticam o espiritismo; 6) por comidas sacrificadas a ídolos e 7) por rejeitarem a Cristo.393 Como se pode ver, em quase todos os casos mencionados pelo bispo, os demônios se apoderam da vida das pessoas por intermédio de contato com religiões “espíritas” ou mediúnicas. Isto revela o conflito

392

393

Id., Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus 2, p. 55-58. Esta hierarquia é analisada pelo autor do mesmo modo em Nossa batalha, p. 24-45 e em Mensagens, p. 133-134. Id., Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? p. 44-49.

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permanente em que a Igreja Universal vive no interior do campo religioso brasileiro. Sua identidade ritual tem sido construída mediante um processo de deslegitimação da umbanda e do candomblé. O Pastor J. Cabral, um subalterno de Macedo, também endossa esta visão. Isto está evidente na sua análise das religiões afrobrasileiras: A macumbaria existe e pega! O diabo e seus anjos – os demônios – estão atuando exausativamente para provocar a destruição dos filhos de Deus. Infelizmente, pessoas enganadas ou de má índole se colocam à disposição deles, associando-se para fazerem mal aos seus semelhantes. Sentimentos como a inveja, o egoísmo ou a vingança estimulam esse tipo de sociedade satânica e, como resultado, aparecem os trabalhos de macumbaria.394

Se o catolicismo é o principal adversário político da Igreja Universal, as religiões afro-brasileiras são as mais mencionadas e atacadas, quando o assunto é possessão e exorcismo. Isto se deve ao fato destas expressões religiosas serem simbólica e ritualmente muito parecidas com a igreja do Bispo Macedo.

(3) Quais são os sinais de possessão? Há quatro níveis de atuação dos espíritos malignos na vida das pessoas. A primeira forma é a manifestação total: Quando a pessoa possessa de um ou mais espíritos imundos participa de uma reunião de oração, é normal que aqueles espíritos se manifestem, deixando a pessoa totalmente inconsciente; é o que o espiritismo chama de 394

CABRAL, J. Entre o vale e o monte, p. 103-104

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“mediunidade inconsciente”, e nesse caso, a pessoa possessa nada sabe do que está acontecendo. Aí, não há intervenção da mente humana e o demônio incorporado responde totalmente por sua ação.395

A segunda forma é a manifestação parcial. Quando a pessoa é possessa de um ou mais espíritos imundos e quando estes espíritos se manifestam e ainda assim a pessoa não consegue controlar-se a si mesma, antes os espíritos imundos controlam o seu corpo jogandoo de um lado para o outro, sem no entanto controlar a sua mente.396

O terceiro modo é a opressão. A opressão é o estado no qual um ou mais espíritos obsessores estão atuando na vida da pessoa, sem contudo usar a incorporação. Nesse estado a pessoa apresenta os mais diversos sintomas, dentre os quais alguns dos apresentados também pelos que estão possessos, todavia os demônios não se manifestam.397

A quarta e última maneira é a tentação, que é “uma armadilha usada pelo diabo e seus demônios para fazer a pessoa cair no pecado diante de Deus. É uma obsessão mental porque passa o indivíduo de modo a tentar a todo o custo fazer algo que não deveria”.398 Como se pode notar, há níveis muito variados de intervenção dos demônios na vida das pessoas. Esta influência pode ser uma simples sugestão de uma idéia até chegar a assumir o controle total da vida da pessoa. O que estamos designando por possessão implica em uma invasão, seguida pelo controle absoluto da identidade da pessoa por um 395 396 397 398

ESTATUTO E REGIMENTO INTERNO, p. 55-56. Ibid., p. 56 Ibid., p. 56. Ibid., p. 57.

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certo tempo. Quando isso acontece, alguns sinais podem ser verificados. Passaremos a analisá-los adiante. O capítulo oitavo de sua obra mais explícita sobre demonologia foi dedicado à explanação sobre os sinais de possessão, que são nervosismo, dores de cabeça, insônia, medo, desmaios constantes e desejo de suicídio.399 Outro documento acrescenta visões de vultos, audição de vozes estranhas, vícios, perturbações e dores não diagnosticadas pela medicina.400 Aos sintomas “físicos” acima mencionados podem ser adicionados outros, que são de expressão exclusivamente “psíquica”, como histerismo, problemas mentais, condicionamento e nervosismo.401 Que fator diferencia o nervosismo como expressão física de sua manifestação estritamente psicológica? Como traçar uma linha divisória entre corpo e mente? A demonologia da Igreja Universal não apresenta explicações muito evidentes para estas perguntas. (4) Demônios podem possuir cristãos? O capítulo quinze de sua obra mais importante sobre o Diabo e seus demônios é dedicado à análise da controvertida questão da possibilidade de um cristão vir a estar possesso por espíritos imundos. A justificativa para o capítulo é bastante direta: “Este capítulo não existiria se

399

MACEDO, B. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? p. 69-74. ESTATUTO E REGIMENTO INTERNO, p. 57. 401 Ibid., p. 58-60. 400

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eu não tivesse visto constantemente pessoas de várias denominações evangélicas caírem endemoninhadas, como se fossem macumbeiras, ao receberem a oração da fé”.402 Parece-me que o problema das pessoas acima descritas é que não seriam crentes de fato, não tendo experimentado com toda a profundidade a conversão ou novo nascimento: Quando uma pessoa crê em Jesus, mas não passou pelo novo nascimento, ou seja, ainda não nasceu da água e do Espírito Santo, o que significa ter uma experiência pessoal com o Senhor Jesus, então ela pode ser possuída por demônios. Aliás, esta é justamente a razão pela qual muitos cristão são fracassados: aceitaram a mensagem da salvação, aceitaram Jesus como Senhor e Salvador, foram batizados nas águas e conhecem as Escrituras Sagradas, mas não nasceram de novo.403

Quando a pergunta é elaborada de forma correta e objetiva, a resposta do bispo é curta e grossa: “Uma pessoa batizada com o Espírito Santo pode ter demônios? Não, nunca!”. Ou ainda: “Pode ser oprimida por eles? Também não!” Mas se mudar um pouquinho, a resposta será diferente: “Pode receber uma inspiração do diabo, ou mesmo ouvir a sua voz na mente? Sim, pode”.404 A resposta sintética acima recebe um tratamento mais amplo em outra publicação de Macedo. A questão levantada é se “uma pessoa batizada com o Espírito Santo pode receber demônio?” A resposta é a seguinte: 402

MACEDO, B. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? p. 115. MACEDO, B. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus 2, p. 62. 404 Ibid., p. 63. 403

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As Escrituras Sagradas não têm base para fortalecer a opinião de que uma pessoa batizada no Espírito Santo venha a ficar endemoninhada. Quando uma pessoa tem a plenitude do Espírito Santo, passa a ser selada por Deus, e uma vez selada nenhum demônio poderá entrar. A Bíblia afirma que somos templo Espírito Santo e sendo assim, por certo o Espírito Santo não aceitará dividir Sua morada com nenhum espírito demoníaco.405

Em suma, pode-se dizer que a resposta do Bispo Macedo sobre a possessão de crentes é ambígua. Parece dizer com todas as letras que um crente verdadeiro não pode ficar possesso, mas cita exemplos de pessoas de outras igrejas cristãs que “manifestaram” demônios em cultos da Igreja Universal. A explicação do bispo é a de que não haviam nascido de novo, mas não explica o que isto significa. Pelo que compreendo, está subentendido que é necessário pertencer à sua igreja para experimentar uma verdadeira conversão, logo, a menos que alguém se torne membro de sua igreja, não estará imune às ciladas do Inimigo. (5) Que fazer para ser liberto dos demônios? O capítulo dezoito de “Orixás, caboclos e guias” fala dos passos necessários para a libertação do poder dos demônios: 1) aceitar de fato o Senhor Jesus como único Salvador; 2) participar das reuniões de libertação; 3) ser batizado; 4) buscar o batismo com o Espírito Santo; 5) andar em santidade; 6) ler a Bíblia diariamente; 7) evitar as más companhias; 8) freqüentar as reuniões de membros; 9) ser fiel nos dízimos e

405

Id., O despertar da fé, p. 98.

266

ofertas e 10) orar sem cessar e vigiar.406 Como se pode ver, todos os fatores são imprescindíveis para que a pessoa não seja mais perturbada pelo espíritos malignos, mas tudo isso é decorrente do fato de a pessoa ter sido liberta ou exorcizada. No pentecostalismo há um grande realce sobre a ação dos demônios nas vidas das pessoas e sobre a ação da Igreja na luta contra eles. O exorcismo é uma prática comum entre os pentecostais. No chamado neo-pentecostalismo, a expulsão de demônios chega a ocupar lugar central no culto, onde cânticos, testemunhos e uma “pequena palavra” têm o intuito de preparar os ouvintes para o exorcismo.407

A prática da libertação ou exorcismo recebe a seguinte justificação no texto do regimento interno da Igreja Universal: Acreditamos, indubitavelmente, que os demônios atuam na vida das pessoas com o propósito de afastá-las de Deus e de não deixá-las, conseqüentemente, entender o plano divino para as suas vidas. Daí entendermos que a primeira coisa que deve ser feita com alguém, para trazê-lo ao Senhor é libertá-lo do poder e da influência do diabo e dos seus anjos, os demônios.408

Penso que a exposição acima demonstra a importância das crenças e dos ritos concernentes ao Diabo e seus demônios na I.U.R.D. Isto pode ser um ponto a partir do qual venha a ser estabelecido um diálogo com o pensamento de Jürgen Habermas.409 Gostaria de ensaiar uma 406

Id., Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? p. 131-8. Id., O Diabo e seus anjos, p. 35-36. 408 ESTATUTO E REGIMENTO INTERNO, p. 38. 409 Jürgen Habermas nasceu em 1929 em Düsseldorf, fez estudos universitários em Zurich, Göttingen e Bonn, tendo se formado em um contexto provinciano. Sua tese de doutoramento versava sobre a filosofia de Schelling. Em 1956 se tornou assistente de Adorno na Universidade de Frankfurt. Entre 1961 e 1964 trabalhou como professor de filosofia em Heidelberg. Depois disto regressou à Universidade de Frankfurt para substituir a Horkheimer na cadeira de filosofia e sociologia. Cf. ARAÚJO, L. B. L. Religião e modernidade em Habermas, p. 18. 407

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interpretação final e sintética acerca da crença no Diabo e seus demônios na I.U.R.D. A erudição e a diversidade temática do pensamento de Jürgen Habermas podem ser percebidas na classificação das suas obras em três conjuntos temáticos: epistemológicas, filosóficas e sociológicas.410 As matrizes do pensamento de Jürgen Habermas são assim sintetizadas por Luiz Bernardo L. Araújo: Ao lado de uma efetiva participação no nascente e acalorado movimento estudantil, Habermas reencontrou seu caminho filosófico pelas vias da hermenêutica, da filosofia da linguagem e do pragmatismo, fato que demonstra sua dívida para com a obra de Gadamer e as sugestões de K.-O. Apel. Por outro lado, Habermas engajou-se na querela sobre o positivismo e concentrou boa parte de seus esforços teóricos em questões de ordem epistemológica, visando fornecer bases metodológicas mais sólidas para uma teoria crítica da sociedade.411

Lúcia Maria C. Aragão analisa o pensamento de Jürgen Habermas a partir de três aspectos: 1) teoria da racionalidade; 2) teoria da evolução social e 3) teoria do capitalismo maduro. Para o aspecto teórico do pensamento de Jürgen Habermas a autora dedica um capítulo de sua obra. Apesar disso, o seu pensamento não é tratado de forma estanque, mas de modo a relacionar cada aspecto de sua obra com os demais. Quando chega ao terceiro capítulo de seu livro, oportunidade em que vai tratar do terceiro aspecto teórico da sua obra, a autora fornece uma síntese importante: Aqui queremos demonstrar que a concepção das 410 411

ARAGÃO, L. M. C. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas, p. 18-9. ARAÚJO, L. B. L. Op. cit., p. 19.

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sociedades do capitalismo maduro oferecida por Habermas é uma derivação de sua teoria da evolução social que, por sua vez, é uma aplicação de sua teoria da racionalidade, e que ambas as teorias que se pretendem científicas, sofrem a influência da filosofia de Hegel (Grifo meu).412

Feitas estas observações, é importante para o meu raciocínio abordar a teoria da racionalidade do referido filósofo social. O pensamento

social

contemporâneo

trabalha

com

a

categoria

da

subjetividade. Habermas trabalha com a categoria da intersubjetividade. As fontes desta forma de pensar estão no Jovem Hegel e no Jovem Marx.413 Na visão do pensador da Escola de Frankfurt houve uma ruptura no pensamento de Hegel. O Jovem Hegel trabalha com a categoria de intersubjetividade, enquanto o Velho Hegel abandona esta categoria em detrimento de outra, a de subjetividade.414 A gestação do sujeito, no Jovem Hegel, se dá através de um processo de três esferas fundamentais: linguagem, instrumento e família.415 A construção do sujeito se dá em um processo social; a identidade de um sujeito não se dá fora de um processo de socialização, pois só há sujeito em um processo de interação. O Jovem Marx desconhecia os textos do jovem Hegel, mas conseguiu perceber a relação entre trabalho e interação.416 Marx tem uma tendência cada vez mais clara de fazer do trabalho o elemento fundamental da gestação da

412 413 414 415 416

ARAGÃO, L. M. C. Op. cit., p. 113. ARAÚJO, L. B. L. Op. cit., p. 25. Ibid., p. 27. Ver também HABERMAS, J. Técnica e ciência como “ideologia”, p. 11. Ibid., p. 29. Ibid., p. 32.

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humanidade. O problema é que Marx relaciona tanto a sociabilidade ao trabalho que passa a concebê-lo de forma reducionista. O trabalho passa a ser o modelo de todas as esferas da vida social. Habermas percebe que a grande patologia da humanidade é a instrumentalização de todas as instâncias sociais. A crítica de Marx ao capitalismo se reduzia ao aspecto da instrumentalidade. O referido autor pretende superar a compreensão reducionista que concebe a razão somente ao seu aspecto instrumental. O caminho para a superação desta compreensão reducionista está na linguagem: Há, portanto, além das razões estritamente metodológicas, um segundo – mas nem por isso menos importante – motivo para que seja a linguagem, e não o conhecimento ou a ação, o melhor medium através do qual a razão se revela: somente através da linguagem podemos ter acesso a uma forma de razão não-instrumental e não-subjetiva, isto é, a uma razão “comunicativa”, essencialmente intersubjetiva, cujo único critério é promover o acordo racional entre os sujeitos, o que exclui, imediatamente, o uso de qualquer forma de coerção, externa ou interna.417

Jürgen Habermas concebe a razão de forma tridimensional: 1) há uma dimensão instrumental da razão; 2) há uma outra dimensão da razão que é normativa e 3) há também uma dimensão expressiva da razão. Sendo a razão tridimensional, também a emancipação nas sociedades contemporâneas precisa dar-se nas diferentes esferas. Emancipação não pode acontecer apenas em uma esfera instrumental ou normativa, mas 417

ARAGÃO, L. M. C. Op. cit., p. 32-3.

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também na esfera da afetividade ou relacionamentos. Lúcia Maria C. Aragão pensa que “a teoria da evolução social de Habermas nada mais é do que uma aplicação de sua teoria da racionalidade.”418 De forma análoga à sua teoria da razão, onde o autor trabalha com uma concepção tridimensional de razão, a sua teoria da evolução social também opera com mais de uma dimensão. Uma sociedade não evolui apenas no seu aspecto instrumental ou normativo, mas também evolui quanto ao seu aspecto comunicacional ou relacional. Segundo a autora, este aspecto permite a Habermas fazer uma crítica ao materialismo histórico.419 O referido autor vai colocar de cabeça para baixo a tese do materialismo histórico de que a evolução das sociedades tem como motor as transformações de fundo instrumental ou tecnológico apenas. Habermas crê que o motivo mais forte que levou homens a buscarem a convivência social e a evoluir enquanto espécie não foi o trabalho e sim a interação, e isto fica bastante claro, quando ele estabelece a aquisição da linguagem como o marco decisivo para o início da história humana. Habermas acredita, em segundo lugar, que a evolução material das sociedades é uma conseqüência de sua evolução cultural. Exatamente porque a evolução cultural tem esse papel preeminente na sua teoria da evolução social, Habermas se dedica a analisar as “etapas de reflexão” pelas quais as sociedades passaram até alcançar o estágio atual, o da modernidade.420

Tendo sido estabelecida a conexão entre a teoria da racionalidade e a teoria da evolução social, posso passar às bases sobre as

418 419 420

Ibid., p. 73. Ibid., p. 73. Ibid., p. 74.

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quais se estabelece a evolução social. O referido filósofo, baseado no princípio de que há uma circularidade entre os processos de aprendizagem individual e coletivo,421 passa a estabelecer uma história dos tipos de sociedades. Há basicamente três tipos de sociedades que correspondem a três diferentes níveis de integração social: 1) sociedades arcaicas; 2) sociedades organizadas em torno do Estado e 3) sociedades de classe economicamente constituídas.422 Segundo a sua concepção de evolução social, a história tem demonstrado um deslocamento de formações sociais onde o mundo-da-vida tem a supremacia sobre o sistema para formações sociais onde o sistema passa a colonizar o mundo-da-vida. Este é o caso das sociedades contemporâneas onde o subsistema econômico tem absoluta soberania. Outro aspecto que desejo destacar é a teoria do capitalismo maduro. Sua teoria do capitalismo maduro vai ser importante mais adiante para que possa compreender sua teoria da religião, bem como o papel que esta ocupa nas sociedades contemporâneas. O ponto de partida da teoria do capitalismo maduro é a sua teoria da evolução social, que por sua vez tem como ponto de partida sua teoria da racionalidade, conforme citação acima. As sociedades do capitalismo maduro são caracterizadas pela cisão entre sistema e mundo-da-vida. O referido filósofo detecta que nas sociedades do

421 422

Ibid., p. 83. Ibid., p. 89.

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capitalismo maduro a lógica sistêmica avança sobre a lógica interativa.423 Penso que este argumento é importante porque permite compreender a sua concepção de sociedade: Habermas defende a idéia de que as sociedades são originalmente um todo formado pela intersubjetividade do reconhecimento de tradições, valores e normas de ação comuns, o que lhes confere uma característica essencialmente integradora. Acontece que este todo, ao longo da evolução, devido ao aumento da complexidade das sociedades, gerado a partir das necessidades de reprodução material, foi desmembrando em áreas diversas, cada qual responsável por funções específicas. Isto se deu, tanto com referência às funções de reprodução material, quanto em relação às funções simbólicas, criando-se, de um lado, um campo formado pela economia, administração, sistema jurídico e complexo militar, além da ciência, denominado genericamente de sistema, do qual cada um dos mencionados é um subsistema; e, de outro, uma esfera formada pela cultura, sociedade e personalidade, que são reunidas sob a designação de mundo-da-vida.424

A colonização do mundo-da-vida pelo sistema nas sociedades contemporâneas tem sérias repercussões sobre a forma de expressão religiosa nos dias de hoje. Por isso considero importante estender um pouco mais a análise do pensamento de Jürgen Habermas, mas agora pendendo/afunilando para a questão específica da religião. Algumas considerações sobre sua teoria da religião serão de muita utilidade para efeito de análise da demonologia da I.U.R.D. Entrei em diálogo com Jürgen Habermas citando a abordagem tríplice de Lúcia Maria C. Aragão. Luiz Bernardo L. de Araújo 423 424

Ibid., p. 114. Ibid., p. 118.

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também concebe a obra do autor desta mesma forma, embora a sua atenção esteja voltada para a teoria da religião: Três aspectos da teoria habermasiana estão cingidos nesta reformulação da teoria weberiana da modernidade: a teoria da racionalidade (com o conceito mais englobante de razão comunicativa e a conseqüente superação da perspectiva monológica da filosofia do sujeito), a teoria da evolução social (com a distinção entre os domínios da lógica e da dinâmica do desenvolvimento das sociedades modernas), e, enfim, a teoria da sociedade (com a incorporação de categorias da análise funcionalista que permitem distinguir a esfera sistêmica da esfera do mundo vivido). A teoria habermasiana da religião, que não é um aspecto isolado de seu opus e nem constitui um corpus sólido e conclusivo, está conectada com os três aspectos mencionados.425

Penso que a citação acima é importante como ponto de partida para uma análise da teoria da religião de Jürgen Habermas. Sua teoria da religião não se encontra sistematizada no universo da sua teoria. A possibilidade de analisar a religião a partir do pensamento deste autor está conectada à sua tríplice teoria acima colocada – teoria da racionalidade, teoria da evolução social e teoria da sociedade/capitalismo maduro. Vou tratar de buscar a relação entre a sua teoria da religião e a sua tríplice teoria. Qual o papel da religião na construção da racionalidade moderna? A que esfera de racionalidade está conectada a religião? Ela ajuda a construir e manter a dimensão instrumental ou normativa da racionalidade ou tem um papel ligada à construção da racionalidade expressiva? O referido autor, na esteira de Weber, está disposto a 425

ARAÚJO, L. B. L. Op. cit., p. 144. O negrito é meu.

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reconhecer um papel importante da religião no processo de construção da racionalidade. Mas, de forma até contraditória, a religião, que é elemento construtor de racionalidade, vai ser a única esfera de construção de sentido ausente em uma sociedade excessivamente racionalizada. O aspecto instrumental da racionalidade, que se constrói em parte como contribuição da racionalidade produzida pela religião, tende a se voltar para a religião e a devorá-la. Habermas vê como alternativa para o mundo moderno o voltarse ao cultivo de uma interação social de tipo comunicativo, mediante a qual a lógica do sistema não colonizaria mais o mundo-da-vida. A questão é se o autor vê a racionalidade comunicativa como uma alternativa às imagens religiosas de mundo ou como um elemento que pode ser colocado ao lado destas.426 Os dados anteriormente narrados acerca da I.U.R.D. dão conta de demonstrar que as imagens míticas e religiosas ainda preservam um papel de fundamental importância na construção de sentido de mundo para milhões de pessoas. Mesmo as crenças no Diabo e seus demônios não representam uma construção “racional” de explicação para a pobreza e agruras da vida? Concordo com Lúcia Maria C. Aragão, e neste aspecto ela parece estar de acordo com o próprio Jürgen Habermas, quando diz que “a razão por si mesma não é boa nem má, dominadora ou libertadora.”427 A questão está no uso que as pessoas fazem da razão. 426 427

Ibid., p. 88 e 193. ARAGÃO, L. M. C. Op. cit., p. 65.

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A teoria da evolução social de Jürgen Habermas aponta para uma diminuição da influência da esfera do sagrado nas sociedades modernas.428 Nas sociedades modernas as imagens e os discursos sagrados concorrem com outras imagens e discursos seculares. Isto se agrava à medida que o mundo-da-vida passa a ser colonizado pelo sistema. Este fator, ao invés de indicar o fim da influência do sagrado, parece muito mais indicar o surgimento de uma nova forma de expressão religiosa, a religião onde impera a lógica sistêmica. Na minha forma de ver, a I.U.R.D. é um exemplo evidente de uma expressão religiosa onde a lógica sistêmica impera. Isto pode ser percebido na forma exagerada como a instituição valoriza o dinheiro e também no modo como a evangelização é usada para atingir meios racionalmente calculados pela liderança. A pesquisa empírica e documental que realizei mostra a vivacidade do sagrado e sua importância como construção de sentido para milhares de pessoas, ainda que estas imagens sejam construídas através de uma grande influência do sistema sobre o mundo-da-vida. O próprio rito de exorcismo, como rito que promove a passagem de um estado de precariedade para outro, de abundância, parece-me uma evidência de que a I.U.R.D. é uma religião em uma sociedade em que o mundo-da-vida está cada vez mais sob influência da lógica sistêmica. O rito de exorcismo pode 428

Ibid., p. 109. Também CUNICO, G. A religião além dos limites da razão comunicativa. In: PENZO, G. & GIBELLINI, R. (Orgs.). Deus na filosofia do século XX, p. 509.

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ser compreendido como a porta de passagem para o paraíso capitalista: riqueza, poder, estabilidade, inserção no mercado. A palavra evolução pode suscitar, ainda, muita discussão. Embora seja impossível considerar a sociedade uma realidade estática, eu não saberia, por outro lado, como encontrar critérios que pudessem descrever as mudanças das sociedades que fossem universalmente válidos. Em muitos momentos, a realidade social descrita por Jürgen Habermas parece muito mais uma descrição da realidade européia. Que utilidade estes conceitos construídos a partir da realidade européia poderiam ter para descrever uma realidade como o Brasil? Como constituir categorias de evolução para um universo macro-social? Tomando como exemplo o Brasil, como estabelecer categorias/critérios de evolução para uma realidade imaginária (nação) formada de infinitos pequenos universos tão particulares? Mesmo que eu pudesse aceitar o pressuposto de que as sociedades possuem qualquer mecanismo de evolução, como aplicaria este critério para realidades tão diferentes entre si?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando desejo analisar sinteticamente esta tese, a primeira imagem que me vem à mente é a de uma torrente de águas que correm em uma dada direção. Enquanto estas águas circulam, vários afluentes do rio principal vão desembocado, fazendo com que as águas se tornem mais volumosas. O rio principal é a tese no seu todo. As águas que circulam são as palavras que vão dando significado ao texto. Os afluentes são os quatro capítulos que estruturam este trabalho. O primeiro fio de água começa a dar volume ao leito. É a arquitetura teórica da obra, as delimitações conceituais, as opções técnicas que vão direcionar as pesquisas e os debates, enfim, é a antecipação abstrata do que deverá ser demonstrado através de exemplos e documentos.

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O próximo córrego já encontra águas movimentadas. Junto com as escolhas teóricas, vai deslizando a história do cristianismo e suas várias cisões, através de uma série de flashes, num vai-e-vem de acontecimentos e discursos. Quando mais um riacho desliza para dentro do seu preceptor, já há muita velocidade e o volume cúbico é grande. A história quase tri-milenar do Diabo entra em cena, com todo o seu peso, para empurrar adiante as águas que já circulam. Por fim, com a chegada do quarto afluente do leito principal, há uma convergência de teorias e narrativas – historiografia da cultura, história do cristianismo, do Diabo e do pentecostalismo – para tornar o rio caudaloso. Outra imagem para esta tese seria a de uma montanha. Após sucessivas escaladas (capítulos um, dois e três) chegamos ao cume (capítulo quatro). Do alto deste cume, ensaiei uma interpretação global do discurso sobre o Diabo da Igreja Universal. Que mais poderia eu fazer uma vez que cheguei ao local que desejava? Resta-me fazer uma avaliação do papel desempenhado pela Igreja Universal no cenário brasileiro atual, bem como apontar para possíveis direções que esta pode tomar. Vou tomar como caminho para esta análise uma reabertura do diálogo estabelecido com Habermas no final do quarto capítulo. Penso que não seria justo para com o pensamento do

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filósofo alemão não considerar seus posicionamentos mais recentes sobre o espaço social a ser ocupado pela religião em uma sociedade que denomina de pós-secular. Este debate será retomado a partir de dois textos seus traduzidos e publicados no jornal “Folha de São Paulo”.429 O primeiro texto, “Fé e conhecimento”, foi publicado na imprensa brasileira no dia 06 de janeiro de 2002. O que motivou Habermas, inicialmente, a escrever o texto foi o atentado “terrorista” contra os Estados Unidos ocorrido no dia 11 de setembro. O debate sobre o evento que impactou o mundo com suas imagens de destruição das torres gêmeas, exibidas à exaustão pela televisão como se tratasse de um belo espetáculo, estimulou o posicionamento de vários intelectuais. Não foi diferente com o filósofo social alemão, que aproveitou a oportunidade para analisar as relações entre religião e sociedade no mundo contemporâneo. As pessoas que acompanharam o noticiário escrito ou televisivo puderam observar como os acontecimentos foram revestidos de motivações religiosas. Desde a justificação dos muçulmanos para invadir os Estados Unidos, como a reação violenta deste país ao atentado, foram descritos como fundamentados em termos religiosos, o que demonstra que as categorias de cunho religioso ainda são muito importantes para grande quantidade de pessoas na atualidade. Habermas expressou da seguinte 429

HABERMAS, J. Fé e conhecimento. www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0601200206.htm; Os secularizados não devem negar o potencial de verdade das visões de mundo religiosas. www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2404200507.htm.

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maneira este jogo de discursos religiosos que tanto muçulmanos como cristãos utilizaram: “O diabo não existe, mas o arcanjo rebelde continua fazendo as suas como nunca travestido de bem do monstruoso mal, mas também no irrefreado ímpeto para a retaliação que segue os passos desse mal.”430 Como pensar, então, o papel da religião no mundo contemporâneo? Contrariando posicionamentos anteriores, que eram mais pessimistas com relação à importância da religião na sociedade de uma forma geral, Habermas considera haver um papel a ser desempenhado pelas categorias sagradas. Isso porque mesmo a filosofia, quando opta por entrar em diálogo polêmico e contestador da importância da religião na sociedade, não tem como negar que muitos dos debates que atualmente circulam no interior do seu campo foram postos, em outros tempos, por teólogos e teólogas. Por isso, mesmo a sociedade que optou por uma visão de mundo secularizada, não deve desprezar um diálogo frutífero com o sagrado. A busca de razões visando a uma aceitabilidade generalizada só não levaria a uma exclusão desleal da religião em relação à opinião pública e não subtrairia à sociedade secular os importantes recursos de instituição de sentido (“Sinnstiftung”) se também o lado secular conservasse para si uma sensibilidade para o poder de articulação das linguagens religiosas.431

430

HABERMAS, J. Fé e conhecimento, op. cit. Não cito página porque a versão que tive acesso é eletrônica. 431 Op. cit.

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Existem “realidades” que podem muito bem ser expressas por meio de conceitos religiosos. As seguintes frases do autor evidenciam que filosofia, na atualidade, muitas vezes opera com categorias que se originaram de problemas colocados inicialmente no campo teológico: “Desse modo, por um lado os conteúdos religiosos são suspensos na forma do conceito filosófico”; “Uma secularização que não aniquila se realiza no modus da tradução”.432 Poderia tomar como exemplo disso a reivindicação que o cristianismo faz atualmente do respeito à dignidade humana. Se o gênero humano foi “criado à imagem e semelhança de Deus”, fazendo referência ao primeiro capítulo do Livro de Gênesis, este possui um alto grau de preciosidade. Seria, então, inaceitável qualquer realidade social que viesse a ofuscar esta dignidade humana. Daí a conclusão do pensador alemão: “Quanto à sua origem, ele não pode ter nascido como um par de Deus [fazendo referência a Adão e Eva]. Essa criaturabilidade da símileimagem expressa uma intuição, que em nosso contexto também pode dizer algo ao religiosamente surdo”.433 O outro texto recente de Habermas, “Os secularizados não devem negar o potencial de verdade a visões de mundo religiosas”, publicado no Brasil em 24 de abril de 2005, mantém o tom do anterior. Nele há um trecho que expressa de forma ainda mais evidente como uma categoria do campo religioso pode ser traduzida, até mesmo para os que 432 433

Op. cit. Op. cit.

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optaram por viver sem fé, em função de sua relevância para a sociedade civil de forma geral. A tradução da crença na imagem de Deus presente no homem para a dignidade igual – e a ser necessariamente observada por todos os homens – é uma tal tradução salvadora. Ela torna acessível o conteúdo de conceitos bíblicos para além das fronteiras de uma comunidade religiosa para o público genérico dos que não crêem ou crêem em outra coisa. Benjamin foi um que às vezes obtinha sucesso em tais traduções.434

Interessante também é o ponto de chegada do argumento do autor desenvolvido ao longo de algumas páginas. O texto termina de uma forma a mostrar que as categorias sagradas precisam ser valorizadas no mundo contemporâneo, ainda que por pessoas “religiosamente surdas”: Cidadãos secularizados, enquanto se apresentarem nos seus papéis de cidadãos, não devem negar, fundamentalmente, um potencial de verdade a visões de mundo religiosas nem colocar em questão o direito dos concidadãos crentes de contribuir, por meio de uma linguagem religiosa, para com discussões públicas. Uma cultura politicamente liberal pode esperar até mesmo dos seus cidadãos secularizados que tomem parte dos esforços em traduzir contribuições relevantes da linguagem religiosa para uma linguagem que seja publicamente 435 acessível.

Penso que temos uma quantidade razoável de material para fazer uma análise final do papel da Igreja Universal no atual cenário social brasileiro. Estou em pleno acordo com a afirmação de Habermas de que a religião constrói categorias muito importantes para descrever e analisar o 434

HABERMAS, J. Os secularizados não devem negar o potencial de verdade das visões de mundo religiosas, op. cit. Em versão também eletrônica. 435 Op. cit.

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mundo social em que vivemos. Penso que há na Igreja do Bispo Macedo um potencial cognitivo interessante para descrever a realidade de miséria financeira e precariedade de sentido de vida para milhões de brasileiros. Há uma simbiose muito grande entre a cultura brasileira e os mais diversos fenômenos religiosos e, para a imensa maioria de pessoas de nosso país, os símbolos e conceitos religiosos podem dar sentido para sua vida pessoal e social de um modo que a ciência ainda está muito longe de poder realizar. O problema é que este potencial até agora tem estado apenas latente. A I.U.R.D. tem funcionado muito mais como um paliativo ou um “alucinógeno” diante dos problemas sociais e das crises de sentido de vida, do que como um fenômeno que encoraja as pessoas a enfrentar este mundo e ordená-lo a partir de conceitos e práticas sagrados. Se a igreja vier a explorar com responsabilidade este potencial que possui, poderá exercer um papel socialmente relevante e positivo, caso contrário poderá prestar um temível desserviço às pessoas. Não se pode negar que a Igreja Universal tem tematizado em seus cultos muitos dos problemas sociais que afetam o cotidiano de milhares de brasileiros, como desemprego, violência, sistema de saúde precário, crise de sentido de vida etc. Também me parece um fato que a Igreja do Bispo Macedo tem se ocupado em oferecer as soluções simbólicas que pensa lhe caber neste cenário. A categoria Diabo tem sido utilizada como uma descrição sobrenatural de um mal que assombra de forma

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turbulenta a vida cotidiana de grande quantidade de pessoas. A questão é que, quando apenas se responsabiliza um ser sobrenatural maligno por tudo de ruim que acontece, há muito pouco espaço para as pessoas se assumirem como responsáveis que podem debelar este mal através de ações pessoais ou coletivas. Na minha forma de ver, um caminho interessante seria a ciência procurar um diálogo com a religião, de forma geral, que pudesse incluir a Igreja Universal para ser questionada por ela e suas categorias, bem como colocar seus conceitos e práticas em debate. Este ato de sentar-se à mesa para conversar deveria ser permeado por um senso de boa vontade ou abertura para com o “outro”, nos moldes como esta questão tem sido colocado pela antropologia cultural. Deve-se esperar dos cientistas, secularizados ou não, a disponibilidade para compreender o mundo iurdiano em toda a complexidade e até contradições. Dos discípulos do Bispo Macedo, poder-se-ia propor que não hostilizassem a ciência e os que optaram por explicar seu mundo por meio de categorias diferentes das suas. Penso que este bate-papo, caso acontecesse, poderia fazer bem a ambos os lados. Poderia começar a tirar a Igreja Universal do seu atual isolamento e, assim, estimulá-la a deixar fluir todo seu potencial de explicação cognitiva do mundo social através de símbolos religiosos. Seria proveitoso também para os cientistas, que poderiam exercitar sua capacidade de compreensão e de tolerância para com aqueles que fizeram opções muito diferentes das

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suas. Restaria apenas perguntar se ambos estariam dispostos a isso. Penso que, na atualidade, não há sinais de ambos os lados de que isso possa vir a acontecer. É uma pena que as coisas ainda sejam assim. Por ora, apenas sonho e espero por este dia.

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APÊNDICE A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO AUTOR DA TESE

Há uma discussão muito interessante que circula nos meios acadêmicos que envolvem estudiosos e estudiosas do fenômeno religioso. É o que diz respeito ao quanto a pertença religiosa pode ajudar ou atrapalhar na pesquisa acadêmica sobre religião. Pessoalmente tenho presenciado este debate em artigos especializados e em salas de aula de pós-graduação. Lembro-me de uma disciplina que freqüentei no curso de mestrado em sociologia na Universidade Federal do Ceará. Éramos quatro pessoas, todos bastante interessados em estudar religião, por motivos muito diferentes: uma professora atéia, um pastor pentecostal, um padre católico romano e eu, na época, pastor presbiteriano independente. O grupo era designado pela nossa querida professora, com o humor que sempre a caracterizava, de concílio. Um exemplo muito bem elaborado de texto sobre este assunto é o que pertence ao sociólogo da religião Antônio Flávio Pierucci.436 O professor da Universidade de São Paulo começa suas 436

PIERUCCI, A. F. Sociologia da religião, área impuramente acadêmica. In: MICELI, S. (Org.),

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considerações com uma análise profunda de um problema que afeta em cheio a área de pesquisas sobre religião: a presença significativa de religiosos e ex-religiosos. Este fato seria o responsável pela constituição de uma área impuramente acadêmica, afinal que tipo de trabalho estas pessoas produzem? Seriam textos científicos sobre religião, apologias teológicas do fenômeno ou, mesmo, um acerto de contas com o passado religioso? A análise do eloqüente sociólogo da religião chega a um ponto interessante quando aponta para uma possível saída para o problema da “impureza”. No caso específico de pessoas que circulam pelo campo das ciências humanas e sociais tanto quanto pelo universo religioso como pessoas de fé, a saída seria desembocar em um amplo e honesto processo de objetivação de sua pertença religiosa. Já pensaram nisto? O que fazer para ficar com as vantagens e evitar as desvantagens anticientíficas do jogo duplo? A resposta de Bourdieu vai ser: assumir bemanalisadamente a própria pertença religiosa, caso haja. Objetivá-la, torná-la objeto, submetê-la a um esforço de objetivação reflexiva sem complacência. Para o sociólogo da religião, esta é a única tomada de posição cientificamente conseqüente. Tem que assumir. Porque, quando se torna auto-reflexiva, “a pertença pode se tornar, de obstáculo à objetivação, num adjuvante da objetivação dos limites da objetivação, contanto que ela mesma seja objetivada e controlada”.437

É exatamente isso que eu gostaria de fazer a seguir. Vou empreender um esforço honesto de objetivação de minha pertença religiosa com vistas a trazer à tona fatores que podem interferir negativamente em O que ler na ciência social brasileira, p. 237-286. 437 Ibid., p. 276-277.

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minha pesquisa. Vou narrar meu envolvimento pessoal com o fenômeno com o intuito de me conscientizar o máximo possível de fatores que podem atuar em minha compreensão da religião, bem como desejo manter os leitores e leitoras desta tese o mais bem informados quanto aos “riscos” que meu texto pode apresentar. Gostaria de fazer isto descrevendo, brevemente, minha trajetória intelectual e procurando trazer os dados que me forem possíveis acerca de relacionamentos com instituições que venho mantendo nos últimos anos. Tomaria como ponto de partida a lembrança que tenho de minha infância. Acredito que é a memória mais antiga que preservo de minha relação com o mal. Nasci na cidade de São Paulo em um lugarejo bastante marcado pela presença de imigrantes italianos, conhecido como bairro do Bexiga, mas logo minha família foi morar em uma cidade da Grande São Paulo chamada Carapicuiba. Pessoas pobres que trabalham na cidade de São Paulo, costumam morar em bairros da periferia ou em cidades vizinhas, como é o caso de Carapicuiba. A imagem que até hoje mantenho desta cidade é a de um lugar cheio de casas bastante rústicas, sem muitas opções de lazer e, sobretudo, muito marcada pela violência e pelo tráfico e consumo de drogas. Na época esta era a compreensão que eu tinha de mal, algo que causava medo, que ameaçava a minha vida física e emocional. Hoje entendo que a imagem infantil que tinha da cidade é bastante injusta, mas

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era assim que na época eu pensava. O medo fazia parte de meu dia a dia, porém de forma mais intensa quando anoitecia. Muitas vezes, quando menino, acordava no meio da noite ouvindo barulhos e fantasiando se não seria alguém tentando arrombar a porta ou entrar pelo telhado para roubar minha casa. Nem tudo em minha mente era mera fantasia. Foram muitas as vezes que meu pai acordou no meio da noite com o barulho de pessoas tentando roubar seu carro ou de um vizinho. Meu pai sempre teve armas em casa. Quando percebia alguém tentando roubar algum carro em casa ou na vizinhança, saltava da cama e começava a dar tiros para o alto no intuito de espantar o ladrão. Mesmo depois de ter superado o medo infantil de vampiros, lobisomens e outros monstros que invadiriam os lares para fazer mal às criancinhas, continuei a ter medo dos ladrões. Na adolescência o medo era de ser assaltado na rua, mesmo durante o dia. Um dia um de meus irmãos mais velhos bateu à porta de casa em uma noite chuvosa. Quando abri a porta, estranhei que, mesmo estando escuro, frio e chovendo, ele estava apenas de cueca e meias. Perguntei o que ele fazia sem roupas em um dia frio e úmido daquela forma, ao que me respondeu que havia sido assaltado. Levaram-lhe o salário do mês, o par de tênis, as calças e a camiseta. Deixaram a cueca por misericórdia e as meias porque estavam furadas.

290

No

fim

da

adolescência,

quando

me

tornei

um

“trabalhador”, o medo ainda não me deixara. Acordava cedo para trabalhar (cinco horas da manhã), tomava banho, engulia algo e seguia para o trabalho. No fim do dia viajava do trabalho até a faculdade onde estudava. Quase sempre chegava atrasado na aula, dormia um pouco, assistia algumas aulas e, enfim, chegava a hora de retornar para casa. Antes tinha que tomar três conduções. Um ônibus até a estação de trem Júlio Prestes. Eram trinta minutos de viagem e mais quinze de caminhada pela Rua das Andradas, local famoso por concentrar em si tudo que eu considerava na época de mais ameaçador para um adolescente. Tudo era ainda desconhecido para mim, constituindo-se em verdadeiros desafios. A paisagem urbana que contemplava com medo e velocidade era cheia de prostitutas, travestis, jovens consumindo drogas no meio da rua e muita agitação nos pontos de distribuição de drogas disfarçados de bar. Só havia alguma "segurança" e silêncio quando a polícia passava pelo local. Todos corriam para se esconder. A rua ficava limpa e eu um pouco mais aliviado. Quando chegava à estação de trem, tinha alguns minutos de lazer. Encontrava alguns amigos em um vagão como combinado prévia e diariamente. Era momento de contar as novidades, compartilhar as novas piadas e olhar para as meninas bonitas que porventura por lá passassem. A adrenalina ia baixando e o trem se transformando em dormitório. Aprendi a amar os vagões de trem mais do que minha própria cama. Neles eu dormia

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profundamente, pois sabia que os amigos não permitiriam que eu passasse da minha estação. Desembarcava na estação que fica no centro da minha cidade-dormitório, mas ainda não havia chegado em casa. Eu morava na periferia da periferia. Ainda tinha meia hora de viagem e de medo. Quando descia do ônibus, tinha que andar duas quadras e já era quase uma hora da manhã. Saía, então, em disparada. Sabia que, se vacilasse, seria assaltado. Quando chegava em casa, desabava na cama. Tinha apenas quatro horas para dormir. Na manhã seguinte o despertador gritaria às cinco e tudo começaria de novo ... Minha primeira tentativa de explicar o que na época entendia ser o mal se deu através da vida acadêmica. Com dezessete anos comecei a cursar psicologia. Com este curso eu pensava poder ajudar a domesticar o medo que assolava minha vida pessoal e que pensava assustar toda a humanidade. A psicologia não se mostrou muito eficaz para mim. Minha percepção era a de que esta ciência podia muito bem explicar muitos fenômenos, mas suas soluções eram por demais ineficazes. Hoje estou convicto que não há nada de errado com a psicologia, apenas ela não era a resposta que eu procurava naquele momento juvenil. O segundo acontecimento de minha vida a me ajudar na compreensão e domesticação do que me causava medo foi uma experiência religiosa. Converti-me ao protestantismo aos dezenove anos de idade.

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Tornei-me adepto de um dos ramos tradicionais da reforma protestante, o presbiterianismo independente brasileiro. Trata-se de uma igreja brasileira implantada no país por missionários norte-americanos, que tem como símbolo a “Confissão de Fé de Westminster”, elaborada na Inglaterra do século XVII, inspirada no pensamento de João Calvino. Minha afinidade pela tradição protestante era muito grande. Os cultos aos domingos e as aulas matutinas dominicais não eram suficientes para saciar toda a minha curiosidade. Senti o desejo de estudar teologia. Inicialmente estudava na cidade de São Paulo em uma faculdade batista. Depois de um semestre em São Paulo, fui chamado pela liderança da igreja local para ser interrogado sobre minhas pretensões futuras quanto à teologia. Disse que desejava ser pastor. Fui, então, enviado à Londrina, cidade do Norte do Estado do Paraná, para estudar no seminário da denominação, critério para ser pastor presbiteriano independente. A igreja local custeava todas as minhas despesas de moradia e estudos em Londrina. Aproveitei para estudar mais do que me era exigido. Fiz vestibular na universidade pública da cidade, fui aprovado e passei a estudar história junto com teologia. Estudava de manhã e de tarde teologia, e pela noite história. Fiz licenciatura em história, por isso não tive que redigir um trabalho de conclusão de curso, mas apenas fazer estágio e disciplinas pedagógicas. Apesar disto, meus temas preferidos paras as monografias semestrais versavam sobre história religiosa.

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Quando tive que fazer meu trabalho final do curso de bacharelado em teologia, escolhi elaborar uma exegese que analisava o terceiro capítulo do livro de Gênesis. O texto fornecia uma boa base para trabalhar algo que interessava muito, a teologia do pecado e do mal. Na ocasião, eu pensava que analisar o problema teológico do mal me ajudaria superar um medo infantil que ainda não me largara. Eu não tinha as coisas ainda muito claras na mente, mas a minha luta por compreender o que achava ser o mal continuava. Terminei as duas graduações, fui ordenado pastor e acabei indo morar, por seis anos, no Nordeste do país. Nesses anos estive envolvido com educação teológica e com o pastoreio. Ensinava história do cristianismo, história de Israel e história do protestantismo, dentre outras disciplinas. Comecei a me especializar em história religiosa. Fiz mestrado em teologia com dissertação que versava sobre história de Israel no período persa em um seminário batista. Como não havia nenhum mestrado em história na cidade em que morava, fui estudar sociologia em uma universidade federal. Minha paixão pela história do cristianismo e o interesse pelo que achava ser o mal me ajudaram a definir o “objeto” da dissertação, “O Diabo e seus demônios na Igreja Universal do Reino de Deus”. Apesar de estudar sociologia, minha veia de historiador não desaparecera. Em um dos capítulos da dissertação tratei de historiar a crença no Diabo no âmbito do cristianismo.

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Aprendi a fazer trabalho de campo, pois pesquisava um fenômeno religioso contemporâneo. Resolvi, junto com meu orientador, fazer um estudo de caso. Passei a freqüentar a Catedral da Fé da Igreja Universal do Reino de Deus na cidade de Fortaleza para observar os cultos e perceber, ao vivo, como as pessoas concebiam e vivenciavam suas crenças no Diabo. Em 2001 voltei a morar na cidade de Londrina. Em 2002 ingressei no programa de doutorado em história social da Unesp, campus de Assis, com projeto de tese sobre “O mal na Igreja Universal do Reino de Deus: uma história cultural do Diabo no Brasil Contemporâneo (19772005)”. Percebi que seria a chance de aprofundar meus conhecimentos históricos sobre o mal, além de poder trabalhar com um universo mais amplo que o de uma igreja local apenas. Completei a delimitação do projeto ao definir uma temporalidade, o Brasil Contemporâneo, de 1977, data de fundação da referida igreja, até o presente. Para completar, entendi que a historiografia francesa seria um excelente referencial teórico-metodológico, pelos motivos que procuro explicar no primeiro capítulo desta tese. Enquanto realizava as pesquisas que serviram de base para esta tese, percebi que uma outra afinidade estava se consolidando em mim. Cada vez mais eu admirava o pentecostalismo. O que fora primeiro apenas “objeto” de pesquisa acadêmica começou a se configurar como paixão pessoal também. Em uma visita a uma comunidade pentecostal, senti-me

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bastante atraído pela expressão religiosa que envolvia uma fé vibrante e um delineamento ético, para mim, bastante convincente. Além disso, fui fortemente atraído pelas expressões estéticas da comunidade: músicas belamente ensaiadas, executadas e acompanhadas de coreografias e encenações teatrais. Percebi que havia um forte contraste entre a expressão religiosa que eu experimentara até então e o fenômeno que observava naquela comunidade. A marca daquela igreja não era o racionalismo conceitual, tão típico no protestantismo tradicional do qual eu era um adepto, embora fosse uma expressão religiosa também racional. Percebi que a marca da comunidade era a pluri-dimensionalidade da experiência religiosa: envolvia os aspectos visual, corporal, emocional, espiritual e, também, racional. Voltei algumas vezes à comunidade. Em princípio com uma mistura de admiração

e desconfiança. Com o passar do tempo,

permaneceu a admiração e a desconfiança se dissolvera. Percebi, então, que o pentecostalismo havia se tornado para mim, além de objeto de investigação acadêmica, também alvo de adesão pessoal. Acabei por ser recebido como membro da comunidade e renunciando formalmente à ordenação pastoral e a adesão ao protestantismo tradicional, depois de dezessete anos. Apesar de reconhecer que os “objetos” de investigação acadêmica, Diabo e pentecostalismo, que se entrecruzam nesta tese estão

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intimamente ligados à minha vida pessoal e social, não procuro falar deles desde o ponto de vista de um adepto. Narrei os fatos acima para que o leitor ou leitora possa tão somente compreender e se precaver das possibilidades e limites que tenho como autor desta tese.

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